segunda-feira, 29 de abril de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (I)

I - Deus quer lhe falemos cheios de confiança e com familiaridade

Não podia o bem aventurado Jó cessar de admirar-se, vendo Deus tão atento em espalhar os seus benefícios sobre o homem. Não parece com efeito que o Senhor nada tem mais de anseio do que nos amar e ganhar o nosso amor? Eis por que o santo exclamava, dirigindo-se a Deus: 'Que é o homem para que o eleveis tanto na vossa estima? E por que o constituis objeto do vosso afeto?' (Jó 7,17). É, portanto, erro evidente pensar que não se pode tratar com Deus familiarmente e com toda a confiança sem faltar com o respeito devido à sua infinita majestade. 

Sem dúvida, alma devota, deveis a Deus reverência cheia de humildade; sois obrigada a abater-vos na sua presença, lembrando-vos principalmente da ingratidão e ultrajes de que, no passado, vos fizestes culpada para com ele; mas nada disto deve impedir de pordes, nas vossas relações com ele, o amor mais terno, a mais inteira confiança de que sois capaz. Ele é a majestade infinita, mas ao mesmo tempo é a bondade infinita e o amor infinito. Em Deus tendes o Senhor mais sublime que pode existir, mas também o Esposo mais amante que podeis possuir. 

Longe de vos expordes ao seu desprezo, o regozijais usando com ele da confiança simples e terna dos filhinhos para com as suas mães. Escutai com que termos ele nos estimula a chegarmos à sua presença, e que carícias nos promete: 'Vós sereis como meninos que a mãe traz apertados ao seu seio e acaricia tendo-os nos joelhos, como a mãe acaricia o seu filhinho, assim eu vos consolarei' (Is 66,12). A mãe se regozija em ter o seu filhinho ao colo, em dar-lhe o nutrimento, cercá-lo de carícias; é com a mesma ternura que o nosso bom Deus se compraz de tratar as almas que lhe são caras por se haverem dado a ele sem reserva, e colocado todas as suas esperanças na sua bondade. 

Ficai certa, não há pessoa alguma que iguale a Deus no amor que ele nos tem, nem amigo, nem irmão, nem pai, nem mãe, nem esposo, nem amante. A graça divina é, segundo a palavra do sábio, o rico tesouro por meio do qual, vis criaturas e indignos escravos como somos, nos tornamos amigos queridos do nosso próprio Criador (Sb 7,14). Para nos inspirar mais confiança, ele chegou, digamos assim, até aniquilar-se, como diz São Paulo (Fp 2,7); abateu-se até fazer-se homem para morar entre nós e conversar familiarmente conosco (Br 3,38). Chegou a fazer-se menino, a fazer-se pobre, a deixar-se condenar e crucificar publicamente; chegou ainda mais a ocultar-se sob as espécies de pão, para ser companheiro perpétuo do nosso exílio, e unir-se intimamente conosco: 'Aquele que come o meu corpo e bebe o meu sangue, permanece em Mim, e Eu permaneço nele' (]o 6,57). 

Dir-seia enfim que Ele vos ama de tal maneira, que sois o único objeto do seu amor. Também, do vosso lado, não deveis amar nada fora de Deus; como tendes o direito de dizer: 'O meu amado é meu', é preciso que digais também: 'E eu sou dele' (Ct 2,16); sim, pois que o meu Deus se deu todo a mim, dou-me todo a Ele; pois que me escolheu para a sua amada, eu o escolhi entre todos para o meu único amor (Ct 5,10). Dizei-lhe então muitas vezes: 'Senhor, por que me amais tanto? Que bem achais em mim? Esquecestes as injúrias que vos fiz? Ah! já que me tendes tratado com tanto amor e, em vez de me precipitar no inferno, me cumulastes de tantas graças, a quem quereria eu amar no futuro, senão a vós, meu sumo bem, meu tudo! Ó meu Deus amabilíssimo, o que mais me aflige nas ofensas passadas, não é tanto a pena que mereci, mas antes o desgosto que vos causei, a vós, que sois digno de amor sem limites. 

O profeta nos afiança contudo que vós não sabeis desprezar um coração que se arrepende e humilha (Sl 50,19). Agora, eu clamo não querer mais nada nesta vida nem na outra, senão a Vós somente. 'Porquanto que há para mim no céu? E, fora de Vós, o que poderia eu desejar na terra? Ó Deus do meu coração, vós sois a minha herança para sempre!' (Sl 72,25-26). Sois e sereis sempre o dono do meu coração, da minha vontade, o meu único bem, o meu paraíso, a minha esperança, o meu amor, o meu tudo; eu o repito: Vós sois o Deus do meu coração e a minha partilha por toda a eternidade. 

Para fortalecer cada vez mais a vossa confiança em Deus, recordai-vos frequentemente do seu proceder tão cheio de bondade para convosco, e dos meios pelos quais a sua misericórdia vos tirou da vossa vida desregrada, vos arrancou às afeições terrenas, e atraiu ao seu santo amor. O vosso medo único seja não terdes bem confiança nas relações com o vosso Deus, agora que estais resolvida a amá-lo e dar-lhe agrado de todo o vosso poder. A misericórdia que Ele tem usado convosco é penhor seguro do amor que vos tem. Deus não vê sem desprazer a falta de confiança nas almas que Ele ama e de que é sinceramente amado. 

Se, pois, quereis regozijar o seu coração terníssimo, testemunhai-lhe de agora em diante toda a confiança e afeto de que sois capaz. 'Eis que te escrevi nas minhas mãos; os teus muros estão sempre diante dos meus olhos' (Is 49,16). Alma querida, diz o Senhor, por que estes temores, estas desconfianças? Eu trago o teu nome gravado na minha mão, a fim de nunca perder de vista a tua felicidade. São talvez os teus inimigos que te fazem tremer? Mas sabe que o cuidado da tua defesa está continuamente presente ao meu pensamento, e não me é possível esquecê-la. Seguro nesta proteção divina, Davi exclamava com alegria: 'Senhor, a vossa benevolência é como um escudo com que nos cobris' (Sl 5,13); quem poderá nos causar dano enquanto a vossa bondade e amor formarem ao redor de nós uma como muralha impenetrável aos nossos inimigos? 

Reanimai sobretudo a vossa confiança pensando no dom que Deus nos fez de Jesus Cristo. 'Porque' - dizia o próprio Jesus - 'Deus amou o mundo a ponto de dar o seu Filho único' (Jo 3,16). E depois disto, exclama o Apóstolo, depois que Ele nos deu seu próprio Filho, como temermos que nos recuse alguma coisa? (Rm 8,32). O paraíso de Deus é, pode-se dizer, o coração do homem. Deus vos ama, amai-o; as suas delícias, Ele vos declara, são estar convosco (Pv 8,31); sejam as vossas estar com Ele, passar todo o tempo da vossa vida mortal com Aquele cuja amável companhia esperais gozar na eterna bem aventurança. Tornai então o hábito de falar-lhe sempre e sempre, familiarmente, com amor e confiança, como ao amigo mais caro que tendes, e aquele que mais vos ama.

(Santo Afonso Maria de Ligório)