Oremus — Pensamentos para a Meditação de Todos os Dias
(Pe. Isac Lorena (1963), com correções do texto e de citações e com complementos - entre [ ] - de trechos traduzidos do latim pelo autor do blog)
Obs.: a obra foi destinada originalmente a sacerdotes e seminaristas, mas pode e deve ser objeto de reflexão específica para os católicos em geral, sejam religiosos ou leigos.
JANEIRO
10 de
JANEIRO
Procedamus
in pace! [Vamos prosseguir em paz!]
E nem
poderia ser de outra maneira: em paz com minha consciência, e em paz com Nosso
Senhor: assim terei um ano realmente novo, diferente de quantos já vivi. Em paz
comigo e com Deus, haverá em minha vida um aumento de fervor, para que eu possa
dedicar este ano às almas e à minha alma. Olhando para os dias que estão para
chegar, eu os vejo como um altar à minha espera. Quanto sacrifício nesse campo
das almas que eu devo trabalhar!
Sacerdos
pro populo [sacerdote para o próximo] — mas não serei, para as
almas, a vida que elas esperam, se descuidar da minha própria vida interior;
como cuidar das almas, ignorando as necessidades da própria alma? Tenho que
agradecer a Nosso Senhor este novo ano que Ele me quer dar. E não posso
esquecer que este poderá ser o último ano em minha vida. Será que, em 31 de
dezembro deste ano, ainda estarei lendo os últimos pensamentos deste livro?
Que o meu
fervor destes dias me acompanhe sempre; não posso deixar, ao longo do meu
caminho, os propósitos que tomei. E já que pode ser este o último ano da minha
vida, preciso aproveitá-lo, quanto mais, para as almas, e para a minha alma. Um
ano é tão pouco para o muito que tenho a realizar! Não posso esbanjar o meu
tempo. Cotidie morior...['Morro a cada dia'].
02 DE
JANEIRO
In unione
illius divinae intentionis [Em união com essa divina
intenção]
Tenho pela
frente um novo ano, que eu devo ganhar para a minha eternidade. Logo de início
preciso me compenetrar do que disse Nosso Senhor: 'Sem mim nada podeis fazer'.
Portanto, é com Ele que eu devo ir recolhendo, um por um, os dias que me
esperam: Qui non colligit mecum, dispergit [quem comigo não
ajunta, dispersa].
Se eu
quiser trabalhar sozinho, terei que ouvir um dia a Escritura: Seminasti
multum et intulisti parum (Ag 1,6) [semeais muito e recolheis pouco]. Deus me criou para a sua maior glória. E, fazendo uma
seleção entre as almas que o amam, eu fui um dos contemplados. Ele deve ser
mesmo infinitamente bom, para querer que a minha miséria coopere na sua
Redenção, para sua glória infinita. Mas quanta atividade, grandiosa aos olhos
do mundo, já não foi declarada sem valor, à hora da morte, porque lhe faltava o
selo illius divinae intentionis! [com essa
divina intenção!].
No dia em
que me chamar, Deus irá examinar comigo a boa intenção que eu devia ter posto
em tudo: Quaeretur a nobis quid fecimus, quam religiose viximus [seremos
perguntados sobre o que fizemos e o quão honestamente vivemos -
Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis]. Posso aguardar tranquilo
a hora dessa avaliação? Que o diga minha vida passada. Preciso vigiar a minha
vaidade, meu apego, meu comodismo, para não lamentar um dia: Qui
mercedes congregavit, misit eas in saeculum pertusum (Ag 1, 6) [para
não lamentar como o trabalhador que guarda o seu salário numa sacola furada].
03 DE
JANEIRO
Dum tempus
habemus... [enquanto temos tempo (Gl 6,10)...]
Se a minha
vida é feita de anos, os meus anos se compõem de minutos. Assim como Deus não
me dá toda a existência de uma só vez, mas pouco a pouco, assim também não
posso santificar a minha vida num momento, mas tenho que viver para Deus todos
os meus minutos.
Que eu
possa perder a vida num momento — isso me impressiona. Mas que, num momento, eu
possa perder a eternidade — isso deveria impressionar-me muito mais. Saber
aproveitar o tempo é viver com sabedoria: Non quasi insipientes, sed ut
sapientes redimentes tempus, quoniam dies mali sunt (Ef 5,15) [não
sejam néscios mas sábios, aproveitando bem o tempo, porque os dias são maus].
Ninguém
sabe o bem que faz, quando faz o bem; e nem sabe o mal que faz, quando deixa de
fazer o bem. Por isso, em matéria de passar o tempo, eu posso e devo ser um
ignorante. Mas devo ser um sábio, tratando-se de aproveitar o tempo. Quando a
minha vida chegar ao fim, nada irei desejar mais que uma parcela desse tempo que
agora está nas minhas mãos. Antes que chegue o meu último dia, preciso
aproveitar os meus dias, para não perder os meus anos: tempora
labuntur, et senescimus annis [trecho de 'Os fastos' de Ovídio: tempora
labuntur, tacitisque senescimus annis et fugiunt, freno non remorante, dies – os
tempos se completam e envelhecemos nos anos silenciosos; os dias fogem, não
havendo como estancá-los].
04 DE
JANEIRO
Quomodo
cecidisti! [como caíste!]
O exame
diário de nossa consciência — quanto bem não nos faria, se o fizéssemos bem!
Temos que fazê-lo sem medo, com um sincero desejo de ver a nossa miséria bem de
perto. Um construtor precisa, frequentemente, examinar se a sua construção está
sendo executada, de acordo com a planta estabelecida; qualquer erro poderá
influir em todo o conjunto da obra. Maior cuidado exige de nós a construção de
nossa vida espiritual (sacerdotal).
O modelo
que devemos realizar é o de perfeição infinita. E o nosso trabalho está sendo
objeto de admiração dos anjos e santos da eternidade. Costumamos dar tanta
atenção às faltas alheias! Quanto assunto não nos fornecem para nossos
comentários! Deixando-as de lado, em santa paz, tomemos diariamente as nossas
faltas como assunto de uma conversa séria com a nossa consciência.
Integritatis
tuae curiosus explorator, vitam tuam quotidiana discussione examina. Attende
diligenter quantum proficias vel quantum deficias; stude cognoscere te. Pone
omnes transgressiones tuas ante oculos tuos, statue te ante teipsum, tamquam
ante alium, et sic teipsum plange [como curioso explorador da
sua própria conduta, examine com diligência a sua vida diária. Considera
cuidadosamente os progressos feitos e o que se perdeu... esforce-se para
conhecer a si mesmo... exponha todas as suas faltas diante dos seus olhos e
coloque-se diante de si mesmo como se fosse outra pessoa ... e, então, lamente
pelos seus erros]. Este é o conselho que nos dá São Bernardo (em Meditationes
piissimae).
05 DE
JANEIRO
Fundamentum
aliud... [um fundamento diferente... (1Cor 3,10)]
Nós, os
sacerdotes, pensamos muito em realizar, em construir. Nada mais natural, pois o
nosso ministério o exige. Muito mais importante, porém, que qualquer atividade
exterior, é o nosso trabalho na construção de nossa vida interior. Desta é que
depende tudo o mais.
Quanto mais
alto um edifício, tanto mais sólida deverá ser a sua base, mais profundas os
seus alicerces. Ora, a nossa vida sacerdotal é um verdadeiro arranha-céu,
porque dá na vista de todo o mundo, e atinge mesmo a altura do céu, no que ela
tem de grandioso e sublime. E que será dessa construção toda, se ela não
assentar sobre o concreto de uma virtude a toda prova?
Se o exame
de consciência me diz que a árvore de minha vida sacerdotal não está produzindo
bons frutos, o remédio não está numas gotinhas d’água, derramadas sobre suas
folhas... Tenho que regar as raízes dessa árvore. Por falta de vida interior,
isto é, de base sólida, quanta vocação já não desmoronou! Até cedros do Líbano
foram vistos, rolando correnteza abaixo... Fundamentum enim aliud nemo
potest ponere, praeter id quod positum est, quod est Christus Jesus [Quanto
ao fundamento, ninguém pode por outro diverso daquele que já foi posto, que é
Jesus Cristo].
06 DE
JANEIRO
Invenerunt
puerum... [acharam o menino... (Mt 2, 11)]
Sim, eles
acharam o Menino, mas à custa de muito trabalho e sacrifício. Após uma viagem
longa e penosa, chegaram enfim ao palácio do Rei dos judeus: um casebre, onde,
na maior pobreza, estava uma simples criança. Para mim foi tão fácil achar
Nosso Senhor! E nem sempre eu soube aproveitar dessa facilidade...
Eles
acharam o Menino cum Maria, Matre eius [com Maria, sua Mãe].
Sempre com sua Mãe — foi assim que o Redentor realizou a sua obra de Redenção.
Se não podemos separar o Redentor de sua Mãe Santíssima também não podemos
separar Nossa Senhora da vida sacerdotal. O Alter Christus [outro
Cristo] não saberá trabalhar sem Ela.
Os Magos ofereceram ouro, incenso e mirra. Não nos é tão difícil oferecer a Nosso Senhor o ouro e o incenso de um exuberante apostolado exterior. Anos e anos de trabalho, no afervoramento de uma paróquia, na organização de uma obra de assistência social, é com satisfação que entregamos tudo a Nosso Senhor. Mas... oferecer a mirra de certas renúncias interiores e mesmo exteriores... oferta dolorosa, muitas vezes, no entanto, necessária. Nosso Senhor não se contenta com uma parte do sacrifício que nos pede. Ele quer um sacrifício completo. Ele quer tudo. Ecce nos reliquimus omnia [Eis que deixamos tudo, palavras de São Pedro a Jesus, em Mt 19, 27].
07 DE
JANEIRO
Ego elegi vos [eu vos escolhi (Jo 15,19)]
Pouco antes
de morrer, num discurso que não chegou a pronunciar, Pio XII escreveu: imensa é
a bondade de Deus para com aqueles que Ele escolhe, como instrumento da sua
vontade salvífica. Depositário e dispensador dos meios de salvação, o
sacerdote, como não pode dispor deles segundo o próprio arbítrio, pois que é
'ministro', assim mantém inalterada a autonomia da sua pessoa, a liberdade e
responsabilidade dos seus atos.
Ele é
portanto um instrumento consciente de Cristo, que, como um artista genial, dele
se serve, como de um cinzel, para esculpir nas almas a imagem divina. Ai se o
instrumento se negasse a seguir a mão do divino Artista; se deformasse o
desenho dele, por próprio capricho! Bem medíocre resultaria a obra, se o
instrumento fosse, por própria culpa, inepto.
A
santidade é o elemento primário que faz do sacerdote um instrumento perfeito de
Cristo, já que o instrumento é tanto mais perfeito e eficaz, quanto mais unido
estiver à causa principal (...) Em muitos casos não basta o fervor das próprias
persuasões, nem o zelo da caridade para conquistar e conservar as almas para
Cristo. Também aqui o bom povo tem razão, quando reclama de sacerdotes 'santos
e doutos'.
08 DE
JANEIRO
Si adhuc
homnibus placerem [se quisesse agradar aos homens (Gl
1,10)]
É verdade
que precisamos ganhar a todos para Nosso Senhor. E as palavras duras, as atitudes
ríspidas, nunca foram meios de apostolado. Foi pela mansidão que Nosso Senhor
atraiu a todos: Discite a me, quia mitis sum, et humilis
corde [aprendei de mim que sou manso e humilde de coração].
Mas que o
nosso zelo não seja imprudente e sentimental, a ponto de nos levar a um erro
perigoso. Condescender com certas ideias e fraquezas, por de lado a
simplicidade cristã, porque certa classe de pessoas a não tolera, modernizar-se
mundanamente com o intuito de agradar e atrair; enfim, sacrificar a verdade,
apresentando-a menos pesada e mais agradável, certamente não seria isso digno
do sacerdote de Nosso Senhor, o qual estaria perdendo pensando ganhar.
As almas somente se deixam atrair pela virtude. E se esta nem sempre agrada, nem por isso a podemos profanar. O sacrifício da Verdade não ganha a ninguém; antes põe a perder as almas; elas querem ver no sacerdote o homem de Verdade que não se diminui. Com o nosso modo de apresentar a Verdade aos homens, nunca poderemos prejudicá-la. O Apóstolo, com todo o seu zelo, confessava não ter agradado a todos: Si adhuc hominibus placerem, Christi servus non essem [Se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo, palavras de São Paulo aos Gálatas, em Gl 1, 10].
09 DE
JANEIRO
Similes ei
erimus [seremos semelhantes a Deus (1Jo 3,2)]
Meu
Deus, o que me pedes, neste mundo, é um nada; apenas alguns anos de luta. No
entanto, o teu amor tem, reservada para mim, uma eternidade de glória: In
hac brevi et exigua vita agones et labores; in illa vero vita, quae aeterna
est, praemia meritorum [nesta vida breve e passageira, provações e
fatigas; na outra e verdadeira vida, recompensa eterna (São Beda)].
Senhor, que
este mundo não me faça perder de vista essa eternidade que, com tanto carinho,
puseste diante dos meus olhos. Como irei desinteressar-me dessa recompensa que
preparaste para teus filhos, ante mundi constitutionem [antes
de criar o mundo]? Que dignidade, e que riqueza para mim: Nunc
filli Dei sumus [desde agora somos filhos de Deus!] No
entanto, ainda preciso esperar: Nondum apparuit quid erimus [não
se manifestou ainda o que seremos]; quero acalentar esta esperança,
pois, cum apparuerit, similes ei erimus [quando se
manifestar, seremos semelhantes a Deus].
Meu Deus, diante do que me espera, que eu não viva neste mundo como um escravo, nem sofra como se eu fosse um condenado ao desespero! Não posso me esquecer de que sou um dos teus filhos, com direito a uma parte da tua riqueza infinita. Ela está à minha espera, pois é herança minha. E eu estaria ofendendo a tua liberalidade, se quisesse fechar os olhos, para não ver aquilo que o teu amor, desde já, me quis mostrar. Levate oculos vestros! [levantai os vossos olhos! (Jo 4,35)].
10 DE
JANEIRO
Infelix ego
homo! [homem infeliz que sou! (Rm 7,24)]
Tratando-se
das ocasiões de pecado, há um modo de encarar as coisas, não com simplicidade
cristã, mas com exagerada naturalidade. Chama-se a isto mentalidade arejada,
segundo a qual, as ocasiões não seriam tão frequentes, nem o perigo tão grande
como quer a mentalidade antiga e acanhada. Nem tanto ao mar, mas também nem
tanto à terra.
O Antigo
Testamento já condenou aquele que ama o perigo. E São Paulo nos diz que, para
nos enganar, o demônio é capaz de tudo; chega mesmo a se transfigurar: Ipse
Satanas transfigurat se in angelum lucis [o próprio Satanás se
transfigura em anjo de luz]... A nossa fraqueza é tão grande, que
facilmente chegamos a defender uma coisa, pelo simples motivo de a desejarmos.
E assim, às vezes, dizemos não haver perigo, porque realmente queremos o
perigo.
Estaremos
em melhores condições que o Apóstolo? Infelix ego homo, quis me
liberabit de corpore mortis huius? [Homem infeliz que sou! Quem me
livrará deste corpo que me acarreta a morte?, palavras de São Paulo aos
romanos, em Rm 7,24]. Spiritus quidem promptus est [o
espírito, na verdade, está pronto] — não há dúvida; mas... caro autem
infirma [mas a carne é fraca], e disto não podemos duvidar também.
Temos uma natureza de morte; e quando ela quer alguma coisa, usa de todos os
meios para a justificar: Quod volumus libenter credimus...[sempre
acreditamos no que queremos acreditar].
11 DE
JANEIRO
Mihi vivere
Christus est [para mim o viver é Cristo (Fl 1,21)]
Por eu ser
um Alter Christus [outro Cristo], minha vida precisa refletir
continuamente a vida do meu Mestre. E isto não me será possível, sem um
profundo conhecimento de Nosso Senhor. Por eu ser o Praedicator
veritatis [pregador da Verdade], preciso conhecer a Verdade em
sua fonte, assim como ela veio ao mundo. Mas, como irei imitar um Mestre que
não conheço? E como irei ensinar e viver a Verdade que não estudo?
A biografia
de Nosso Senhor — completa, enquanto possível — está no Evangelho. Aí posso
encontrar veluti viva et spirans imago eius [a imagem
dEle, viva e palpitante]. Irei vê-lo, para que o possa imitar e
ensinar, assim como Ele era realmente. Mas, o Evangelho é talvez o livro que
menos leio, e que menos estudo. Acho indispensável a leitura diária dos jornais
e revistas. Mas, do Livro por excelência, leio apenas algum trecho, aos
domingos, para os fiéis; e, talvez, nem isso.
Há livros que me interessam muito mais, porque, infelizmente, ainda não descobri que há, no Evangelho, uma riqueza inesgotável, para mim, e para as almas que eu devo alimentar com a Palavra divina. A falta de interesse pelo Evangelho, denuncia sempre, no sacerdote, a falta de interesse no próprio Nosso Senhor.
12 DE
JANEIRO
Mundamini
qui fertis vasa Domini [purificai-vos, vós que levais os
vasos do Senhor (Is 52,11)]
Seria essa
uma das consequências do nosso exame diário de consciência: maior cuidado pela
pureza de nossa alma. Se deviam ser puros e inocentes aqueles que apenas
tocavam nos vasos do Templo, quanta inocência Deus não estará exigindo daqueles
que devem tratar diariamente com o Panis Angelicus [Pão dos
Anjos (Sagrada Eucaristia)].
Triste e lamentável seria, se justamente a alma do sacerdote destoasse daquela pureza e dignidade que a Igreja requer em tudo o que está a serviço do culto divino. Deponentes igitur omnem malitiam, et omnem dolum, et simulationes, et invidias, et omnes detractiones. Sicut modo geniti infantes [Deponde, pois, toda malícia, toda astúcia, fingimentos, invejas e toda espécie de maledicência, como crianças recém-nascidas (1Pd 2,1)]. Como seria diferente a minha vida, se diariamente, à noite, eu examinasse, com minha consciência, os pensamentos, palavras e ações do dia!
Não foi sem motivo que a Igreja insistiu comigo, dizendo: Estote ergo talis, ut sacrificiis divinis digne servire valeas [sejas assim, portanto, para que possas servir dignamente ao sacrifício divino; trecho do rito de ordenação constante do Pontifical Romano]. Revendo e estudando a minha vida de todos os dias, irei me convencer de que tudo leva certamente o selo da boa vontade, mas que alguma coisa poderá estar em desacordo com esse digne servire [servir dignamente]. Não irei permitir, então, que certas falhas me acompanhem sempre, como coisa normal, que a minha indiferença não vê, e, por isso mesmo, não condena.
13 DE
JANEIRO
Descendit
de Caelis [Desceu dos Céus!]
Infelizmente
esta palavra já não chama a nossa atenção. Achamos tão natural que isso tenha
acontecido! Um dia, o orgulho do homem quis ocupar o trono de Deus. E esse
orgulho absurdo pôs a humanidade a perder. Para salvá-la, Deus deixou o seu
trono, e veio ao mundo, ocupar um estábulo... Esta solução redentora não foi
apenas uma indireta divina contra o orgulho humano. Mais claramente Deus
não o poderia ter condenado.
Apesar disso, o meu orgulho continua vivo. Sei que Deus desceu dos céus à terra, e não tiro dessa verdade as consequências que devia tirar para a minha vida. Quando me coloco diante do Presépio ou da Cruz, meu orgulho fecha os olhos, para não ver a que ponto eu devo chegar. E depois de transformar o Paraíso num vale de lágrimas, ele vive enchendo a minha vida de queixas, revoltas e reclamações.
Soubesse eu ocupar 'o meu lugar', sempre na humildade, e seria tão feliz! Diante do Presépio e da Cruz é que eu devo meditar bem as palavras do Precursor: Illum oportet crescere, me autem minui [é preciso que Ele cresça e eu diminua]. Então compreenderei que preciso viver como Nosso Senhor viveu: Formam servi accipiens [assumindo a condição de escravo (Fl 2,7)].
14 DE
JANEIRO
Qui se existimat stare... [quem pensa estar de pé (1Cr
10,12)]
É muito
grande a força do demônio. Se ele já dobrou muito caniço, já arrancou muito
carvalho também. Cedros do Líbano vieram abaixo, porque confiaram demasiado na
força das próprias raízes. É pela presunção que o demônio consegue minar os
alicerces de muita vida sacerdotal. Videat ne cadat [vigiar
para não cair] — isto quer dizer esforço e trabalho.
Tome cuidado, empregue os meios, não se descuide, nem facilite. Tempestades há no ambiente que nos cerca. E as mais terríveis não são as que entram pelos sentidos, mas aquelas que rugem dentro de nós mesmos. Lamennais, o grande apologeta, pregou certa vez numa igreja dos redentoristas, na Suíça. Um sucesso. Perguntaram ao reitor da comunidade, o que achava daquele orador, coluna da Igreja na França. Com um ar de tristeza, o reitor, Ven. Pe. Passerat, respondeu: 'Tenho medo desse homem; ele não reza'. Algum tempo depois, Lamennais era um apóstata.
Naquela vida, como em tantas outras, a presunção e o orgulho minaram os alicerces. A base cedeu. Et descendit pluvia, et venerunt flumina, et flaverunt venti, et irruerunt in domum illam, et cecidit, et fuit ruina illius magna [caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína (Mt 7,27)].
15 DE
JANEIRO
Non quaero
gloriam meam [Não busco a minha glória (Jo 8,50)]
O Sumo
Sacerdote da Redenção não procurava a sua glória. Subindo ao altar do
sacrifício, no Presépio, até consumar sua oblação, na Cruz, Ele só pensou na
glória do Pai. E nós, sacerdotes cooperadores da Redenção?
Neste mundo eu não quero pedestal — dizia um padre com muita humildade. Se a exagerada preocupação de si mesmo é ridícula em qualquer indivíduo, mais desprezível se torna quando a notamos no sacerdote. Um exterior todo retocado pela vaidade, o gosto de falar sempre ex-cathedra [do alto, como um catedrático, sem admitir objeções], o desejo de estar em toda parte à procura de evidência, de amizades e elogios, a preocupação de agradar os mais altamente colocados, com desprezo dos mais humildes; enfim, o abuso da dignidade sacerdotal em proveito da própria vaidade... é triste, é lamentável.
Querer viver na glória quem deveria viver na imolação... não será um escândalo para as almas de boa vontade? A exagerada preocupação de se fazer simpático, poderá ter, para o padre, um resultado contrário. Coloquemos sempre um pouco mais de alma e convicção nesse Gloria Patri [Glória ao Pai], que rezamos, com os lábios, tantas vezes!
16 DE
JANEIRO
In medio luporum [no meio de lobos (Mt 10,16)]
In medio luporum [no meio de lobos (Mt 10,16)]
Foi assim
que Nosso Senhor nos viu neste mundo. Ele teve poucos amigos sinceros aqui na
terra. Inimigos, no entanto, não lhe faltaram. Pelo caminho do nosso ministério
sacerdotal, iremos encontrar, muitas vezes, os lobos que Nosso Senhor também
encontrou. Mais perigosos, porém, que os lobos declarados, são aqueles que se
apresentam com aparências de ovelhas.
Tome cuidado o sacerdote com certas amizades que ocultam segundas intenções. Amizades que visam envolver o padre na política ou que pretendem vantagens financeiras ou mesmo legalizar aparentemente certas situações duvidosas; essas amizades não passam de lupi rapaces [lobos vorazes]. Acabam despojando o padre do seu bom nome e da sua fama, para atirá-lo depois ao desprezo e desconfiança do povo.
Com um
pouco de prudência, não nos será difícil distinguir entre um anjo bom e um
demônio mediano: Qui veniunt ad vos in vestimentis ovium; intrinsecus
autem sunt lupi rapaces [Eles vêm até vós disfarçados de ovelhas,
mas por dentro são lobos vorazes (Mt 7,15)]. São Paulo os conheceu de
perto e deixou para os fiéis um aviso que vale para nós: Videte,
fratres, quomodo caute ambuletis! [Vigiai, irmãos, com cuidado
sobre a vossa conduta! (Ef 5,15)].
17 DE
JANEIRO
Mortui enim
estis [porque estais mortos (Cl 3,3)]
Segundo a
doutrina do Apóstolo, nós já morremos com Cristo, pelo batismo: Mortui
estis [estais mortos]. No entanto, devemos continuar
vivendo, mas de uma vida diferente: Vita vestra abscondita est in
Christo Jesu [a vossa vida está escondida em Cristo Jesus].
Essa a grande realidade que a nossa natureza se recusa a aceitar. Justamente por não seguirmos a mentalidade do mundo, este não nos compreende e nos tem por mortos. Oxalá tenha razão, que estejamos realmente mortos para nós mesmos e para tudo o que o mundo nos põe diante dos olhos! Poderemos viver assim, mais in Christo Jesu [em Cristo Jesus], unicamente para as almas, olhando para a glória de Deus.
Essa foi a
vida dos santos: o corpo neste mundo; mas a alma abscondita in
Christo Jesu [escondida em Cristo Jesus] já vivendo num mundo
superior. Para o Apóstolo São Paulo, do mundo só existiam as almas que ele
queria salvar; o mais não lhe interessava, porque estava acima de tudo,
vivendo em Nosso Senhor. Nemo enim nostrum sibi vivit et nemo sibi
moritur. Sive enim vivimus, sive morimur, Domini sumus [Nenhum
de nós vive para si e ninguém morre para si. Se vivemos, se morremos,
pertencemos ao Senhor (Rm 14 7,8)].
18 DE
JANEIRO
Quoniam
Ecclesia sancta est [porque a Igreja é santa]
Nosso
Senhor nos fez membros de sua Igreja. Pelo sacerdócio, Ele nos elevou a
uma posição de destaque, distinguindo-nos como seus amigos particulares: Jan
non dicam vos servos, sed amicos [já não vos chamo de servos, mas
de amigos]. Mas, não nos esqueçamos: essa distinção nos foi conferida
unicamente em atenção à Santa Igreja. Temos portanto que servi-la, mas com
amor e dedicação. Não somos empregados ou meros funcionários de uma
organização.
O que a
Santa Igreja espera de nós, não são tanto as obras de uma vida simplesmente
ativa, mas as obras de uma vida santamente sacerdotal. O que mais
interessa à Igreja não é o nosso trabalho pela santificação das almas;
antes de tudo ela quer que nos santifiquemos.
Se o padre,
tendo um nome feito no rádio e televisão, nos jornais e revistas, tiver
seu nome desfeito na língua do povo... que ganhará a Igreja com isso? E
ainda que muitos o tenham por virtuoso, se ele não for realmente o Homo
Dei [homem de Deus]— e Deus o sabe — não estará sendo o que a
Igreja quer. Nossas virtudes serão atribuídas à Igreja como nossos falhas
também o são. Como poderá pensar em santificar as almas aquele que não se
preocupa com a própria alma? Que nos santifiquemos, para podermos
santificar: é tudo o que a Igreja espera de nós. Quantum quisque
amat Ecclesiam Christi, tantum habet Spiritum Sanctum [Quanto mais
se ama a Igreja de Cristo, tanto mais se possui o Espírito Santo (Santo
Agostinho].
19 DE
JANEIRO
Mea
doctrina non est mea [minha doutrina não é minha (Jo 7,16)]
Temos que
ensinar, verbo et opere [por palavras e ações], o que
Nosso Senhor ensinou. E como ensinar? Pela palavra simples e despretensiosa,
com o zelo e a mansidão do Mestre. Voar apenas sobre o auditório, com
as asas de idéias demasiado elevadas, alardear ciência ou tentar vestir a
simplicidade das verdades com a poesia de sedas e arminhos, é uma
lamentável profanação do nosso Ministerium verbi [ministério
da palavra].
Nosso
Senhor não foi chamado de orador, mas de Mestre, porque a sua única
preocupação era: Ut cognoscant te, solum Deum verum, et quem
misisti [que Vos conheçam, um só Deus Verdadeiro, e quem enviastes (Jo
17,3)]. E temos que pregar também com o exemplo. Se em cada sacerdote há um
pregador que reparte ao povo o pão da palavra, não falte igualmente o santo,
que a todos alimente com a riqueza do exemplo.
Ouve-se às
vezes: hoje o mundo não quer mais ouvir certas verdades antigas.
Realmente, São Paulo já previu: Erit enim tempus, cum sanam doctrinam
nos sustinebunt [porque virá tempo em que a sã doutrina não será
suportada (pelos homens), em 2 Tm 4,3] Mas, se esse tempo já chegou, temos que
perguntar: de quem é a culpa? Se soubermos viver as verdades antigas, o mundo
certamente não as irá estranhar quando as pregarmos.
20 DE
JANEIRO
Donec dies
est [enquanto for dia (Jo 9,4)]
Meu Deus,
tenho diante de mim um campo imenso de trabalho. E minha covardia, meu
comodismo, nem sempre querem olhar para essa vinha que está exigindo meu
esforço e dedicação. Tenho que aproveitar donec dies est [enquanto
for dia]. Enquanto tenho tempo, enquanto as forças não me abandonam,
enquanto não chega a noite da morte, preciso trabalhar sem descanso.
O bem que
eu não fizer agora, nunca mais eu o farei. E o mérito que eu não ganhar
agora, nunca mais será meu. Somos tão poucos, e o trabalho é tanto! Messis
quidem multa [a messe é grande]— cada dia ela se torna
mais difícil. Senhor, desperta a minha generosidade, para eu saber dar tudo
pelas almas: meu tempo, meu descanso, minha morte. Que eu não me queira
poupar, vendo que as almas se perdem. Adveniat regnum tuum [que venha
o Vosso Reino]— não seja esta uma palavra morta nos meus lábios, mas a
alma de toda a minha vida.
Embora meu
comodismo queira ignorar, meus olhos dizem que o inimicus homo ['homem
inimigo', expressão que identifica o semeador de joio nas vinhas do Senhor
(Jo 13, 28) e que denomina, por extrapolação, todos os grandes inimigos da
Igreja] não descansa um momento. Por incrível que pareça, os filhos da
treva atiram-se ao trabalho com mais inteligência e coragem que os filhos da
luz. Não posso continuar, lamentando apenas, que o inimigo não descansa. Não
é solução. O que eu tenho a fazer, é o que já fazia o teu Apóstolo: Impendam
et superimpendar [gastar e se desgastar, no contexto de uma
entrega contínua e redobrada em favor da salvação das almas, conforme as
palavras de São Paulo em IICr 12, 15].
21 DE
JANEIRO
Spectaculum
facti sumus [fomos entregues em espetáculo (1Cr 4,9)]
Um
espetáculo... é alguma coisa que chama a atenção, que prende a admiração e
os olhares de todos. A nossa dignidade é esse espetáculo, aos olhos dos
anjos e dos homens: et angelis et hominibus [aos anjos e
aos homens]. Eles têm diante de si um simples homem, participando do
sacerdócio eterno de Cristo. É realmente sublime esse espetáculo da
sabedoria e misericórdia de Deus.
Mas não
basta que Deus chame a atenção dos anjos e dos homens. Nós também temos
que oferecer et angelis et hominibus [aos anjos e aos
homens] um espetáculo de santidade e virtudes com a nossa vida
sacerdotal. Podemos dizer que já chegamos a esse ponto? E, se não
chegamos, será esse ao menos o nosso desejo, a nossa preocupação de todos
os dias?
Em meio às
trevas, a luz é sempre um espetáculo de calor e de vida. Lux mundi [luz
do mundo]— temos que ser para todos um espetáculo de vida sobrenatural. Se
não houver de nossa parte um esforço contínuo, pode ser que o mundo veja
em nós um triste espetáculo de tibieza e indiferença. Que o nosso exame de
consciência e os nossos retiros chamem a nossa atenção para esse ponto.
22 DE
JANEIRO
Elegit nos [nos
escolheu (Ef 1,4)]
Certamente
não foi por acaso que cheguei ao sacerdócio. O dedo da Providência andou
trabalhando sempre, ao longo desse caminho que percorri, até chegar ao altar. Ante
mundi constitutionem [antes da criação do mundo] — portanto,
muito antes de que eu o pudesse saber, Deus já me havia escolhido. E, se
houve uma escolha, foi porque havia outros que também podiam ser
chamados.
Mas eles
não foram escolhidos e eu fui. Assim fez Ele também quando, entre os
discípulos, escolheu os doze, que chamou Apóstolos: Vocavit
discipulos suos, et elegit duodecim, quos et Apostolos nominavit [chamou
os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, os quais chamou de apóstolos (Lc
6,13)]. Portanto, minha vocação foi uma escolha a dedo; menos não se pode supor
da sua infinita sabedoria, ante a sublimidade dos seus planos: Ut essemus
sancti et immaculati in conspectu eius [para sermos santos e
irrepreensíveis diante dos seus olhos (Ef 1,4)]. Não é pouco o que Ele
espera de mim.
Fui
escolhido para realizar em minha vida uma santidade superior. Não é apenas
aos olhos do mundo que eu devo parecer santo, mas eu tenho que ser um
santo aos olhos de Deus: in conspectu eius [diante dos seus
olhos]. Compreendo então como deve valer para mim aquela insistência do
Apóstolo: Videte vocationem vestram [Vede a vossa
vocação!]. Se eu não a meditar, se eu não a tiver diante dos olhos,
como a irei viver?
23 DE
JANEIRO
Dentur idonei confessarii [haja confessores capazes]
Para São
Pio V, era essa a receita indicada para a afervoramento das almas: Ecce
omnium christianorum reformatio [e veremos uma reforma completa em
toda a cristandade]. É certo que o púlpito, o rádio ou a pena poderão
exercer muita atração sobre as minhas qualidades. E se eu as tiver, para todos
os meios de apostolado, graças a Deus! Nesse bonum certamen [bom
combate] pela salvação das almas, tenho que me utilizar de todos os meios
ao meu alcance.
Não devo,
porém, esquecer que uma coisa é falar a todos, em geral, e outra, falar a cada
um em particular. Junto ao púlpito, ou junto ao rádio, meus ouvintes são apenas
ouvintes, a caminho da verdade. No confessionário, eles já serão mais do que
isso: penitentes, que desejam livrar-se da própria miséria.
É certo que
o trabalho do púlpito, da pena ou do rádio é um apostolado relativamente leve e
interessante. Chega mesmo a agradar a minha vaidade. No confessionário, o
trabalho é, sem dúvida, mais pesado. Mas... um dia, exausto com suas longas
caminhadas, Nosso Senhor estava descansando junto a um poço. E o seu cansaço
não o impediu falar àquela samaritana que voltou à cidade, convertida. Diante
dos penitentes é que eu serei médico, mestre e pai contanto que in omni
patientia, et doctrina [com toda paciência e doutrina, ou seja,
segundo as regras da caridade cristã].
24 DE
JANEIRO
Si de mundo fuissetis... [se fôsseis do mundo...(Jo
15,19)]
Ah!... se
fôssemos do mundo! Ele estaria aos nossos pés, ele seria nosso: Haec
tibi dabo, si adoraveris me... [te darei estas coisas se me
adorares...] Se fôssemos do mundo, ele nos saberia compreender e
amar: Quod suum erat mundus diligeret... [o mundo vos
amaria como sendo seus...]. Se trabalhássemos para o mundo, ele nos saberia
cobrir de elogios, e não nos pouparia recompensas; ele não usaria de todos os
meios para impedir o nosso trabalho.
Mas, graças
a Deus, não somos do mundo: Quia vero de mundo non estis, sed ego elegi
vos de mundo, propterea odit vos mundus [Como, porém, não sois do
mundo, mas do mundo vos escolhi, por isso o mundo vos odeia (Jo
15,19)]. Nosso Senhor não exagerou quando disse que o mundo nos odeia.
Positus in
maligno [sob o maligno (1Jo 5, 19)], ele [o mundo] não
nos quer porque vê em nós a negação do seu espírito e da sua doutrina. Tanto
melhor para nós. Uma prova a mais, de que somos realmente de Nosso Senhor.
Quando Ele sentiu todo o peso da hipocrisia do mundo, foi que nos avisou: Se o
mundo não vos quer, lembrai-vos que a mim também ele não quis. Quia de
mundo non estis [porque não sois do mundo], nada mais
triste que o sacerdote procurando agradar o mundo, condescendendo com seu
espírito e com a sua mentalidade.
25 DE
JANEIRO
Ubi
abundavit delictum [onde abundou o pecado (Rm 5,20)]
Ao escrever
estas palavras, o Apóstolo não quis falar de si próprio, mas da redenção em
geral. No entanto, esse texto é bem um resumo da conversão do grande
Perseguidor. Dedicando-se à caçada de cristãos, era ele o lobo feroz que todos
temiam. Mas a Graça o transformou no servus Jesu Christi [servo
de Jesus Cristo].
Preciso
pensar que a conversão não é somente do erro para a Verdade, do pecado para a
Graça. Dessa conversão, graças a Deus, não estarei necessitando. Mas, a
conversão da tibieza para o fervor — é dessa conversão que estou precisando.
Todos os dias, a todo momento, minha natureza está me empurrando para longe de
Nosso Senhor. E posso dizer que ela nada conseguiu?
À hora de
sua morte, um santo religioso pedia aos seus confrades: rezem, rezem muito pela
minha conversão total! Essa conversão total, de toda a minha vida, é a que devo
realizar continuamente, até ao fim dos meus dias. Nosso Senhor não deve estar
simplesmente ao lado de uma vida sacerdotal, mas tem que ser o centro de toda
essa vida: In quo fixa et firma, et immobiliter semper sit radicata
mens mea et cor meum [Em quem meu coração e minha mente estejam
fixados e firmemente enredados agora e para sempre; trecho da chamada
Oração de São Boaventura]. Seja meu esse desejo de São Boaventura.
26 DE
JANEIRO
Sempiternus
Pontifex aedificat vos [o Pontífice Eterno vos engrandeça]
Assim
escreveu, aos seus fiéis, o grande bispo dos primeiros séculos, São Policarpo:
que o Pontífice eterno, Cristo, edifique a vossa santidade, in fine et
veritate, in mansuetudine, in patientia, in castitate [ao final e
verdadeiramente, pela mansidão, pela paciência, pela castidade]. Que
maravilhoso programa de vida sacerdotal!
In fide et
veritate [pela fé e pela verdade]. É com Nosso Senhor
que devemos erguer o edifício da nossa santidade sobre as verdades da fé,
sinceramente apegados ao Pai que está nos céus. In mansuetudine, in
patientia [pela mansidão, pela paciência] essa norma do nosso
apostolado. Ser, para todos, um reflexo da misericórdia de Nosso Senhor, com
uma paciência alegre e perseverante, porque vivemos expectantes beatam
spem [na expectativa de nossa esperança feliz (Tt 2, 13)],
conforme diz o Apóstolo.
In
castitate [pela castidade]: a sinceridade com Deus nos dará a
inocência e a reta intenção em tudo, com um santo respeito a nós mesmos e às
almas. Não será demais, se realizarmos, em nossa vida sacerdotal, esse programa
de santidade que o grande bispo apresentava aos simples fiéis do seu tempo. Não
podemos construir sobre outra base, a não ser essa: In fide et veritate [pela
fé e pela verdade] — porque omne quod non est ex fide, peccatum
est [tudo o que não procede da fé é pecado (Rm 14, 23)].
27 DE
JANEIRO
Pars
haereditatis meae [parte da minha herança (Sl 15,5)]
Naquele
dia, da minha primeira Tonsura, eu disse que só Deus me bastava. Ele, a minha
herança, e somente por Ele eu iria me interessar. Depois, com o correr dos
anos, fui achando que o meu sacrifício fôra grande demais e que a minha
generosidade fôra exagerada. Achei que Deus era pouco para me contentar.
Pobre
mendigo, julgando-me iludido no meu sacrifício, comecei a ajuntar todos os
restos que encontrei pelo meu caminho. E não percebi que, enquanto amontoava
ninharias, pouco a pouco, eu ia perdendo a minha riqueza. Apeguei-me a tudo...
pensando que era alguma coisa. Fui um avarento de tudo o que pude recolher. E
agora reconheço o meu erro. Compreendi que só Deus pode encher a minha vida.
Somente a sua riqueza tem valor porque é infinita.
Meu coração
já foi criado assim: tão grande, que só Deus pode contentar. Preciso voltar
atrás, à procura da herança que perdi. Para levá-la comigo, não posso desejar
sequer outra coisa que não seja a minha riqueza infinita. Preciso abandonar
tudo o que andei ajuntando ao longo do meu caminho. Deus meus et omnia [meu
Deus e meu tudo] — eu estava certo quando pensei assim, naquele dia da
minha Primeira Tonsura.
28 DE
JANEIRO
Depositum
custodi [guarda fielmente o bem confiado (ou seja, o depósito
da fé) (1Tm 6,20)]
Nos
primeiros séculos, escrevia Santo Inácio Mártir: Cum audirem quosdam
dicentes: Nisi invenero in archivis, hoc est in Evangelio, non credam... Mihi
vero Archiva Jesus Christus [É que ouvi alguns dizerem: se não o
encontro nos documentos antigos, não creio no Evangelho... para mim,
documentos antigos são Jesus Cristo; trecho da Epístola aos Filadelfos, de
Santo Inácio de Antioquia].
Temos que
entregar a Verdade ao povo, tal qual a Igreja no-la entrega. E a Igreja a
recebe de Nosso Senhor que não está somente no Evangelho, mas também na
Tradição. Não podemos alimentar o espírito farisaico, que se prendia ao pé da
letra. Littera enin occidit [a letra, por si, mata; referência
negativa à observância rígida e literal aos princípios e às leis], observara
São Paulo.
Em matéria
de Fé e Moral, tudo o que não estiver de acordo com a Igreja, é novidade nociva
às almas, porque a Igreja guarda, não somente a letra das verdades evangélicas,
mas também o espírito dessas verdades, que está na Tradição. Doctrinis
variis et peregrinis nolite abduci [não vos deixeis desviar pela
diversidade de doutrinas estranhas] — era o conselho do Apóstolo (Hb 13,9).
Se não podemos ensinar novidades estranhas à doutrina da Igreja, também não podemos
atenuar a Verdade ou vesti-la de uma linguagem que a possa comprometer. Os
alardes de ciência, o sentimentalismo ou o rigor exagerado não condizem com a
simplicidade límpida e natural da Doutrina. Ao povo não interessa a nossa
vaidade, mas a Verdade: Devitans profanas vocum novitates [evita
as falácias profanas].
29 DE
JANEIRO
Adtendite
ad petram! [atentai para a rocha! (Is 51,2)]
Não me
basta olhar para esse meu Mestre de perfeição infinita. Ele não é uma estátua
fria, colocada à minha frente, nem uma obra de arte esperando pela minha
admiração. Senhor, eu reconheço que o meu modelo é de uma perfeição infinita
que preciso estudar, e estudar atenciosamente, não só em um retiro ou dois, mas
continuamente.
Todos os
dias, a cada momento, preciso consultar a sua santidade e perfeição, porque
nunca chegarei a imitá-lo como devo. Não posso alimentar a presunção de pensar
que já copiei, na minha vida, o suficiente para que as almas vejam em mim um
retrato de Nosso Senhor. Infelizmente preciso confessar que ainda não conheço
bastante Aquele que ensino a mim mesmo e às almas. Que eu não me dispense da
obrigação de aprender, estudando o meu modelo.
Sempre que ensinar a outros, preciso pensar que, se minha dignidade me colocou muito alto, nem por isso aumentou a minha virtude. Que eu não me apresente a ninguém como exemplo e modelo porque o mais necessitado de aprender sou eu mesmo. Vae nobis, ad quos pharisaeorum vitia transierunt! [Ai de nós, quem temos herdado os vícios dos fariseus!] (São Jerônimo).
30 DE
JANEIRO
Qui unxit
nos Deus [Deus é Aquele que nos
consagrou (2Cr 1,21)]
A sua
escolha foi como uma unção que me marcou desde toda a eternidade: Elegit
nos ante mundi constitutionem [escolheu-nos antes da criação do
mundo]. Quando a Igreja me ungiu, sacerdote para sempre, ela confirmou a
unção pela qual Deus já me fizera Sacerdote desde sempre, marcando-me com um
sinal da sua eleição.
E esse
sinal, impresso por Ele em minha alma, nada poderá destruir. Esteja eu onde
estiver, estará comigo o sinal dos eleitos de Deus. Pelos séculos afora, no céu
ou no inferno, serei sempre o mesmo, reconhecido como sacerdos in
aeternum [sacerdote eterno]. Em estado de graça ou em pecado,
não poderei ocultar, diante dos anjos e dos homens, o sinal com que Deus me
marcou. Quanto não deverá valer para mim a insistência do Apóstolo: Omnia,
et in omnibus Christus! [Cristo, em tudo e em todos! (Cl
3,11)].
Muito mais que os simples cristãos, marcados com o batismo, devo refletir em mim o sacerdote eterno, porque sou uma continuação eterna do seu Sacerdócio, e está em mim o sinal da sua escolha de predileção: sicut electi Dei, sancti et dilecti [como eleitos de Deus, diletos e santos] — é assim que eu devo viver, pois que sinal de predileção mais significativo que o sacerdócio poderia Deus imprimir numa criatura sua? Foi principalmente para mim que São Paulo escreveu: Omne quodcumque facitis, in verbo aut in opere, omnia in nomine Domini Jesu Christi [Tudo quanto fizerdes, por palavra ou por obra, fazei tudo em nome do Senhor Jesus Cristo (Cl 3, 17].
31 DE
JANEIRO
Video aliam
legem... [reconheço outra lei (devido à minha natureza humana)... (Rm
7,23)]
Meu Deus,
como é pesada, às vezes, esta natureza humana, com suas leis, exigências e
imposições! Eu sei que a minha viagem é longa e difícil; por isso não posso
levar nada comigo, para estar livre e desimpedido. Mas, se eu não tivesse que
levar sempre comigo o peso insuportável desta natureza que me deste, seria bem
mais fácil.
É que às
vezes, eu me esqueço de que me fizeste homem e não anjo. Não esperas que eu te
glorifique como um espírito celeste, mas como um simples homem. Para a tua
infinita grandeza, queres a cooperação desta imensa miséria humana que eu sou.
Tanto como a pureza dos anjos, ela também deve glorificar o teu Nome.
Senhor, que eu não viva alimentando pretensões de ser anjo, mas que me contente com uma vida santamente humana e humanamente santa. Criado à tua imagem e semelhança, eu sei que o pecado me desfigurou. Mas sei também que a redenção de teu Filho me purificou de tal forma, que voltei a ser digno de teu amor de Pai. E assim transfigurado pela tua graça, espero ser digno também de dar a minha nota nessa harmonia divina de tua glória! Um dia achaste que até as pedras poderiam cantar a tua grandeza. Compreendo então que eu também posso e devo amar o teu amor, e cantar a glória de teu Nome.
FEVEREIRO
10 DE FEVEREIRO
Frumentum Christi sum [sou trigo de Cristo]
Era este o pensamento que animava o grande bispo
Santo Inácio, a caminho do martírio. E este, o pensamento que nos deveria
preocupar sempre: somos o trigo que Nosso Senhor escolheu, para com ele
alimentar as almas — cibus viatorum [pão dos peregrinos]. Sabemos
que, para se tornar alimento, o grão de trigo deve antes morrer. Não foi assim
com Nosso Senhor? Por isso exclamava Santo Inácio: Molar dentibus
leonum [moído pelos dentes das feras].
Se não fomos, como ele, destinados às feras, aí
está o nosso dia de trabalho, como um altar, à espera de sua vítima. Temos que
nos imolar nos sacrifícios de cada dia, pois, somente assim, poderão as almas
alimentar-se de nós. Ut panis mundus inveniar [para me
converter em pão puro] — Deus sabe a quantas almas alimentou com esse grão
de trigo que as feras moeram, transformando-o num pão imaculado.
Que esse exemplo alimente a nossa coragem, fazendo-nos aceitar com mais generosidade esse martírio lento a que Deus nos chamou. Christo confixus sum cruci [Estou pregado à Cruz de Cristo (Gl 2, 19)] — não podemos encarar nossa vida de outra maneira, pois, se o grão de trigo não morrer, não produzirá fruto.
02 DE
FEVEREIRO
In templo
gloriae tuae praesentari [apresentar-nos no Templo de Tua
Glória]
Não foi
somente a mãe daqueles dois discípulos que sonhou com o Reino dos Céus para os
seus filhos. A Santa Igreja também se preocupa com a nossa recompensa e hoje,
de um modo especial, pede para nós um lugar na glória eterna.
Que
apresentação solene não deverá ser a nossa in splendoribus
sanctorum [no esplendor dos Santos!] - apresentação dos eleitos
de Nosso Senhor. Ita nos facias [assim nos faça]:
apresentados por Nossa Senhora, que já nos reconheceu por filhos quando
recebeu, como filho, o Evangelista recém ordenado sacerdote. Ela nos viu
desempenhando a sua missão de dar Nosso Senhor às almas; Ela esteve sempre
conosco: Stabat juxta crucem [de pé, junto da Cruz].
Apresentados ao Pai per Dominum nostrum Jesum Christum [por
Nosso Senhor Jesus Cristo]: Ele nos escolheu e nos marcou com o seu
sacerdócio para sempre. Ele nos teve como seus amigos prediletos: Filioli
mei [filhinhos meus].
Que
saibamos passar pelo crivo das lutas e provações: purificatis tibi
mentibus [com os espíritos purificados] — somente assim
poderemos contar com a nossa apresentação solene, não a um Juiz mas a um
Pai: in templo gloriae tuae [no Templo de Tua Glória] —
para dEle recebermos o lugar que a Sua misericórdia nos preparou: cum
Sanctis tuis in aeternum [com os teus Santos na eternidade].
03 DE
FEVEREIRO
Cordis tui
suavitate percepta [conscientes da suavidade do Vosso Coração]
À medida
que os primeiros discípulos foram conhecendo o Mestre, tanto mais se
interessaram por Ele. Magister, ubi habitas? [Mestre, onde
moras?]. Queriam estar na sua companhia, para ouvi-lo mais frequentemente.
Tanto mais irei sentir quam suavis est Dominus [quão suave
é o Senhor] quanto mais me interessar por Ele, a fim de O conhecer e O
amar.
Meu Mestre
é, sim, um Crucificado; mas Ele não me enganou quando me disse que o seu jugo é
suave. Se ainda não o percebi, compreende-se: Animalis homo non
percipit... [o homem natural não capta (as coisas de Deus)...].
Com o paladar estragado pelo gosto da dissipação, uma alma nada pode sentir
junto a Nosso Senhor. Porque podiam os santos passar noites inteiras em oração,
enquanto eu me sinto aborrecido com uma meditação, cansado com uma leitura
espiritual?
Somente
depois de ter quebrado o vaso de sua vaidade e do seu apego, foi que a pecadora
pôde sentir a misericórdia do Coração divino. Enquanto eu não me decidir a
certas renúncias, não me irei sentir atraído por Nosso Senhor. In Corde
Filii tui, nostris vulnerato peccatis, infinitos dilectionis thesaurus,
misericorditer largiri dignatus es [No Coração do Vosso Filho,
ferido por nossos pecados, infinitos tesouros do amor nos são profusamente
concedidos pela Misericórdia divina] — preciso pensar que eu também posso e
devo ter parte nessa riqueza infinita.
04 DE
FEVEREIRO
Fiat
voluntas tua [seja feita a Vossa Vontade]
Tantas
vezes rezamos esta palavra que Nosso Senhor nos ensinou! E é tão difícil
praticar o que ela diz! Santa Teresa não exagerou quando disse que o caminho
mais curto para o inferno é a nossa vontade própria. Basta dizer que, em tudo,
ela é orientada pelo seu conselheiro particular, que se chama orgulho.
Depois de
transtornar a obra de Deus no Paraíso, não admira que o orgulho cause tanta
desordem na nossa vida. Ele é, para nós, o maior criador de casos. Quanta
agitação inútil, quanto aborrecimento e desgosto ele nos prepara! Com um pouco
mais de humildade, a nossa vida poderia ser menos complicada.
Para nos impressionar, a arma secreta do orgulho é sempre a mesma: apresentar, como ameaçados de morte, os nossos direitos sagrados, que outros procuram destruir. Geralmente, quanto orgulho atrás desses nossos direitos! Olhemos para Nosso Senhor: se Ele tivesse querido zelar tanto pelos seus direitos, como nós zelamos pelos nossos, o que seria de nós? O Presépio e a Cruz não conheceram direitos.
05 DE
FEVEREIRO
Verbo et
exemplo, nos orare docuisti [em palavras e no exemplo, nos
ensinou a rezar]
Diz a
Igreja que, no Jardim das Oliveiras, Ele nos ensinou a rezar. Para que? Ad
tentationum pericula vitanda [evitar os perigos das tentações].
Preciso me convencer de que, sem a vida de oração, não poderei vencer as
tentações. Uma alma sem fervor é presa fácil para qualquer assalto.
Eu devo
pensar que, se eu não fosse um sacerdote, já seria visado pelo demônio. Como
padre, muito mais. Não posso pensar que o sacerdócio me colocou fora do alcance
das tentações. Pelo contrário... é o que me diz a experiência. É certo que o
demônio sempre terá mais força do que eu, caso eu esteja sozinho. Mas, sempre
terei mais força do que ele, se eu me aliar com Deus.
E essa aliança é estabelecida pela oração. Rezando, terei horror ao pecado e saberei evitar o perigo, porque o fervor abrirá os olhos de minha consciência. Rezando, as tentações nunca me encontrarão desprevenido, mas armado com a força de Deus. Tivessem os Apóstolos vigiado no Getsêmani e a prova não os teria colhido de surpresa. Estivessem mais preocupados com o Mestre, não o teriam abandonado.
06 DE
FEVEREIRO
Sicut bonus miles Christi [como bom soldado de Cristo (2Tm 2,3)]
Sicut bonus miles Christi [como bom soldado de Cristo (2Tm 2,3)]
Um soldado
que dá todo o seu entusiasmo, todas as suas forças, toda a sua dedicação à
causa que defende; um soldado que não pede repouso, porque não conhece o
cansaço nem o desânimo na luta de todos os dias: esse é o Miles
Christi [soldado
de Cristo] que o Apóstolo desejava para cada um de nós.
E ele soube tão bem realizar esse ideal em sua vida! O seu contínuo impendam et superimpendar [gastar-se e se desgastar] não era um simples bom desejo, nem uma simples aspiração fervorosa. Era a realidade que encheu os longos anos do seu apostolado. É certo que num combate a vitória depende de todos. Por isso, cada qual deve dar a sua parte de esforço e dedicação.
Sendo assim, eu não posso dar apenas uma parte do meu tempo, um pouco de atividade, uma parcela de esforço. Tenho que dar o máximo, porque a parte que me toca é essa: dar toda a minha vida pelas almas. Que pela minha dedicação, possa eu estar entre aqueles pelos quais a Igreja reza: Tuorum militum, Rex omnipotens, virtutem robora, ut consummato cursu certaminis, immortalitis bravium apprehendant [confirmai, ó Rei onipotente, a virtude dos vossos soldados, a fim de que, consumada essa vida mortal, alcancem a recompensa eterna].
07 DE
FEVEREIRO
Sobriam
duxit sine labe vitam [levam uma vida sóbria e pura]
Assim canta
a Igreja, celebrando os seus confessores. E lembra as virtudes que lhes
adornaram uma vida sem mancha: pius, prudens, humillis, pudicus [piedosos,
prudentes, humildes, castos]. Nos meus primeiros anos de sacerdócio, o meu
fervor era todo zelo, amor ao estudo e à oração; a docilidade, a pureza de
consciência, a pontualidade nos meus deveres, caracterizavam o meu entusiasmo e
dedicação.
Os anos
foram passando. E, com um pouco de orgulho, apareceu também uma certa
independência no meu modo de julgar as coisas. Achei que podia substituir
certas idéias, que me pareceram antigas, por outras mais arejadas, que eu dizia
ser fruto da experiência. Mais largas e mais cômodas, essas idéias se prestaram
muito bem para justificar algumas falhas que meu fervor primitivo não teria
justificado. E os frutos foram aparecendo pouco a pouco.
Hoje... quam mutatus ab illo! [quanto se mudou do que era!]. É verdade que os tempos mudam e todos mudam com eles. Mas não posso mudar para pior. Relinquentes vanitatem multorum, et falsas doctrinas, ad traditam nobis ab initio doctrinam, revertamur [Abandonemos os discursos vãos e as falsas doutrinas de tantos e retornemos aos ensinamentos que nos foram transmitidos desde o princípio, texto da Epístola de São Policarpo de Esmirna aos Filipenses].
08 DE
FEVEREIRO
Simon
Johannis, amas me? [Simão, filho de João, tu me amas? (Jo 21,15)]
Nosso
Senhor sabia bem que o Apóstolo o amava: Domine, Tu scis quia amo te [Senhor,
tu sabes que te amo]. Porque, então, aquela pergunta misteriosa: Amas me?...
Nunca o Mestre lhe falara assim. Et
contristatus est Petrus [E Pedro
se entristeceu]. Aquela palavra do Mestre soava-lhe como uma indireta, com
referência às negociações... uma humilhação diante dos companheiros ou um
ajuste de contas em momento oportuno. Tudo isso poderia ter passado pela mente
do Apóstolo.
No entanto, ele não perdeu a confiança. Com a sinceridade de sempre, respondeu, tantas vezes quantas o Mestre perguntou: Domine, Tu scis quia amo te [Senhor, tu sabes que te amo]. Ele compreendeu que a Misericórdia infinita ali estava, fechando-lhe no coração uma ferida que ainda sangrava. O Mestre, antes de voltar para a eternidade, queria por uma pedra em cima daquelas negações, não deixando, para o Apóstolo, uma dúvida que o iria martirizar sempre. E o reabilitou, elevando-o aos olhos de todos: Pasce oves meas [guia as minhas ovelhas].
Quanta delicadeza nesse gesto aparentemente duro de Nosso Senhor! Diante de uma humilhação, de um fracasso ou aborrecimento, preciso pensar que Nosso Senhor não está me ferindo porque disso Ele é incapaz. Estará, sim, chamando a minha atenção: Diligam Te, Domine, et gratias agam! [Amar-Te-ei, Senhor, e dar-Te-ei graças!].
09 DE
FEVEREIRO
Se quis non
amat Dominum Jesum... [se alguém não amar o Senhor Jesus... (1Cor
16,22)]
Que alguém
pudesse ignorar o Amor infinito e não se interessasse por Nosso Senhor — era o
que São Paulo não podia compreender. Daí a sua expressão: Sit anathema! [seja
maldito!]. Se essa palavra vale para todos, como não deverá valer para
aqueles que Nosso Senhor distinguiu como um amor todo particular!
Quantas
provas de predileção não recebi de Nosso Senhor! Se eu não me interessar por
Ele, como exigir que outros se interessem? Como irei citar essa palavra para
outros se ela não está valendo principalmente para mim? Anathema sit [maldito
seja!]: é a palavra que me lembra bem o que me espera na eternidade, se
agora eu não quiser corresponder à predileção de Nosso Senhor para comigo.
Judas foi chamado como os demais Apóstolos. Um eleito de Nosso Senhor como todos os outros. Mas não quis reconhecer que a escolha do Mestre era uma responsabilidade. Não correspondeu e, com a queda final, veio o desespero. Bonum erat ei si non esset natus [melhor seria não ter nascido (Mc 14,21)]. Tenho que corresponder à predileção de Nosso Senhor para comigo, vivendo essa realidade que São Paulo não esquecia: Dilexit me et tradidit semetipsum pro me [Amou-me e se entregou (até à morte) por mim (Gl 2, 20].
10 DE
FEVEREIRO
Exemplum
esto fidelium [modelo para os fieis (1Tm 4,12)]
Numa de
suas orações, a Igreja reza: Nominis tui gloriam verbo et exemplo diffundere
valeamus [possamos difundir pela palavra e pelo exemplo a glória do
Vosso Nome]. Muito mais que a nossa pregação pela palavra, a Igreja quer a
nossa pregação pelo exemplo. Esta realiza muito mais que aquela.
O Santo
Cura de Ars não foi orador de nome. Não escreveu livros, nem foi conferencista
de fama. Para o seu apostolado, num simples lugarejo, não dispôs do rádio e
menos ainda da televisão. No entanto, abalou a França inteira e o mundo todo,
apenas com a força de sua santidade.
Escrita ou falada, a palavra será sempre um meio de inestimável valor para o
meu apostolado. Mas, ela não terá valor algum, se não tiver a força do meu
exemplo. Quanto papel e tinta mal empregados, às vezes, em escritos que podem
revelar outras preocupações, menos a da glória de Deus! Quanta eloquência
inútil, no púlpito ou no rádio, porque o povo está percebendo que o pregador
não vive aquilo que ensina! Minha palavra não dará às almas um Cristo vivo, se
Ele estiver morto na minha vida. É que as almas não se impressionam com o
simples ruído de um cymbalum
tinniens...[címbalo
que retine... (I Cr 13, 1)].
11 DE
FEVEREIRO
In caritate
radicati [arraigados na caridade (Ef 3,17)]
Uma árvore,
com suas raízes em terra seca ou pedregosa, nada poderá produzir. Assim também
uma vida sacerdotal que não esteja enraizada num grande amor a Deus, nada
produz para as almas. Ninguém se alimenta de flores.
In caritate
fundati [firmados na caridade] — não pode ser outro o
alicerce da nossa vida sacerdotal. Somente assim haverá, em toda a nossa
atividade, aquele bonus odor Christi [bom odor de Cristo]
que atrai as almas e que as eleva para Deus. Uma profunda e sólida piedade, na
palavra e no exemplo, será, para as almas, o que a chuva é para uma terra árida
e seca.
Faltando-lhe,
porém, a vida interior, o padre não será mais que uma nubes sine
aqua [nuvem sem água]: é a nuvem que somente lembra a
chuva, mas que a não pode dar. Vemos então o povo, com fome e sede de Deus,
morrendo à míngua, sem nada receber do sacerdote que não tem Deus consigo, para
reparti-lo com as almas. Dicunt et non faciunt; alligant enim onera
gravia et imponunt in humeros hominum; digito vero suo nolunt ea movere [dizem
e não fazem, mas impõem fardos pesados que sobrecarregam os ombros dos homens,
mas não querem movê-los nem mesmo com o dedo (Mt 23, 3-4)] é o que
acontece, quando os que ensinam e pregam não estão in caritate radicati [arraigados
na caridade].
12 DE
FEVEREIRO
In manus
tuas [em Vossas
mãos]
Nas minhas
mãos, possuído da minha vaidade ou do meu orgulho, nada poderei realizar de bom
para Deus ou para as almas. Nas mãos de Nosso Senhor, eu serei o seu
instrumento para realizar maravilhas: opera quae ego facio, et ipse
faciet, et majora horum faciet [(aquele que crê em mim) fará
também as obras que eu faço e fará ainda maiores do que estas (Jo
14,12)].
Um dia Ele
estava em lugar deserto, acompanhado de milhares de pessoas. Nas mãos de um
menino, cinco pães nada significavam para aquela multidão mal alimentada
durante três dias. Mas, nas mãos de Nosso Senhor, os pães se multiplicaram;
todo o povo se fartou, e ainda sobraram doze cestos... Preciso cuidar do meu
trabalho e do meu esforço para que a minha vaidade não ponha tudo a perder. Nas
minhas mãos, os maiores heroísmos e milagres nenhum valor teriam, porque
preciso estar nas mãos de Nosso Senhor.
Tenho que
proteger toda a minha atividade com o muro da boa intenção; do contrário,
estarei de mãos vazias no fim do dia e no fim da minha vida. Sine me
nihil potestis facere [sem Mim, nada podeis fazer] — a boa
intenção me fará trabalhar com as mãos de Nosso Senhor. Por mim mesmo nada
poderei realizar para a minha eternidade; por mais que eu faça, tudo será
perdido porque quin non colligit mecum, dispergit [quem não
recolhe comigo, dispersa (Lc 11,23)].
13 DE
FEVEREIRO
Presbyteri
sint ad commiserationem proni [os presbíteros devem ser
movidos pela compaixão]
Era o que
recomendava São Policarpo, acrescentando: Misericordes erga cunctos,
non severi nimium in iudicio, scientes nos omnes debitores esse peccati [misericordiosos
com todos, sem serem severos demais nos julgamentos, cientes de que todos nós
estamos sob o débito do pecado; trecho da Epístola aos Filipenses, de São
Policarpo de Esmirna].
A mansidão
terá que ser a arma secreta do nosso apostolado. Fugindo à rudeza no falar, à
rispidez no trato, o sacerdote será sempre o Bom Samaritano, sem fel nem
vinagre, levando consigo o óleo inesgotável da misericórdia e da compreensão.
Deus não quis distância entre a sua grandeza e a nossa miséria: Et homo
factus est — mitis et humillis corde [E se fez homem —
manso e humilde de coração].
Se pela
nossa dignidade estamos muito acima dos fiéis, nem por isso precisamos olhar
sempre de cima, encerrados na torre inacessível do nosso orgulho e vaidade.
Estudamos mais, é certo; mas nem por isso podemos desprezar aqueles que
estudaram menos. Temos certamente uma noção mais clara do Bem e do Mal; nem por
isso podemos ter sempre uma palavra de crítica, à espera de todos e de tudo.
Quanto mais nos julgarmos donos da verdade, tanto mais escravos seremos dos
nossos erros. Não podemos fazer uma diferença que só a Deus pertence, scientes
nos omnes debitores esse peccati [cientes de que todos nós estamos
sob o débito do pecado].
14 DE FEVEREIRO
Domine,
scrutaris me [Vós me perscrutais (Sl 138, 1)]
Que Deus me
acompanha, semper et ubique [sempre e em toda a parte]:
um pensamento que me devia preocupar, como já preocupava o salmista: Mirabilis
est mihi scientia haec, sublimis: non capio eam [esse conhecimento
é tão sublime e maravilhoso para mim, que eu não o posso apreender]. Deus
lê meus pensamentos: intelligis cogitationes meas e longinquo [de
longe penetrais meus pensamentos] — para Ele não existe antes nem depois.
Ele conhece
todos os meus caminhos; não posso fugir à sua presença: ad omnes vias
meas advertis [(Vós) me sondais de todas as maneiras].
Antes que eu fale, Ele já está me ouvindo: Verbum nondum est super
lingram meam... jam nosti totum [a palavra ainda não me chegou à
língua... e já a conheceis por inteiro]. Ele me envolve como uma
bênção: a tergo et a fronte complecteris me et ponis super me
manum tuam [me cercais por todos os lados e estendeis sobre mim a
vossa mão].
Para onde eu for, sua Providência irá comigo: Si summam pennas aurorae, si habitem in termino maris, illic manus tua ducet me [se tomar as asas da aurora ou habitar os confins do mar, é ainda Vossa mão que há de me conduzir]. Como seria diferente a minha vida, se eu vivesse compenetrado dessa preocupação de Deus para comigo! Projice te in eum, noli metuere; non se subtrahet ut cadas; excipiet, et sanabit te [Abriga-te em Deus sem medo algum pois Ele não o abandonará nas suas quedas, mas o acolherá e o curará (de todos os seus males) (Santo Agostinho)].
15 DE
FEVEREIRO
Quia non
novisset hominem [porque sequer conhecia o homem (Mt 26,74)]
Naquela
noite da Paixão, apesar de todas as suas promessas de fidelidade, por diversas
vezes, o Apóstolo negou o seu Mestre. Mas depois, caindo em si, flevit
amare [chorou amargamente].
Toda vez que subo ao altar, sem a devida preparação, levando comigo tantos pensamentos alheios ao Santo Sacrifício... Toda vez que vou ao púlpito, preocupado mais com a minha vaidade do que com a salvação das almas... Sempre que condescendo com a minha impaciência ou não mortifico o meu comodismo... Toda vez que descuido a oração ou fujo de um dever a cumprir... não estarei revivendo a covardia do Apóstolo?
Ele pelo menos chorou depois amargamente. E será que eu o tenho imitado também nisso? Um simples olhar sobre a minha vida me fará compreender que preciso viver in spiritu humiliatis et in animo contrito [em espírito de humildade e de coração contrito]. Vivo tão despreocupado como se, em minha vida, tudo estivesse numa ordem perfeita. No entanto, sei bem que não sou um inocente diante de Deus. Nesse caso, só me resta viver como penitente, antes que chegue a hora do redde rationem... [ajuste de contas...].
16 DE
FEVEREIRO
Propter
nimiam caritatem [por extrema caridade (Ef 2,4)]
Meu Deus,
não foi sem motivo que um dia o Apóstolo exclamou: Quis consiliarius
eius fuit? [quem já foi seu conselheiro?] porque há tanto
segredo e tanto mistério nos caminhos da tua Providência! Se o teu amor me
escolheu desde toda a eternidade para formar na tua Igreja, em lugar de
destaque...
Se a tua
misericórdia me facilitou anos de formação, para que eu melhor te conhecesse,
através dos sacramentos e da oração; se o teu amor me perdoou, tantas vezes e,
se apesar da minha indiferença, ele ainda me persegue e me ama... Senhor, eu
não te compreenderia, se o teu Apóstolo não me desse uma explicação, a única
possível: propter nimiam caritatem [por extrema caridade]
— realmente o teu amor é infinito e somente por ele é que eu chego a te
compreender.
Mas se até
hoje não me impressionei com essas provas de predileção, pois não procuro
corresponder; se minha vida continua presa a tanta coisa inútil e indigna,
transformada geralmente num montão de fraquezas e misérias, porque será? Eu
mesmo não acho uma explicação. Preciso perguntar à minha consciência.
17 DE
FEVEREIRO
Ipsi autem
spreverunt me [mas se revoltaram contra mim (Is 1,2)]
Deus se
compara a uma mãe, que recebe o desprezo dos filhos alimentados com sua carne e
o seu sangue, suas lágrimas e sacrifícios. O texto não nos fala de um simples
abandono de Deus, mas o que é pior, do desprezo que Deus recebe da sua
criatura: spreverunt me [revoltaram contra mim]. Nesse
desprezo, põe o homem toda a sua malícia.
Nosso
Senhor nunca desprezou a ninguém, exceto os fariseus, em cujo orgulho havia
mais do que uma simples indiferença para com a Verdade; havia um desprezo frio
e cínico para com Nosso Senhor. Mal pensavam eles na palavra do Profeta: Vae
qui spernis nonne et ipse sperneris [ai de ti que desprezas e ainda
não fostes desprezado (Is 33,1)].
Se o
desprezo do homem é o que mais ofende a Deus, o desprezo de Deus é o pior que
pode acontecer para o homem. Os Mestres da Lei não se lembram disso? E eu me
lembro? Desprezando a oração, sob o pretexto de aproveitar melhor o tempo, e
descuidando da pureza de minha consciência, com a desculpa de não alimentar
escrúpulos, não estarei desprezando o próprio Nosso Senhor? Esse descuido e
esse desprezo podem me levar ao ponto de ver Nosso Senhor envergonhar-se de
mim: Hunc Filius Hominis erubescet [(Se alguém se envergonhar
de mim e das minhas palavras), o Filho do Homem também se envergonhará (dele) (Lc 9, 26)].
18 DE
FEVEREIRO
Ut
impleamini in omnem plenitudinem Dei [para que sejais
cheios de toda a plenitude de Deus (Ef 3,19)]
Nessa
intenção rezava o Apóstolo, pelos fiéis do seu tempo: Flecto genua mea
ad Patrem [dobro meus joelhos em presença do Pai (Ef 3,
14)]. Certamente que o meu zelo não deseja menos para as almas que me foram
confiadas. Mas, antes de pensar nas almas, tenho que pensar na minha alma. Como
desejar a plenitude de Deus, para outros, se eu mesmo a não desejo para mim?
Eu sou o
nada e Deus é a plenitude. No entanto, por incrível que pareça, essa plenitude
não chega para encher o vazio de minha vida, simplesmente porque a não desejo,
nem me interesso por ela. Quantas vezes não falo da grandeza divina... para os
outros! Eu mesmo não a procuro para a minha vida; ela é muito grande para a
minha mesquinhez.
É que Deus,
sendo a plenitude, não deixa lugar para coisa alguma. E eu gostaria de reservar,
em minha vida, um ou mais lugares para certas coisas que não chego a renunciar
porque não quero perder. Pode ser que pessoas mais simples e de menos formação
vivam mais na plenitude de Deus do que eu. Foi sempre assim: não encontrando
acolhida in diversorio [numa estalagem], Nosso Senhor
se contenta até com um presépio, contando que seja exclusivamente seu.
19 DE
FEVEREIRO
Omnibus
omnia factus sum [fiz-me tudo para todos (1Cor 10,24)]
Assim
falava São Paulo, porque seu zelo não conhecia limites: Ut omnes
facerem salvos [para por todos (os meios) salvar alguns]. São
palavras que refletem a vida mesma de Nosso Senhor e deveriam refletir também a
minha vida.
Quantas
vezes, porém, as almas reclamam o meu trabalho e o meu comodismo se nega porque
estou absorvido em outras ocupações, mais de acordo com o meu gosto! Às vezes,
é meu orgulho que protesta, dizendo que este ou aquele trabalho não me fica
bem. Quantas vezes é minha covardia, procurando refugiar-se em pretextos de
última hora e em desculpas que ela consegue vestir até com aparências de boa
intenção!
É assim que chego, às vezes, a pensar: preciso poupar a minha saúde para poder trabalhar mais. E, sempre a me poupar, não chega nunca esse dia de eu trabalhar mais para Nosso Senhor. Essa prudência demasiada humana acaba matando o meu espírito de sacrifício, meu entusiasmo e meu zelo pelas almas. Se o Bom Pastor tivesse consultado essa prudência o que seria da ovelha desgarrada? Prudentia carnis mors est [a prudência da carne é a morte].
20 DE
FEVEREIRO
Vade et
amplius noli peccare! [Vá e não peques mais! (Jo 8,7)]
O Mestre
não condenou aquela pecadora; sua misericórdia assim não o permitiu: Nec
ego te condemnabo [nem eu te condeno]. Os fariseus, sim,
quiseram condená-la. E foi preciso que o Mestre lhes fizesse ver que não podiam
condenar-se a si próprios: Unus post unum exibant... [retiraram-se
um por um...].
Senhor,
porque não sou misericordioso como Vós e porque sou um pouco pior que os
próprios fariseus, costumo condenar a todos e a tudo. Tratando-se dos outros, o
meu zelo e a minha hipocrisia estão sempre vigilantes, como os Mestres da Lei
que nada perdiam: Excolantes culicem, camelumen autem glutientes [que
filtram o mosquito e engolem o camelo* (Mt 23, 24)]. Exatamente o que
fiz, muitas vezes.
Que eu não julgue ninguém. In quo enim iudicas alterum, teipsum condemnas [no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas]. Esta é uma verdade que já constatei, mais vezes, em minha vida, embora meu orgulho a não aceite. Que eu aprenda a perdoar: Vade [Vá] — sem, no entanto, aprovar o pecado: et amplius noli peccare [e não peques mais]. Que eu guarde o meu zelo para vigiar os meus defeitos. E que não reserve o meu rigor para as faltas alheias, mas para as minhas, que são mais graves. E que eu aprenda, como os fariseus aprenderam, de uma vez por todas, que eu não sou dono da Lei nem senhor único da virtude.
21 DE
FEVEREIRO
Qui faciunt
omnia quae licent... [quem faz tudo o que é permitido.. .]
Foi Santo
Agostinho quem escreveu: Qui faciunt omnia quae licent, cito facient
quae non licent [quem faz tudo o que é permitido, em breve fará o
que não é permitido]. Faltando-nos o hábito da mortificação interior, não
nos preocupamos com o espírito da lei; olhamos somente para a letra e acabamos
aceitando o pecado como coisa muito natural. Cito facient [em
breve fará]: é uma consequência quase inevitável.
Não podemos
e nem devemos andar com o metro nas mãos, a medir cada palmo de terreno,
procurando saber até onde podemos ir sem cair no despenhadeiro. Era essa a
moral dos fariseus para a qual não existe amor a Deus, espírito de sacrifício,
nem delicadeza de consciência. Temos que servir a Deus in spiritu et
veritate [em espírito e verdade].
Não nos
basta salvar apenas as aparências, guardando farisaicamente o pé da letra. Essa
é a moral do mundo. Para nós vale o que diz Nosso Senhor: Spiritus est
Deus, et eos qui adorant, eum, in spiritu et veritate oportet adorare [Deus
é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade (Jo
4,24)]. Tanto amor a Deus e às almas devemos ter para chegarmos a renunciar o
pé da letra e ficarmos com seu espírito: Pater tales quaerit qui
adorent eum [são esses adoradores que o Pai deseja (Jo
4,23)].
22 DE
FEVEREIRO
Non
diligamus verbo... [não amemos com palavras (1Jo 3,18)]
Quantas
vezes não dizemos a Nosso Senhor que o amamos e, tantas vezes, Ele verifica o
contrário em nossa vida. Quantas vezes não pregamos sobre a caridade e, muitas
vezes, o que fazemos não está de acordo com o que pregamos. Nosso Senhor
resumiu a hipocrisia dos fariseus nestas palavras: Dicunt, et non
faciunt [pregam mas não praticam].
O Apóstolo
quer que a nossa caridade não fique em palavras mas se traduza em obras. No
entanto: Opere et veritate [de fato e de verdade] —
porque nem toda caridade é verdadeira. Pode ser que o motivo da nossa caridade
não seja Nosso Senhor mas um mero capricho ou sentimentalismo de nossa parte.
Chegamos então a restringir a nossa caridade a um determinado grupo, a uma
classe de pessoas ou a uma determinada obra de assistência. Pode ser que essa
caridade não seja tanto para os outros mas para nós mesmos.
A verdadeira caridade não é somente aquela que nos agrada; a que não nos agrada é também verdadeira e poderá ser mais meritória. Se não nos resolvemos a praticar a caridade opere et veritate [de fato e de verdade], como quer o Apóstolo, não nos admiremos que os inimigos explorem a falsa caridade como meio de atrair as almas. Saepe videtur caritas, ubi non est nisi carnalitas [Muitas vezes parece ser caridade o que não é senão amor-próprio (Santo Agostinho)].
23 DE
FEVEREIRO
Hic non est
eius [este não é dele (Rm 8,10)]
Se alguém
não tem o espírito de Nosso Senhor não lhe pertence — assim diz o Apóstolo. E o
espírito de Nosso Senhor está entre o Presépio e o Calvário: sacrifício e
imolação. A diferença entre o Bom Pastor e o mercenário é que o primeiro dá a
sua vida pelas ovelhas, imolando-se por elas, e o mercenário foge à imolação a
fim de se poupar.
Não podemos separar o sacrifício do nosso ministério sacerdotal. Sacrifício do orgulho, pela obediência; do comodismo, pela mortificação; da natureza, pela castidade; do apego exagerado, pelo desprendimento. Se não for esse o espírito de nossa vida, poderemos ter todas as qualidades que o mundo admira, mas não seremos os sacerdotes daquele que foi Sacerdote e Vítima também.
As almas, que geralmente têm o sensus Dei [sentimento de Deus], percebem muito bem quando estão diante de um sacerdote que se poupa no trabalho de se santificar e de santificar os outros. Guardam uma certa desconfiança, e, embora não o digam elas pensam com razão: Hic non est eius [este não é dele]. Será essa a impressão que estamos dando com nossa vida? Que impressão amarga, verdadeira desilusão, para aqueles que nos observam!
24 DE
FEVEREIRO
Ut digne
ambuletis [que andeis (viveis) digno (Ef 4,1)]
Que
saibamos viver santamente a nossa vocação — foi o que nos disse o Apóstolo,
quando escreveu: Ut digne ambuletis vocatione qua vocati estis [que
andeis digno da vocação pela qual fostes chamado]. A nossa vocação não
poderá ser vivida com dignidade se a não vivermos com santidade.
São Paulo
mesmo nos lembra que Deus nos escolheu, ut essemus sancti [para
que sejamos santos]. É pela santidade, e somente por ela, que realizaremos
o programa de Deus e o que as almas esperam de nós. Em nossos dias fala-se tanto
na técnica e especialização dos métodos de apostolado. Ótimo, mas não nos
esqueçamos, porém, que a nossa especialização é, por excelência, a santidade.
Sem ela, estaremos no plano comum dos fiéis, embora Nosso Senhor nos queira ver
muito acima, super candelabrum [(como luz) sobre o
candelabro (referência à condição superior de santificação pessoal
exigida pela vocação sacerdotal)].
Quer
sejamos apóstolos da palavra, no púlpito, na imprensa ou no rádio, quer
realizemos maravilhas com a nossa atividade, se não estivermos trabalhando
seriamente em nos santificar, Deus não estará satisfeito conosco: Quaerite
primum regnum Dei! [Buscai primeiro o Reino de Deus!]. Nosso
Senhor não quer de nós um apostolado comum, mas um apostolado de
santidade: In sanctitate et iustitia coram ipso, omnibus diebus
nostris [em santidade e justiça, em sua presença, todos os dias da
nossa vida (Lc 1,75)].
25 DE
FEVEREIRO
Debitores
sumus non carni... [não somos devedores da carne (Rm 8,12)]
Não foi a
natureza que nos salvou, ut secundum carnem vivamus [para
que vivamos segundo a carne (Rm 8,12)] — diz São Paulo. A natureza
nada devemos, a não ser motivos de muito remorso. A graça devemos tudo: Gratia
Dei sum id quod sum [pela graça de Deus, eu sou o que sou].
Não podemos
permitir que o naturalismo entre em nossa vida. Ocultando-se sob a capa de
certas idéias novas, ele se oferece para atenuar e desculpar certas fraquezas,
procurando ignorar o pecado original. Costumamos dizer que a nossa natureza é
fraca; mas ela dispõe de uma força tremenda. E não foi com meias medidas que os
santos chegaram a dominá-la. Apesar de todos os nossos esforços e boa vontade,
não conseguimos fazer que a nossa natureza acompanhe os passos do nosso fervor.
Ferida pelo pecado, mal conseguimos arrastá-la e, se não o fizermos, seremos arrastados por ela. Quanta queda não começou com um simples defeito ou uma má inclinação que pareciam muito inocentes, coisa muito natural como geralmente se diz. O que os santos conseguiram somente à custa de um esforço contínuo, não será com simples desejos que nós iremos conseguir: si spiritu facta carnis mortificaveritis, vivetis [ se, pelo espírito, mortificardes as obras da carne, vivereis (Rm 8,13)].
26 DE
FEVEREIRO
Praedicamus
Christum Crucifixum [pregamos Cristo Crucificado (1Cor 1,23)]
A doutrina
que devemos pregar é a doutrina de um Crucificado. E a vida que devemos viver é
a vida que Ele viveu. Não importa que os pagãos ou semi-pagãos de nossos dias
vejam nisso uma loucura. Não nos podemos impressionar porque o mundo se
escandaliza com nossa doutrina e com nossa vida.
Nossa
vocação é pregar e viver a Redenção que se realizou na Cruz. Somente assim
estaremos cooperando com o Redentor, diante do qual o mundo também se
escandalizou. É verdade que a nossa natureza também estará pronta a fazer coro
com os gentios, reclamando. Não importa; o Modelo que temos a copiar, o Mestre
que temos a seguir é um Crucificado.
Nosso Senhor é sempre o mesmo. E se Ele escandalizou o mundo pagão de outrora, continuará escandalizando o nosso século que alguém caracterizou com este nome: século do colchão de molas... Expressão pitoresca, mas real. Diante do Crucificado, lembremo-nos da palavra do salmista: Firmiter inhaesit gressus meus semitis tuis, non titubarunt pedes mei [fortaleça meus passos em vossos caminhos para que meus pés não se confundam]. Que outros pensem de outra forma, que vivam uma vida diferente: nos autem sensum Christi habemus [nós, porém, temos o sentimento de Cristo (1Cor 2,16)].
27 DE
FEVEREIRO
Simile est
regnum caelorum fermento [O reino dos Céus é como o fermento (Mt
13,33)]
Santo
Afonso não se cansava de insistir com seus missionários: 'Eu vos recomendo um
grande amor a Jesus Cristo!' Com a experiência que tinha, ele sabia que, sem um
grande amor a Nosso Senhor, a nossa vida se torna vazia e inútil toda a nossa
atividade.
Aí está o
fermento que deverá influir em toda a massa de nossa vida cotidiana, dando
força ao nosso apostolado. Uma palavra ou um gesto que tenha amor a Deus é uma
colher cheia de fermento, capaz de transformar as almas. Vazio de Deus, porém,
todo um sermão nada realiza para Nosso Senhor. Doze Apóstolos converteram
nações inteiras porque eles eram realmente apóstolos, que amavam sinceramente o
seu Mestre. O que eles tinham era somente isso: amor a Nosso Senhor.
Às vezes ouvimos dizer: mas o que eu posso fazer sozinho se o trabalho é tanto? Sem dúvida, o trabalho é imenso e aumenta sempre mais. Justamente por isso, se a nossa é grande, o fermento deve estar em proporção. E o fermento não serão as nossas qualidades e os nossos recursos, mas unicamente um grande amor a Nosso Senhor e às almas.
28 DE
FEVEREIRO
aspiciens
retro... [olham para trás (Lc 9,9)]
Senhor,
quantos não começaram a trabalhar na tua vinha com entusiasmo e dedicação para
depois abandonarem tudo! Começaram a olhar para trás, com saudades do que
haviam deixado e acabaram como aquele primeiro filho pródigo: Et
cupiebat implere ventrem suum de siliquis, quas porci manducabant... [e
queria se fartar das alfarrobas (espécie de vagens) que os porcos comiam...].
Depois de te abandonarem, abandonando a oração, todos eles se encontram nesse ponto. Meu Deus, eu sei que não devo olhar para atrás. O que eu abandonei, não me deve mais interessar. Foi uma renúncia livre e espontânea da minha parte, preparada com sinceridade e durante anos. Agora tenho que olhar para a frente porque a tua riqueza é muito grande para me deixar pensar em outra coisa.
Mãos ao
arado — esse o gesto, o mesmo gesto que devo renovar todos os dias. Nenhum
desânimo e nenhum pessimismo deverão cruzar o meu caminho: Non sunt
condignae passiones huius temporis... [os sofrimentos do tempo
presente não são nada...]. Que eu não me esqueça a Quem eu fiz o meu
sacrifício e que eu me lembre para Quem trabalho. Poderei assim ouvir
continuamente a palavra do teu reconhecimento que me espera: Intra in
gaudium Domini tui! [entra na glória eterna do Vosso Deus! (Mt
25, 21)].
29 DE
FEVEREIRO
Memento
quia pulvis es! [lembra-te que és pó!]
Senhor,
todos os dias estou vendo a morte que passa à minha frente, levando outros
consigo. Ela está nas flores que murcham, no ocaso do sol, como na cabeceira
dos agonizantes que assisto. Ela está em toda parte e eu não a quero ver em
parte alguma. Tenho medo de pensar que ela está a meu lado, com a impressão de
que ela já roubou a minha vida. Como se a morte pudesse impedir que eu viva...
No entanto,
diariamente, eu tenho em minhas mãos o Cordeiro divino tamquam occisum [como
que imolado] para eu saber que, todos os dias, deverá extinguir-se um pouco
o óleo da minha lâmpada, para glória do meu Pai. Que eu compreenda, Senhor, a
minha vocação: sepultado in mortem [à morte] pelo
Batismo. Tenho que morrer, todos os dias, um pouco física e espiritualmente.
Quero aprender a contar os meus dias: dinumerare nos doce dies nostros [ensinai-nos
a bem contar os nossos dias] não com a riqueza de quem está perdendo alguma
coisa, mas com a alegria de quem está ganhando a eternidade.
Quero pensar nos dias que vivi, com a alegria de quem pôde lutar e sofrer para a tua Glória. Posso olhar os meus dias que vão morrendo porque a minha vida foi sempre uma lâmpada acesa — super candelabrum [(como luz) sobre o candelabro] — ardendo para a glória do teu Nome. Os meus dias não passaram; foi tua mão quem os recolheu para, com eles, preparar a minha eternidade. Senhor, ensina-me a contar os meus dias, os meses e anos que vivi, com a alegria de quem está prestes a começar uma vida sem fim, com a alegria de um peregrino que volta para a sua Pátria; com a confiança do filho pródigo que encontra finalmente a casa de seu Pai — in gloria Dei Patris [na glória de Deus Pai]. Ensina-me a contar os dias que vivi com a coragem do teu Apóstolo que, alquebrado, no fim da sua carreira, podia exultar, cantando de esperança: cursum consummavi; in reliquo reposita est mihi corona iustitiae [terminei a carreira, me aguarda desde agora a coroa da justiça (2 Tm 4,7-8)].
MARÇO
10 DE MARÇO
Sub capite spinoso [sob uma Cabeça coroada de espinhos]
Uma palavra de São Bernardo, que nos
pede um exame de consciência: Non decet sub capite spinoso esse membrum
delicatum [não convém um membro tíbio sob uma Cabeça coroada de
espinhos]. Cristo é a nossa Cabeça, mas uma Cabeça coroada de espinhos. Ele
aceitou todas as dores e todo o sarcasmo daquela coroa. E nós... com essa
Cabeça coroada de espinhos, poderemos viver à procura de conforto, de fama,
elogios e bem estar?
Crescamus in illo qui est caput
Christus [cresçamos em todos os sentidos,
naquele que é a Cabeça, Cristo (Ef 4,15)]. Embora nossa natureza não
se simpatize muito com uma Cabeça coroada de espinhos, embora nosso orgulho se
recuse a aceitá-la, é com ela que devemos crescer na virtude, para que, unidos
também a ela, o Pai nos possa, um dia, reconhecer por filhos. O nosso comodismo
precisa saber que momentaneum quod delectat, aeternum quod
cruciat... [é passageiro o que deleita, é eterno o que
atormenta...].
Poucas almas neste mundo foram tão
provadas como o Apóstolo. E se ele nunca desfaleceu foi porque teve os olhos
sempre voltados para a glória, que deveria substituir os espinhos: reposita
est mihi corona iustitiae [me aguarda a coroa da justiça]. Por
isso a Igreja também nos lembra a recompensa final: ab ipso gloria et
honore coronari mereamur in caelis [para sermos coroados em glória
e esplendor no Céu]. Triste seria se perdêssemos de vista o que o Profeta
já previu: corona tribulationis effloruit...[a coroa de
tribulações resplandecerá...(como uma coroa de glória), conforme Is 28,5].
02 DE MARÇO
Stude cognoscere te [Estude para conhecer a ti mesmo]
Ao nos dar este conselho, São Bernardo
pergunta: Quid prosunt lecta et intellecta, nisi temetipsum legas et
intelligas? [De que adiantam as coisas lidas e entendidas se não
leres e entenderes a ti mesmo?]. Muita coisa, certamente, está reclamando o
nosso estudo e a nossa atenção. Para a nossa vida pastoral, já não podemos
dispensar sequer a leitura dos jornais. Mas, entre todos os conhecimentos úteis
e necessários, há um que nunca poderá ser descuidado; é o conhecimento de nós
mesmos.
Para a construção do edifício da nossa
virtude, não nos basta um conhecimento superficial de nós mesmos, uma ideia
vaga das nossas boas e más qualidades. Precisamos nos conhecer a fundo, para
sabermos com que material iremos construir. Alguma coisa poderemos aproveitar
do vetus homo [homem velho] e não será muito,
certamente. Tudo o mais terá que ser material novo, trabalhado com muito
esforço e perseverança.
Se por menos não se faz um simples cristão, quanto mais tratando-se de um Alter Christus! [um segundo Cristo!]. Certamente não nos iremos transformar na lux mundi [luz do mundo] com uns simples retoques de boa vontade e alguns bons desejos. Compreendamos São Boaventura rezando: Transfige medullas et viscera animae meae! [transpasse a medula e as entranhas da minha alma!].
03 DE MARÇO
Quorum deus venter est [cujo deus é o ventre (Fl 3,19)]
Qual será o meu deus — perguntava
alguém — será Deus mesmo? Aí está uma pergunta que eu também deveria fazer, às
vezes, à minha consciência. Pode ser que Deus não esteja sendo o meu Deus, como
penso geralmente.
Quando uma alma procura libertar-se de Deus acaba escrava de si mesma. As paixões a dominam e, não vivendo para Deus, ela vive para o orgulho, para a sensualidade e para a ambição. A experiência mostra que, quando uma alma se cansa de Deus, é porque não tem mais forças; o pecado a destruiu. Preciso colocar Deus no centro de toda a minha vida para o qual terá que convergir toda a minha atividade. Ele será a única direção dos meus pensamentos, desejos e preocupações.
E se não for assim, minha vida não será mais que uma agitação contínua, em todas as direções, sem uma finalidade que a leve, dirija e sobrenaturalize. Frequenter et ferventer da mihi, dulcissime Domine, cor meum ad Te dirigere [com fervor contínuo, o meu coração possa se erguer para Vós, Senhor] — quanta sabedoria neste pedido de Santo Tomás! E, reconhecendo a minha dissipação: defectionem meam, cum emendationis proposito, dolendo pensare [com o firme propósito de arrepender-me e emendar-me das minhas faltas]. Que eu procure o meu Deus sicut cervus desiderat fontes aquarum [como o cervo anseia pelas águas da fonte].
04 DE MARÇO
Nisi folia tantum [somente folhas (Mt 21,19)]
À procura de frutos naquela figueira,
Nosso Senhor não encontrou mais do que folhas. Foi tudo o que a árvore lhe
ofereceu. Minha vida sacerdotal também poderá chegar a esse ponto: ser uma
figueira estéril, uma vida vazia, que nada oferece para a eternidade.
Se eu não viver com Nosso Senhor poderei realizar muito, mas Ele não aceitará nada. Preciso viver da sua vida, pois qui manet in me, et ego in eo, hic fert fructum multum [quem permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto (Jo 15, 5)]. Por si mesmo, a minha vida é apenas uma figueira estéril. Ele me escolheu e, com isso, mostrou que confia em mim. Só mesmo a sua misericórdia para confiar nessa nulidade que eu sou. Agora preciso corresponder, apresentando a Nosso Senhor o fruto do meu trabalho, realizado na minha alma e nas almas que Ele me confiou. Quanto não poderei fazer se eu souber trabalhar com Ele!
Que a noite não me venha lembrar aquele
remorso: diem perdidi! [perdi o dia!]. Minha vida é a
vinha de Nosso Senhor e a toda hora Ele quer recolher frutos, já que folhas não
interessam. Tenho que lhe entregar meu tempo, minha saúde, minhas forças,
porque tudo lhe pertence. E para não iludir suas esperanças a meu respeito,
basta que eu conte com Ele sempre: Gratia Dei mecum [que a
graça de Deus esteja comigo!].
05 DE MARÇO
Eluceat in eis totius forma iustitiae (Pontifical) [brilhe neles o modelo de
toda justiça (virtude)]
'A grandeza e a força do padre vêm por
ser ele um homem plenamente de Deus e das almas. Ser homem de Deus é, antes de
tudo, tender à perfeição da divina caridade: sancti estote, quia ego
sanctus sum, Dominus Deus vester [sereis santos porque Eu, Vosso
Deus e Senhor, sou santo (Lv 19,2)].
Hoje como ontem, a santidade tem, como
condições indispensáveis, a oração e a ascese. Não poderemos recomendar
bastante, por mais que o façamos, a todos os nossos filhos empenhados no
trabalho do ministério sacerdotal que se examinem sobre a sua fidelidade no
exercício dessa dupla obrigação.
Não foi sem motivo que, no início
do nosso pontificado*, demos esta palavra de ordem a todos os sacerdotes
da Igreja: Orate, magis magisque et instanter orate! [Orai,
orai cada vez mais e com maior insistência!]. As grandes leis que regem a
união a Deus e à fecundidade apostólica são as mesmas no decorrer dos séculos:
a cruz continua sendo o instrumento de nossa salvação; é sempre pelo sacrifício
de si mesmo, inspirado pela caridade divina, é sempre in oratione et
jejunio [em oração e jejum] que o Príncipe deste mundo tem de
ser vencido'. Diante dessas palavras de Pio XII*, é lamentável que se
coloque sob outra base a santidade das almas.
06 DE MARÇO
Omnes ejecit de templo [expulsou todos do templo (Jo
2,15)]
Quanta indignação e quanta energia em
Nosso Senhor no dia em que fez aquela limpeza no Templo! O Mestre da mansidão
surpreendeu a todos, com a sua atitude firme, transbordante de
autoridade: Omnes ejecit de templo, oves quoque et boves, et
nummulariorum effudit aes, et mensas subvertit [expulsou todos do
templo, e também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos
cambistas e derrubou as mesas].
Toda a minha vida deve ser a casa de
Deus uma vez que Ele deve estar presente em tudo. Mas, posso dizer que ela tem
sido aquela domus orationis [casa de oração] que Nosso Senhor
espera? Pode ser que eu tenha introduzido, em minha vida, alguma ou muita coisa
que não pertence a Deus, nem a Ele se dirige.
Quanto trabalho que eu poderia ter
entregue a Nosso Senhor e eu vendi por um pouco de vaidade! Quanto sacrifício
que eu poderia ter feito em meu apostolado e não fiz, preferindo um descanso
bem dispensável! Quantas obras de zelo que nem cheguei a iniciar para ter uma
vida mais cômoda e sossegada! E a minha meditação, minha leitura espiritual, o
Breviário, o recolhimento... não foram também negociados? Preciso por ordem na
minha vida, mas com aquela decisão e energia de que Nosso Senhor me deu como
exemplo.
07 DE MARÇO
Ut mederer contritis corde [para curar corações contritos (Is
61,1)]
É principalmente no confessionário que
o sacerdote exerce o seu ofício de médico das almas. Tão importante quanto
pesado, esse munus [encargo] exige do confessor:
Doutrina — recolhida não somente nos
anos de seminário, mas principalmente depois através da experiência e do
estudo; Piedade — um doente da alma não busca apenas a um sábio; Compreensão —
paciente, sem facilitar conversas inúteis e compreensivo, sem exageros de
complacência, o confessor saberá ganhar a confiança do doente; Zelo — estando
pronto para socorrer a todos e não reservando sua atenção para meia dúzia de
almas eleitas; Prudência — não se deixando contagiar nem ser influenciado pelo
penitente, sendo reservado em determinados assuntos e comedido nas
palavras.
Não se confunda a prudência com o escrúpulo, nem o zelo com o apego. Assim como o médico do corpo, também o médico das almas, ao atender os seus doentes, terá que precaver-se contra possíveis contágios. Se a rispidez prejudica o penitente, excessos de delicadeza comprometem o confessor. Alguém observou, e com razão, que o sentimentalismo nunca deve estar presente no confessionário.
08 DE MARÇO
Filii lucis estis et diei [sois filhos da luz e do dia (1Ts
5,5)]
No dia em que nasci para a graça, pelo
batismo, uma luz estava ao meu lado, lembrando a Fé que Deus se dignou acender
em minha vida: accipe lampadem ardentem! [recebe a luz
da fé! (do rito batismal)]. Pelo sacerdócio fui escolhido para
viver in domo Domini, omnibus diebus vitae meae [na casa do
Senhor, por todos os dias da minha vida]. E como viver diante da Luz
eterna, se minha vida não for também uma luz pela santidade que me deve
distinguir? Sic luceat lux vestra! [Assim brilhe a vossa
luz! (Mt 5,16)].
Isto quer dizer que eu devo brilhar não
somente pela dignidade mas, de um modo especial, pela virtude. Non
sumus noctis neque tenebrarum [não somos da noite e nem das trevas (1Ts
5,5)] — o que o Apóstolo escreveu para os simples fiéis deverá valer muito mais
para mim. Como irei iluminar aqueles que vivem na treva, e na sombra da morte
se eu estiver nas mesmas ou em piores condições?
Não serei a luz do mundo se eu não viver em pleno dia de uma absoluta sinceridade com minha consciência e com Deus. Mais devoção para com o dia do meu batismo! Ele me lembra que preciso viver às claras, não me refugiando à sombra de pretextos e desculpas. Sicut in die honeste ambulemus [vivamos honestamente como em pleno dia (Rm 13,13)] — com meu Deus, eu posso e devo ser sincero. E uma consciência limpa irá tornar a minha vida clara e luminosa como o dia.
09 DE MARÇO
Recogitabo tibi omnes annos meos [recordarei todos os meus anos (Is
38,15)]
Sobre os anos que já vivi, não é muito
o que posso ver, porque é pouco o que a minha memória pode alcançar. Mesmo
assim tenho que olhar para os caminhos que já deixei atrás. In
amaritudine animae [com amargura da alma], um dia o filho
pródigo pôs-se a pensar e compreendeu a própria situação. É assim também que eu
devo olhar para a minha vida.
Graças a Deus vejo muito esforço
realizado, à sombra da boa vontade que sempre me acompanhou. Mas não posso
fechar os olhos, diante das falhas e quedas que estão marcando os meus
caminhos. Muitas vezes nada mais fiz que arrastar penosamente o peso da minha
miséria, para que ela não me arrastasse. Aqui e ali, sobram restos de um
esforço inútil porque achei que meu entusiasmo não se deixaria vencer. Eu, que
deveria ser o guia e apoio para outros, mal conseguia me manter de pé.
Meu Deus, eu quis vencer a distância
sozinho e agora reconheço que a boa vontade não é tudo. Não posso confiar tanto
em mim mesmo. Preciso confiar mais no auxílio que a tua mão me oferece,
enquanto me repetes o que tantas vezes já ouvi: Surge et ambula! [Levanta-te
e anda!].
10 DE MARÇO
In his quae didicisti [naquilo que aprendeste (2Tm 3,14)]
Não podendo servir a dois senhores, ao
mesmo tempo, também não podemos seguir a outro Mestre que não seja Nosso
Senhor. Unus est Magister vester [um só é o Vosso
Mestre]. E conhecemos bem a sua doutrina. Tudo o que Ele nos ensinou, com a
palavra e com o exemplo, está entre o Presépio e a Cruz.
Entre esses parênteses de renúncia e humilhação não está certamente uma vida fácil; o que se vê é o sacrifício de uma Vítima. O mundo também quer ser o nosso mestre e a nossa natureza olha com muita simpatia para tudo o que ele nos quer ensinar. Sempre houve quem quisesse abrandar Nosso Senhor, visando amaciar a sua doutrina. Tentativa inútil; entre a humilhação do Presépio e o aniquilamento do Calvário, existe apenas uma explicação: regnum caelorum vim patitur et violenti rapiunt illud [o reino dos céus é tomado à força e são os violentos que o arrebatam (Mt 11,12)]. Foi essa realidade que o Mestre nos deixou.
Nosso Senhor nunca modificou a sua
doutrina para adotá-la ao gosto do homem. Antigo ou moderno, o homem é quem
precisa adaptar-se à palavra do Mestre. Si quis vult post me venire [Se
alguém quer vir após mim ] — Ele não força ninguém, mas se quiser,
terá que ser assim: abneget semetipsum et tollat crucem suam [negue-se
a si mesmo e tome a sua cruz cada dia (Lc 6, 23)]. Esta palavra é
bem clara, para não nos deixar dúvidas.
11 DE MARÇO
Omnia sustineo propter electos [tudo suporto pelos escolhidos (2Tm
2,10)]
São Paulo certamente não exagerou
quando disse que suportava tudo pelas almas; seu ideal não era outro: Ut
et ipsi salutem consequantur [para que eles encontrem a
salvação]. E as suas Cartas e Atos já nos dão uma ideia do que ele sofreu
no apostolado.
Nós não podemos resumir o nosso zelo em
celebrar diariamente a Santa Missa, e depois, esperar que nos chamem para
administrar algum sacramento. Mais alguma coisa? Sim; pelo menos a oração e o
estudo. Temos que ser, nas mãos de Nosso Senhor, instrumentos aptos a realizar,
pelas almas, tudo o que Ele quer realizar. Com Ele, que somos nós? Que podemos
fazer, unidos a Ele, tendo em nós Jesus vivo, habitante, operante? Tudo. Omnia
possum in eo que me confortat [tudo posso naquele que me fortalece
(Fl 4,13)].
Portanto, não somos nós os autores das
obras apostólicas, mas instrumentos de Deus, cultivadores do seu campo,
dispensadores da sua palavra e da sua graça: dispensatores mysteriorum
Dei [administradores dos mistérios de Deus (I Cr 4,1]. Se
perdermos o contato com Deus e com os livros, deixaremos de ser instrumentos da
graça para sermos simples máquinas de trabalho. Que apostolado imenso não
poderá realizar uma inteligência cheia de cultura, num homem cheio de Deus!
12 DE MARÇO
Sine me nihil potestis facere [sem mim nada podeis fazer (Jo
15,5)]
"O que somos todos nós, o que
fazemos todos nós? Sem Jesus não somos nada e, sem Ele, nada podemos fazer.
Compreendereis em cheio a necessidade, para todos quantos desejam trabalhar na
vinha do senhor, de estarem estreitissimamente unidos a Ele, de se
identificarem com Ele.
Não é difícil imaginar o que
aconteceria ao mundo, se todos os sacerdotes se apresentassem aos homens non
in persuasibilibus humanae sapientiae verbis, sed in ostensione spiritus et
virtutis [não com os discursos persuasivos da sabedoria humana, mas
antes com os efeitos sensíveis do espírito e da virtude (de Deus)
(1Cor 2,4)], pois a luz da fé, a firmeza da esperança e o ardor da caridade não
derivam da sabedoria dos homens, mas da força de Deus.
Se neles for Jesus quem reza, Jesus
quem prega, Jesus quem opera, quem poderia descrever a abundância das águas a
fluir pelo mundo e as plantas a se multiplicarem, o encanto das flores e o valor
dos frutos? Possa Jesus fazer resplandecer em vosso espírito o encanto desta
luz e fazer-vos sentir no coração a força desta certeza! Possa Jesus tornar-se
o senhor absoluto de vossas almas!" (Pio XII).
13 DE MARÇO
Adversarius vester circuit [vosso adversário anda ao redor (1Pd
5,8)]
São Pedro no-lo mostra tamquam
leo rugiens [como o leão que ruge], solto, à procura da
presa, circuit, quaerens quem devoret [anda ao redor,
buscando a quem devorar].
Mas o demônio sabe muito bem despistar
a própria presença. Desde o Paraíso, ele já usa máscara. Quanta vítima ele já
não fez, escondido na desculpa de que isto ou aquilo é muito natural! Não
haverá condescendência e até certo interesse em querer ignorá-lo? Se ele não
está em certas ocasiões perigosas que eu facilito: leituras, diversões,
amizades, onde estará ele então? Somente no inferno?...
É a própria Igreja quem me avisa que
ele anda pelo mundo, para por a perder as almas. E se há uma alma que ele deseja
perder, essa é a minha. Um padre que ele desvia do fervor, são multidões que
ele ganha. Para se destruir ocultamente uma casa, nada melhor que minar os seus
alicerces e, ferido o pastor, as ovelhas não terão defesa. Preciso atender
melhor a minha consciência. Não posso descuidar, toda vez que ela der o sinal
de alarme. Eu sei que ela não costuma gritar sem motivo...
14 DE MARÇO
Pacem meam do vobis [dou-vos a minha paz (Jo 14,27)]
A paz de Nosso Senhor era a serenidade
imperturbável de quem sabia ter cumprido sua missão: Ego te clarificavi [eu
te glorifiquei]. A paz de Deus supõe a paz da consciência. E esta precisa
estar viva, em liberdade, pois a paz de uma consciência amordaçada ou morta
pelo pecado é a paz do sepulcro; e esta certamente não é a paz de Nosso Senhor.
Non turbetur cor vestrum [não se perturbe vosso coração] — era
o que o Mestre aconselhava aos discípulos que, logo mais, o iriam abandonar.
Mas seria essa uma fraqueza que eles não estavam prevendo. Apesar de tudo,
continuariam com seu Mestre, passada a tempestade. Não havia, por isso, motivos
de confusão e desespero.
Na minha vida, a única desordem é
sempre o pecado. E essa desordem é que gera a confusão. Se eu não estiver em
paz com Deus, não estarei contente comigo mesmo; minha consciência não terá
paz, a não ser que esteja morta... Quando eu não mais puder olhar para Deus,
com a consciência tranquila; quando eu tiver medo da presença de meu Pai;
quando eu não tiver mais coragem de falar com Ele, então, sim, terei que me
inquietar, para resolver logo a minha situação: ibo ad Patrem meum [irei
ao meu Pai].
15 DE MARÇO
Omnipotentes facit omnes qui in se
sperant [(Ele) torna
todo-poderosos aqueles que nEle esperam (São Bernardo)]
Foi Nosso Senhor mesmo quem garantiu a
onipotência para aquele que crê e confia: Omnia possibilia sunt
credenti [tudo é possível para aquele que crê]. Se os santos
realizaram milagres, isto é, o impossível, foi porque puderam dispor da
onipotência divina, pela fé e confiança em Deus.
Em meio ao nosso apostolado, muita
coisa há que deve ser realizada, mas que nos parece impossível. Como
transformar para o bem um mundo positus in maligno [sob o
julgo do maligno]? Como santificar as almas que vivem nesse mundo, ouvindo,
vendo e respirando o mal continuamente? Se a fé puser em nossas mãos a força de
Deus, tudo será possível.
O apostolado que Nosso Senhor indicou
aos seus discípulos, humanamente falando, era um absurdo. No entanto, a fé e a
confiança no Mestre realizaram o impossível: Confidite, ego vici
mundum! [Tende confiança, Eu venci o mundo!]. Eles confiaram, e
venceram também. Se quisermos trabalhar, contando com as nossas forças e
ignorando a força de Deus, perderemos o nosso tempo. Com ele, porém, a nossa
fraqueza realizará maravilhas e o nosso trabalho fará milagres.
16 DE MARÇO
Veni, Domine Jesu! [Vinde, Senhor Jesus!(Ap 22,20)]
Era assim que o teu Apóstolo rezava. Na
sua inocência e no seu amor, ele suspirava pela tua presença, e te pedia com
sinceridade: Veni, Domine! [Vinde, Senhor!]. Mas eu,
Senhor, preciso de um médico, porque o pecado me assaltou nos meus caminhos e,
precisando de uma força para manter a minha fraqueza, de uma luz para iluminar
a escuridão em que vivo e precisando de um amigo e de um pai, não chego a pedir
a tua presença, nem me interesso pela tua vinda.
É que eu tenho medo de contrariar
aqueles que se apossaram de mim, tomando conta de minha vida. O orgulho, a
leviandade, o comodismo, o apego, a dissipação, não iriam concordar com a tua
presença. Não serias somente um incômodo para eles, mas a própria morte. À tua
chegada, alguma ou muita coisa teria que morrer em mim; a minha indecisão e a
minha covardia não se conformam com isso.
Senhor, Tu sabes que, apesar de tudo,
eu desejo a tua presença em minha vida. Ainda que eu não o diga, por medo,
atende o desejo de minha alma que te pede: Veni, noli tardare! [Vinde,
não tardeis!].
17 DE MARÇO
Tu non poteris quod isti et istae? [Tu não podes fazer o que outros
fizeram? (Santo Agostinho)]
Frequentemente acontece que não realizamos em nossa alma o que conseguimos realizar nas almas. Não raro uma simples palavra nossa é suficiente para despertar, em outros, o arrependimento e bons propósitos. Chegamos mesmo a operar verdadeiras conversões; mas, impressionando a outros, nem sempre conseguimos impressionar a nós mesmos.
Quanto não nos falam o Breviário, a
Santa Missa, os Sacramentos, as Verdades que pregamos! E que impressão nos
fazem? Levam-nos realmente a uma vida mais fervorosa? É que nos falta a vontade
séria de melhorar. Falta-nos a energia necessária para colocarmos a virtude no
lugar ocupado por determinadas faltas. Fazemos o papel daquele rapaz do
Evangelho, o qual, com um simples bom desejo, pensava poder ganhar o Reino dos
Céus. O que outros conseguiram, nós também poderíamos realizar, se
resolvêssemos querer isso com toda a sinceridade.
Duc in altum [avança para o Alto*] — que Deus
nos livre dessa praia que é a mediocridade. Ele nos quer lutando, no mar alto,
pois já nos avisou que simples desejos não abrem as portas do seu Reino. É
preciso muito mais. Que o digam os santos!
* nas palavras de Cristo no Evangelho:
avança mar adentro, rema para águas mais profundas, busca sempre e em tudo as
coisas de Deus.
18 DE MARÇO
Si fidem quis dicat se habere opera [se alguém diz ter fé mas não tem
obras (Tg 2,14)]
O Apóstolo já estranhava a fé sem as
obras e perguntava: Quid proderit? [qual é o benefício
(disso)?]. É uma fé morta, que nada realiza. Nós também estranhamos, na
vida de outros, essa fé que se resume em determinadas exterioridades. Muitos há
que têm fé, sem religião; mas há também os que dizem ter religião e não têm fé,
porque não a vivem.
Podemos dizer que a nossa vida esteja sendo realmente uma consequência das verdades que cremos? É o resultado de uma fé viva? A vida eterna, a presença de Deus, a malícia do pecado, a necessidade da oração, enfim, as verdades que eu creio, talvez estejam mais nas minhas palavras, que na vida que eu levo. Minhas orações não caíram na rotina? E minha atividade não estará sendo fruto, não do zelo, mas de uma natureza irrequieta ou de uma vaidade mal controlada?
In fide vivo Filii Dei [vivo na fé do Filho de Deus] — por isso, o Apóstolo foi capaz de realizar tanto para Deus e para as almas; soube ser o justo que vive realmente da fé. E eu, que procuro reavivar a fé em outras almas, porque não faço o mesmo em minha alma? Que não seja para mim a admiração de São Gregório: En haec credidisti, et tamem sic vixisti? [Nas coisas crestes, mas foi deste modo que vivestes?].
19 DE MARÇO
Cum esset iustus [porque era (homem) justo (de
bem) (Mt 1,19)]
Com isso, o Evangelista nos diz que São
José era bem o Homo Dei, Homem de Deus, como nenhum outro. Para
viver ao lado da santidade infinita, Ele foi o Santo, o Justo, que trabalhou
para Nosso Senhor até à morte. Que modelo para nós!
Em certo modo, a nossa missão é muito
superior a de São José. Mas a nossa virtude estará também à altura dessa
dignidade a que Deus nos elevou? Se a santidade não está exigindo que todos os
dias apresentemos grandiosas realizações, ela exige, no entanto, que ponhamos,
cada vez mais, amor e dedicação em tudo o que fazemos. Somente a caridade
poderá impedir que a nossa vida seja um fracasso.
Para realizar menos do que nós, São
José foi o Santo, o Justo. E nós? Alimentamos realmente um desejo firme,
sincero, dessa santidade sacerdotal que nos devem distinguir? Certamente nunca
seremos dignos da grandeza a que fomos elevados; mas nem por isso nos iremos
dar por satisfeitos, com a pouca virtude que já alcançamos. Se quisermos
progredir, há muito ainda por fazer nesse campo de nossa vida interior. Cum
esset iustus [porque era (homem) justo] — aí
está toda a biografia de um santo. Oxalá essa palavra possa resumir também a
nossa vida!
20 DE MARÇO
Sub umbra alarum tuarum [sob a sombra de tuas asas (Sl
16,8)]
Santo Inácio costumava dizer: 'Nada de
grande fará para Deus aquele que teme exageradamente os homens'. Um dia, São
José teve que empreender uma fuga para o Egito. Sem conhecimento algum da
região, por estradas desertas, ele saiu para iniciar a vida numa terra
completamente estranha. Acompanhado de uma mulher e de uma criança, era um pobre
homem perseguido por um exército. Mas, confiando em Deus, entregou-se à
Providência; obedeceu, e salvou a vida do Redentor. Enquanto isso, fracassaram
todos os planos de um rei que dispunha de todos os meios para realizar o seu
intento. A velha história de Davi, enfrentando Golias...
De que meios dispomos para as lutas do
nosso apostolado? Somos uma simples gota de fé, lutando para sobreviver num
oceano de paganismo. O mundo tem tudo para perder as almas. Jogando com o
dinheiro e com a sensualidade, sua força de atração é simplesmente
irresistível.
Nós, como atração, apresentamos uma cruz e, quando muito, uma promessa. Humanamente seria para desanimar. No entanto, omnia possum in eo qui me confortat [tudo posso naquele que me fortalece (Fl 4,13)]. Nossa força não repousa nos meios humanos, mas na palavra do Mestre: Ego vici mundum [Eu venci o mundo].
21 DE MARÇO
Sperant ut peccent [esperam confiantes para poder pecar (Santo
Agostinho)]
O Santo Doutor se refere àqueles que
não se resolvem a romper com o pecado. Confiam na bondade divina e fazem a
paciência de Deus esperar, enquanto continuam pecando. Dinumerari non
possunt quantos haec inanis spei umbra deceperit [ó quantos
não são enganados por essa vã esperança]. Realmente, esta é uma esperança
falsa.
Nosso Senhor já nos falou daquele homem
que, tendo uma dívida a pagar, pediu humildemente: Patientiam habe in
me, et omnia reddam tibi [tem paciência comigo e eu te restituirei
tudo]. Logo depois estava aumentando a sua culpa... Quantas vezes não
lamentamos, diante de Deus, esta ou aquela queda! Se Deus nos dissesse que é a
última vez, tomaríamos mais cuidado. Mas, porque contamos com a sua paciência
infinita, saímos da sua presença para novos pecados. Se Deus nos chamou, ante
mundi constitutionem [antes da criação do mundo], não foi
certamente para ficar à nossa espera.
O Bom Ladrão não pediu a Nosso Senhor que o livrasse da morte para converter-se depois. Mas converteu-se na hora em que a Graça o tocou. Certamente a paciência de Deus não tem limites, contanto que ponhamos um limite à nossa tibieza. Por isso Ele já nos avisou, e tantas vezes, que poderá chegar de surpresa, para um ajuste definitivo das contas...
22 DE MARÇO
Consepulti cum illo per baptismum [sepultados com Ele pelo batismo (Rm
6,4)]
Aí está a nossa vocação batismal: Viver
com Cristo, sepultados na Graça, ut destruatur corpus peccati, et ultra
non serviamus peccato [para que o corpo do pecado seja destruído e para
que não sejamos escravos do pecado (Rm 6, 6)].
Se pelo batismo já fomos sepultados com
Nosso Senhor, quanto mais pelo sacerdócio! Desse vetus homo [homem
velho] que o batismo sepultou, nasce um homem novo, com novo espírito
— christianus [cristão] — o qual, elevado pelo
sacerdócio, é transformado num alter Christus [outro Cristo]. Compreendamos
porque tendo afirmado um dia: Lux sum mundi [sou a Luz do
mundo], Nosso Senhor afirmou o mesmo a respeito dos seus discípulos: Vos
estis lux mundi [vós sois a Luz do mundo].
Temos que ser, aos olhos do mundo, uma continuação viva de Nosso Senhor. A diferença que o hábito clerical nos imprime, diante de todos, é uma diferença apenas exterior, com a qual não nos podemos contentar. O que os deve distinguir é a vida sobrenatural que devemos viver: Ut quomodo Christus surrexit a mortuis, ita et nos in novitate vitae ambulemus [como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova (Rm 6, 4)]. Essa a consequência do batismo e do sacerdócio. Se não realizarmos essa transformação interior, tudo o mais será inútil para que as almas vejam em nós a luz do mundo. Elas sabem distinguir bem a realidade e o artifício e não ignoram que um simples hábito clerical não basta para fazer um sacerdote.
23 DE MARÇO
Lux venit mundum [a luz veio ao mundo (Jo 3,18)]
O que ninguém poderia esperar: a Luz
eterna, infinita, fez-se homem. Descendit de caelis [descido
do Céu] — veio ao mundo, para viver conosco et habitavit in nobis [e
habitar entre nós]. No entanto... dilexerunt homines magis tenebras
quam lucem [os homens amaram mais as trevas que a luz (Jo
3, 19)] e isto não se podia também esperar. Mas São João explica: erant
enim eorum mala opera [pois suas obras eram más (Jo 3,
19)]. As más obras não podiam mesmo tolerar a Luz, e preferiram as trevas.
Na meditação, no exame de consciência,
continua descendo sobre mim essa Luz eterna. Mas eu tenho sempre um certo medo
de estar a sós com Deus e de falar com minha consciência. Porque será? Diante
de Deus, eu teria de constatar as minhas faltas e a consciência me iria
repreender. No recolhimento e na oração, eu teria que tomar certas resoluções,
que seriam a morte de algumas ou de muitas faltas que eu não quero renunciar.
Prefiro assim, não me achegar muito à Luz...
Com Deus, eu não posso viver às escuras. Ele é a Luz que tudo penetra e devassa em minha vida. Preciso viver em dia com Nosso Senhor e estarei em paz com minha consciência. Que queira sinceramente acabar com certas faltas e evitar certas ocasiões e não precisarei ter tanto medo da oração e nem do exame de consciência.
24 DE MARÇO
Et stupebant super doctrina eius [maravilham-se com a sua doutrina (Mc
1,22)]
Não era para menos. Ele não tinha outra
doutrina senão a Verdade simples e límpida, que sempre atrai aqueles que a não
conhecem. Ele não falava para agradar, mas para convencer.
A nossa palavra, às vezes, não chega a
penetrar as almas, não toca nas consciências, não produz resultado. Por que? A
distância do ouvido ao coração é muito grande. Somente a palavra cheia de Deus
a pode percorrer. Às vezes não damos ao povo a Palavra que Nosso Senhor nos
deu: simples, cheia de zelo, de mansidão e, principalmente, de doutrina.
Oferecemos a palavra dos homens, muito estudada, e até enfeitada, mas vazia de Deus,
e até de nós mesmos porque a não vivemos. Essa palavra não vai do ouvido ao
coração; falta-lhe a força.
As almas não se deixam impressionar pela vaidade, mas pela verdade. E esta, não a podemos improvisar, embora possamos contar com os recursos de uma exuberante retórica. Antes de ser ensinada, a Verdade precisa ser vivida, para ter força de penetração. As almas não se interessam pela água de uma palavra eloquente, caprichada, mas vazia. Elas querem é a Verdade: ad eum vinum non habent [eles já não têm vinho (Jo 2, 3] — numa palavra, cheia da vida que Nosso Senhor lhe deu.
25 DE MARÇO
Ecce ancilla Domini [eis a serva do Senhor (Lc 1,38)]
Ela nunca teria esperado ver diante de
si um Anjo, saudando-a com aquelas palavras: Ave, gratia plena! [Salve cheia
de graça!]. E, menos ainda, teria imaginado para si a maternidade divina.
Que momento aquele na vida de Nossa Senhora. Começava a ser Mãe do seu Criador,
continuando uma simples criatura.
E o momento mais sublime da sua vida foi, por excelência, a hora da sua humildade. Como se não quisesse penetrar todo o significado daquela saudação, preferiu apegar-se à ideia que sempre fizera de si mesma: ecce ancilla Domini [eis a serva do Senhor] — o Anjo a diz 'Mãe do Senhor' e ela se diz apenas 'escrava'. Naquele momento, Nossa Senhora compreendeu a sua missão; Deus a queria nos seus planos de redenção do mundo. E ela nada mais poderia querer, senão servir; estava pronta para cooperar: sou a sua serva, cumpra-se a sua vontade!
A ideia que eu faço de mim mesmo é ditada pela humildade? Meus pensamentos, palavras e atitudes não trazem sempre a cor da vaidade e do orgulho? Se eu vivo preocupado com aparecer, é natural que a humildade não tenha, em minha vida, o seu momento. Acho que ela poderia me rebaixar... O non ministrari, sed ministrare [não para ser servido, mas para servir] deve valer para mim também.
26 DE MARÇO
Adversus insidias diaboli [contra as ciladas do demônio (Ef
6,11)]
Para podermos enfrentar as ciladas do
demônio, o conselho do Apóstolo é este: induite armaturam Dei [revesti-vos
da armadura de Deus]. Fechar os olhos para não se ver o perigo é sempre uma
imprudência muito grande. E infelizmente há os que procedem assim. Mas se
examinarmos, com sinceridade, a nossa consciência, ela nos dirá que, em nossos
caminhos, há realmente ciladas e não poucas: Satanas expetivit vos ut
cribraret sicut triticum [satanás vos postulou para vos peneirar
como trigo]. Nosso Senhor certamente não exagerou.
Pecando com facilidade, alguém chega ao ponto de não ver mais o perigo. É que as faltas continuadas criam o hábito do pecado e este se encarrega de justificar tudo. Compreende-se então essa lamentável leviandade com que são aceitas, e até procuradas, certas ocasiões perigosas. Somente uma piedade sólida, alimentada pela oração e vigilância, nos dará essa armatura Dei [armadura de Deus] que São Paulo nos manda vestir.
Um Apóstolo achou que, à força dos inimigos, podia opor-se pela força da sua espada e esta nada mais fez do que cortar a orelha de um criado. Logo depois, a língua de uma mulher bastou para fazê-lo negar o seu Mestre, aquele que antes só falava de morrer com Ele. Eis aí uma advertência pesada para nós.
27 DE MARÇO
Spiritus postulat pro nobis [O Espírito intercede por nós (Rm
8,26)]
Enquanto eu trabalho, enquanto eu rezo
ou me sacrifico pelas almas, no fundo da minha alma, Alguém reza por mim. É o
Espírito Santo quem fala ao Pai em meu favor. Como? Gemitibus
inenarrabilibus [com gemidos inefáveis] — diz o Apóstolo.
E quanto eu me afasto de Deus, quando
falto aos meus deveres ou me entrego à dissipação, Ele continua rezando. O que
Ele pede para mim, o que diz a meu respeito, eu não sei. Mas, qui
scrutatur corda scit quid desideret Spiritus [aquele que perscruta
os corações sabe o que deseja o Espírito (Rm 8, 27)]. Se o meu
fervor precisa de Deus, muito mais a minha indiferença e 'e aquele que
perscruta os corações sabe o que deseja o Espírito', a minha tibieza. Se eu
pudesse penetrar esse mistério! A vida de Deus em mim; a ação do Espírito Santo
em minha alma! Como posso esquecer uma verdade tão consoladora?
O Espírito Santo vive em mim e me acompanha; Ele se preocupa, Ele se interessa pela minha santificação. Eu o recebi pelo batismo, pela confirmação, pelo sacerdócio; é em mim dulcis hospes animae [doce hóspede da alma]. E dele eu me lembro tão pouco! Se eu me interessasse mais pela sua presença em minha alma, se eu contasse mais com essa realidade, compreenderia a delicadeza do Apóstolo escrevendo: nolite contristare Spiritum Sanctum, in quo signati estis [não contristeis o Espírito Santo, com quem estais assinalado]. Preciso ter esse cuidado...
28 DE MARÇO
Religio pura et immaculata [religião pura e imaculada (Tg
1,27)]
São Tiago a define, dizendo: visitare
pupillos et viduas in necessitatibus eorum [visitar os órfãos e as
viúvas em suas necessidades]. Minha religião com Deus obriga-me a pensar
nos filhos de Deus, interessando-me por eles. Tenho que sofrer com meus irmãos
que sofrem, socorrendo-os, espiritual e também materialmente.
Dificilmente irá pensar no Reino dos Céus o homem que não tem o mais necessário neste mundo. Mas, acrescenta o Apóstolo: Et immaculatum se custodire ab hoc saeculo [e conservar-se sem mácula neste mundo]. Eu não tenho deveres somente para com meus semelhantes; eu os tenho, principalmente, para com meu Deus. E como irei pensar em Deus, se me deixar arrastar pelo espírito do mundo que o não conhece? Pater juste, mundus te non cognovit [Pai Justo, o mundo não te conheceu (Jo 17,25)].
Somente irei pensar que meus semelhantes são meus irmãos, se me lembrar que eu e eles temos o mesmo Pai, Aquele que está nos céus. Não posso, portanto, aceitar o contágio do mundo, sob pretexto de fazer caridade ao mundo. Impossível esquecer meu Deus, porque devo pensar nos meus irmãos. Caridade absurda, a de querer socorrer aos outros, com prejuízo da minha consciência. Tanto mais eficiente será minha caridade quanto mais livre eu estiver no mundo. Então, minha caridade estará cheia de Deus.
29 DE MARÇO
Mihi mundus crucifixus est [o mundo está crucificado para mim (Gl
6,14)]
A crucificação era o ódio, a execração
e a ignomínia que caíam sobre o condenado à cruz. Para o mundo, nós somos uns
crucificados. Ele não nos entende e nem pode contar conosco. Por isso ele não
nos quer e nos cobre como seu desprezo, ridicularizando o nosso modo de
pensar. Si mundus vos odit [se o mundo vos odeia (Jo
15, 18)] — ele nos dá o que tem.
Mas que o mundo esteja também
crucificado para nós. Positus in maligno [sob o julgo do
maligno], ele só pode merecer o nosso desprezo, pela sua malícia e
leviandade. Das suas vítimas, sim, nós nos compadecemos, e por elas, temos que
fazer tudo; certamente merecem o nosso interesse, a nossa dedicação.
Dois crucificados — nada podem fazer um
pelo outro. O mundo nada fará por nós; não lhe pedimos, nem esperamos por isso.
Mas ele também nada exija de nós e nem espere a nossa condescendência para com
a sua leviandade. De modo alguma nossa compaixão para com os que erram poderá
se transformar em aprovação ou tolerância para com seus erros. Estamos e
devemos estar crucificados para esse mundo mergulhado na malícia. Mortui
sumus peccato; quomodo adhuc vivemus in illo? [se estamos mortos ao
pecado, como poderemos ainda viver nele?]. Realmente seria um absurdo.
30 DE MARÇO
Cum veneris in regnum tuum [quanto estiveres em teu reino (Lc
23,42)]
Senhor, eu sei que a tua misericórdia,
infinita como é, não pode me esquecer. Ela me acompanha e me assiste, qual uma
mãe que não abandona o seu filho. E, ainda que essa mãe fosse capaz de esquecer
o filho de suas entranhas, o teu amor nunca seria capaz de me esquecer.
Aquele ladrão que agonizou e morreu ao
teu lado, no Calvário, não era um dos teus amigos. Não viveu contigo, nem
sequer te conhecia. E teve a coragem de pedir m lugar no teu Reino, que a tua
misericórdia não teve coragem de lhe negar. Somente esse gesto da tua bondade
bastaria para me mostrar que és realmente o Amor, a misericórdia, o perdão.
Senhor, eu te venho acompanhando há
tantos anos... e Tu sabes que toda a poeira da minha imensa miséria não chegou
a secar aquela gota de boa vontade que me deste. Confesso que, ao longo do meu
caminho, há vestígios de muita infidelidade, sombras de muita negação. Mas, há
também, e Tu o sabes, muito golpe de espada em tua defesa, e muito sacrifício
vencido por teu amor. É por isso que, com a mesma coragem do Bom Ladrão, eu
olho para o meu Redentor e, com a mesma confiança, eu lhe peço: Memento
mei, Domine! [lembra-te de mim, Senhor!].
31 DE MARÇO
Ager est mundus [o campo é o mundo (Mt 13,38)]
'Há um mundo corrupto e corruptor,
porque impregnado do mal — in maligno positus [sob o julgo
do maligno]. Este mundo foi condenado por Jesus — nunc judicium est
mundi [agora é o juízo deste mundo (Jo 12,31)]. A este
mundo vós não pertenceis e, por isso, ele vos odeia — quia de mundo non
estis... propterea odit vos mundus [porque não sois do mundo, por
isso o mundo vos odeia].
Com este mundo não vos deveis misturar, e menos ainda, confundir. Não podeis entreter diálogos, descer a pactos ou procurar compromissos; seu príncipe é Satanás — princeps huius mundi [príncipe deste mundo] — e com Satanás não pode haver acordo. Há porém um outro mundo: o mundo que Deus amou: Sic Deus dilexit mundum [porque deus amou o mundo] — o mundo ao qual Jesus foi enviado, não para condená-lo, mas para salvá-lo: Non misit Deus Filium suum in mundum, ut iudicet mundum, sed ut salvetur mundus per ipsum [pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele (Jo 3, 17)] — neste mundo há rebentos que esperam ser cultivados; plantas que querem crescer e multiplicar-se; frutos a serem recolhidos.
Há, sobretudo, um terreno à espera de ser semeado. Sulcos estão prontos,
traçados e escavados em profundidade pelas desilusões sofridas, pelas lágrimas
derramadas, pela intensa vontade de ver reflorescer a fé e frutificar a
esperança. Quereríamos que não considerásseis os espinhos que existem aqui e
ali, mas apenas o bom terreno, que não falta e está esperando, embora
inconscientemente, uma farta sementeira' (Pio XII).
ABRIL
Dominus
operam eius desiderat [O Senhor precisa dele (Lc 19,31)]
Os
discípulos deram apenas uma explicação: O Mestre queria o jumentinho para a sua
entrada triunfal em Jerusalém. Queria — e isso era tudo. Nosso Senhor quis
viver de esmolas; e muitas vezes Ele teve que pedir favores. Um pobre homem que
nada tinha, nada podia. Mas, quando disse, Duc in altum [avança
para o Alto; mar adentro] — Veni, sequere me [vem,
segue-me] — ou Laxate retia vestra [lançai as vossas
redes] — eram ordens que Ele estava dando, e queria ser obedecido.
Se hoje
ainda Ele me repete aquele: Ite et vos in vineam meam [Ide
vós também para a minha vinha], Ele não está me perguntando se posso ou se
não posso, se tenho qualidades ou se não tenho forças. Ele quer a minha
obediência pronta e generosa. Quer o meu trabalho, no conjunto da sua glória
infinita. E eu não posso ficar estudando as suas ordens ou analisando a sua
vontade. Nem posso discutir os caminhos que a sua Providência quer trilhar.
O que tenho
a fazer é aceitar o trabalho que Ele me impõe. Sem demora, tenho que por mãos à
obra. E nem devo estranhar que Ele queira precisar da minha miséria para a sua
glória. Naquele dia, em Jerusalém, Ele, aclamado em seu triunfo, não quis usar
de um jumentinho?
02 DE ABRIL
Totus in
maligno est [todo (o mundo) sob o maligno (1Jo
5,9)]
Já em seu
tempo, São João não se enganava a respeito do mundo: in maligno est [sob
o julgo do maligno]. Se assim era, assim continua sendo. E é nesse mundo
que eu devo trabalhar, é nesse mundo que eu devo viver, como um estranho, que
ninguém compreende. Tenho que conservar a humildade, afogada entre os
arranha-céus do orgulho que a despreza.
Tenho que
ser pobre, desapegado e simples, em meio ao luxo que zomba do meu
desprendimento. Tenho que guardar a inocência, qual uma flor em meio ao pântano
da malícia e sensualidade que me rodeia. Tenho que me sacrificar no trabalho
pelos outros, quando todos buscam o conforto e se afogam no prazer. Tenho que
voltar meus olhos para o alto, quando todos me ensinam e tudo me obriga a
buscar o pó da terra. E tenho que guardar acesa a luz da minha fé, quando todas
as tempestades se arrojam sobre ela...
Deus me
colocou tão alto!... para me ver lutando neste mundo tão baixo! Senhor, em meio
a tanta negação, aumenta a minha resistência e a minha força na Fé! Haec
est victoria quae vincit mundum: Fides vestra [Eis a vitória que
vence o mundo: a vossa fé].
03 DE
ABRIL
Erit Fletus
et stridor dentium [(ali) haverá choro e ranger de dentes (Mt
8,12)]
Quase não
compreendo essas palavras naqueles lábios divinos que tantas vezes se abriram,
para consolar e perdoar. O Pai das misericórdias e Deus de toda consolação,
falando-me de um suplício eterno, em termos bem claros e severos. Mas tenho que
agradecer a sua misericórdia que não me escondeu essa verdade. Se Ele a repetiu
tantas vezes, é porque eu a devo meditar não apenas uma vez.
Suas ameaças foram pronunciadas com o mesmo amor com que pronunciou as suas palavras de perdão. Ele me avisou para não ter que me castigar. Certamente que o inferno não foi criado para aqueles que o temem, mas para aqueles que o querem ignorar. Ele existe para a má vontade. Mas eu também o devo temer, pois a experiência me diz que não posso confiar muito na minha vontade. Acaso ela também não foi ferida pelo pecado?
Nos insensati... erravimus a via veritatis; ambulavimus vias difficiles, viam autem Dei ignoravimus [nos enganamos... nos desviamos do caminho da verdade; andamos por caminhos difíceis e ignoramos o caminho de Deus]. Quantos não tiveram de reconhecer isto já à hora da morte! Quid nobis profuit superbia?... aut divitiarum iactantia? Transierunt omnia illa tamquam umbra. Talia dixerunt in inferno hi qui peccaverunt [o que ganhamos com o nosso orgulho? ... a riqueza mais a arrogância? ... tudo isso desapareceu como sombra. São tais coisas que os pecadores dizem no inferno (Sb 5,8.9.14)].
04 DE
ABRIL
Nescitis
quid petatis [não sabeis o que pedis (Mt 20,22)]
O meu
orgulho e o meu mau humor nunca viram com bons olhos aquela mater
filiorum Zebedaei, cum filiis suis, petens aliquid ab eo [a mãe dos
filhos de Zebedeu, com seus filhos, para lhe fazer uma súplica]. Demasiada
pretensão, a daquela mulher, pedindo nada menos que os primeiros lugares do
Reino, para seus dois filhos. Ambição exagerada, que não via a desvantagem para
os outros, que também eram discípulos do Mestre.
No entanto,
preciso agradecer a essa mulher simples e ignorante. Seu gesto de inocente
pretensão me mostrou como Nosso Senhor é bom e humano. Minha vaidade não teria
dado atenção àquela pobre mãe, que se preocupava com seus filhos e Nosso Senhor
a atendeu. Meu comodismo não a teria ouvido e Nosso Senhor a ouviu
pacientemente. Meu orgulho não a teria desculpado e Nosso Senhor a desculpou
diante dos discípulos.
Eu, que não
tenho humildade para pedir, que não tenho inocência para me aproximar de
Deus... eu, que sempre me coloco de cima, como se não precisasse rezar, ouço o
pedido daquela mulher, para dizer que era uma pretensão ingênua, ridícula. Mas,
na sua encantadora simplicidade, a mãe dos dois discípulos me diz que a minha
vaidade é bem mais ridícula e que o meu orgulho é bem mais desprezível diante
de Deus.
05 DE
ABRIL
Nolite
diligere mundum! [não ameis o mundo! (1Jo 2,15)]
E como ter
amor a este mundo se ele não me pertence e nem eu lhe posso pertencer? Por mais
que eu amasse a este mundo, ele nunca poderia ser meu, porque estou por aqui de
passagem. Por alguns anos... ou por alguns dias... não sei; o certo é que, a
qualquer momento, eu poderei sair deste mundo.
Nesse caso,
o que me deve interessar é a Casa de meu Pai, que me espera na eternidade. É
para lá que eu devo ir pobre de tudo, porque lá eu terei muito mais. Essa casa
é a minha herança, a infinita riqueza que meu Pai me preparou. Não a posso
perder de vista, preocupando-me com este mundo e apegando-me a coisas que não
poderei levar comigo.
In domo
Patris mei [na casa do meu Pai] — sim, lá eu não serei um
estranho; serei de casa, membro da família, com direitos adquiridos por toda a
eternidade. Cum sanctis tuis, in aeternum [com os teus
santos, pela eternidade] — embora muito indignamente, irei ocupar o meu
lugar no Laus [glória, louvor] perene dos meus irmãos.
E, eternamente dono de uma riqueza infinita, eu irei agradecer ao meu Pai a
casa que Ele me preparou: In conspectu angelorum psallam Tibi, Deus
meus! [Louvar-Vos-ei, Deus meu, em presença de vossos anjos!].
06 DE ABRIL
Omnia
arbitror ut stercora [tudo (do mundo) considero como esterco (Fl
3,8)]
Não devo
estranhar que os mundanos amem tanto o mundo em que vivem. Nem posso admirar
que eles se apeguem, com todas as forças, ao pó da terra. O que existe para
eles é isso; não conhecem outra coisa. O que eu devo estranhar, sim, é que eu
não me apegue tanto a Nosso Senhor como a minha vocação exige.
Quando alguém não conhece o sobrenatural, o eterno, só pode amar o temporal, interessando-se pelo nada que tem nas mãos. O próprio São Paulo confessa que, antes de conhecer a Nosso Senhor, bem apegado andou à miséria deste mundo: Quae mihi fuerunt lucra... [o que para mim era lucro...]. Não me basta, portanto, conhecer o pouco ou nenhum valor deste mundo. Não me basta censurar o exagerado apego com que os mundanos se agarram ao pó da terra. Não me basta clamar contra essa verdadeira idolatria que eles praticam, diante do dinheiro, do luxo e do prazer.
O que eu preciso é conhecer, sempre mais, a riqueza infinita de Nosso Senhor in quo sunt omnes thesauri sapientiae [na qual estão todos os tesouros da sabedoria (Cl 2, 3)]. Quanto mais eu conhecer essa riqueza, tanto menos irei pensar em outra coisa. Preciso conhecer, para depois repartir com as almas, Aquele de cujus plenitudine omnes accepimus [de quem a plenitude todos recebemos].
07 DE ABRIL
Excidetur,
et in ignem mittetur [cortada (a árvore) e lançada ao
fogo (Lc 3,9)]
Será esse o
fim da árvore que não dá bons frutos. Se a árvore da minha vida não está dando
maus frutos, posso dizer que, com isso, ela já está sendo o que Deus quer? Não
fazer o mal é certamente alguma coisa; mas não devo pensar que isso basta. Deus
não me chamou às alturas do sacerdócio, para eu ser apenas uma boa árvore... de
sombra.
Uma figueira estéril não interessa a Nosso Senhor. O que Deus quer e espera de mim são os frutos de vida eterna. Por isso tenho que me preocupar com os frutos das boas obras que eu devo recolher aos celeiros de meu Pai. Pater meus agricola est [meu Pai é o agricultor (Jo 15,1)]. Um dia o Mestre estranhou a indolência de um grupo de trabalhadores, entregues à ociosidade: Quid statis tota die otiosi? [que fazeis ociosos todo o dia?]. E eles não estavam fazendo o mal. Faltava-lhes no entanto fazer o bem: Ite et vos in vineam meam [ide também vós à minha vinha].
Preciso
pensar que, por omissão, também se peca. Se as circunstâncias não me permitem o
trabalho direto na santificação das almas, indiretamente eu poderei fazer
muito. E desse trabalho não me posso dispensar. Em plena luta de vida ou de
morte para as almas, lamentar o mal não é tudo o que eu devo fazer.
08 DE
ABRIL
Non est
Regnum Dei esca et potus [o Reino de Deus não é comida e nem
bebida (Rm 14,17)]
Meu Deus,
preciso compreender bem esta palavra do teu Apóstolo. E não a posso esquecer no
meu apostolado, porque ela me mostra o espírito com que o Apóstolo via o teu
Reino nas almas. Se eu não posso desprezar as coisas que me parecem
insignificantes, também não posso transformar a minha vida numa nuvem de pó,
cheia de agitação e de escrúpulos.
Ouço que me
mandas por as mãos ao arado. E eu não posso perder tempo, a verificar se esse
arado é leve ou pesado, se a sua lâmina corta ou não. O que me pedes é o meu
trabalho. Queres que eu lance as redes ao mar. E eu não posso dizer que esperes
e que as almas esperem também, até que eu estude, na retórica, a finura do meu
gesto de pescador.
Tu queres
as almas e com urgência. Por isso não posso ficar debruçado sobre os meus
livros, a estudar a matemática dos meios, nem a escrupulosa perfeição dos meus
planos de apostolado. Não posso protelar o meu trabalho, a estudar
continuamente o modo como irei realizar o que me pedes. Que eu seja prudente,
sim, não desprezando o estudo e a ponderação no meu apostolado. Mas que eu não
ignore nunca a eficácia da tua Graça sobre tudo o mais.
09 DE
ABRIL
Lazare,
veni foras [Lázaro, vem para fora! (Jo 11,43)]
O sacerdote
é, como Lázaro, o amigo particular, o confidente de Nosso Senhor. É nas mãos do
sacerdote que Nosso Senhor coloca o tesouro das suas graças, a chave da sua
misericórdia, a riqueza da sua doutrina. Domine, ecce quem amas [Senhor,
aquele que Vós amais (Jo 11,3)] — o sacerdote é simplesmente aquele
que Nosso Senhor ama com verdadeira predileção, a ele se entregando numa prova
de absoluta confiança.
Quando um
sacerdote abandona o seu Mestre e Amigo, renunciando ao fervor ou à própria
vocação, só mesmo um milagre da infinita Misericórdia para arrancar esse
infeliz do túmulo em que se encerrou. O Bom Pastor não se nega a procurar a
ovelha desgarrada: Vado ut excitem illum... [vou
despertá-lo...]
É preciso
que Nosso Senhor derrame as lágrimas da sua misericórdia e do seu amor: Et
lacrymatus est Jesus [Jesus pôs-se a chorar (Jo 11, 35)].
Nem é para menos, porque corruptio optimi pessima [a
corrupção dos melhores é a pior] — a ponto de arrancar lágrimas a Nosso
Senhor. Por isso, diante do sacerdote vítima da tibieza ou do pecado, é preciso
que Ele mande e grite com toda a insistência do seu amor: voce magna
clamavit... [exclamou em alta voz...], num último e supremo
esforço da sua misericórdia: Lazare, veni foras! [Lázaro,
vem para fora! (Jo 11,43)]. E, apesar de tudo, às vezes, o milagre não
se realiza...
10 DE
ABRIL
Et
mirabantur, quia cum muliere loquebatur [e maravilharam-se de que
estivesse falando com uma mulher (Jo 4,27)]
Certamente
porque não era esse um costume do Mestre. Também nesse ponto, Ele quis chamar a
nossa atenção para a vigilância e prudência. Não podemos dizer que a mulher
seja sempre, para o homem, um desvio no caminho da virtude. Mas também não
podemos ignorar a força tremenda que o chamado sexo frágil exerce sobre o
homem.
Diz um
autor que, no Paraíso, a mulher parece ter adquirido uma extraordinária força
para impressionar, para convencer e seduzir. Reconhecendo-se mais fraca que o
homem, ela não se manifesta, não se revela tanto como ele; é mais inclinada à
falsidade. E o demônio sabe muito bem isto. Interessado em perder as almas, ele
sabe usar da mulher para os seus planos. Já no Paraíso, não tentou diretamente
ao homem. Tentou primeiro a mulher. E a experiência lhe deu resultado. Desde
então, a mulher ficou sendo o instrumento cem por cento da sua confiança.
Não
precisamos ver o demônio onde ele não está. Mas não podemos ignorar onde ele
possa estar. Até certo ponto é verdadeira a observação do Cardeal Bona:
'a mulher conserva sempre o seu costume de expulsar o homem do Paraíso...'
11 DE ABRIL
Fiat
voluntas tua [seja feita a Vossa Vontade (Mt 6,10)]
No seu
inspirado 'Hino da Conformidade', Santo Afonso conta: 'Ó vontade de meu Deus,
como és digna de amor! Se nem sempre a sabemos amar, é porque nem sempre a
reconhecemos. Porque a nossa vontade quer reinar soberana em nossa vida, a
Vontade divina lhe parece uma força inimiga, invadindo os seus domínios. Com
isso não nos conformamos.
Fiat
voluntas tua [seja feita a Vossa Vontade] — é o que diariamente dizemos
a Nosso Senhor, olhando-o sobre o altar, como Vítima. É a hora em que Ele nos
aparece como perfeita expressão da conformidade às exigências da Justiça
divina. Essa conformidade fez Nosso Senhor suar sangue no Jardim das Oliveiras.
Tanto, certamente, Ele ainda não exigiu de nós. Mas, porque viu em tudo a
Vontade do Pai, Nosso Senhor não desfaleceu, aceitou tudo, e foi para o
Calvário.
Que será de
nossa vida, se não soubermos ver em tudo a Vontade de Deus? Iremos semear o
nosso caminho com queixas e reclamações, perdendo o respeito aos deveres e
obrigações que enchem o nosso dia de trabalho. Realizar o mínimo, e isso porque
não há outro remédio, não é digno de um filho de Deus, nem de um amigo de Nosso
Senhor. Delectabor in mandatis tuis, quae diligo [deleitar-me
em vossos mandamentos, que eu amo (Sl 118, 47)].
12 DE ABRIL
Benedicam
Dominum omni tempore [bendirei por todo o tempo o Senhor (Sl 33,2)]
Diz o
Apóstolo que o sacerdote é o Homo Dei [homem de Deus], isto é, o homem que vive
continuamente com Deus. Não é o homem que reza de vez em quando, em
determinadas horas do dia, mas é aquele que vive rezando, porque a oração é a
sua vida.
Ubicumque
fueris, intra temetipsum ora [onde quer que estejas,
reze consigo mesmo] — é o conselho que nos dá São Bernardo. Interrompido o
contato entre a nossa alma e Deus, faltará vida sobrenatural à nossa vida
humana. Aos olhos da dissipação do mundo, nada mais edificante que o sacerdote,
transformado numa oração viva e contínua. Certamente não haverá pregação que
penetre tanto as almas: 'Como prega bem Frei Exemplo! Não precisa alvoroçar o
templo'...
Em contínuo
contato com Deus, o sacerdote se transforma no Homem de Deus. Em todo o seu
modo de pensar e de agir, haverá sempre um reflexo do mundo sobrenatural em que
ele vive. Diante dele, as almas sentir-se-ão diante de Nosso Senhor. Dessa
pregação, nenhum sacerdote poderá se dispensar. Muda, indireta, é a pregação de
todo momento, que pode estar em toda parte. Qual uma chuva mansa e silenciosa,
ela penetra as almas, impressiona a todos, sem necessidade de raios nem
trovões. Vivus est enim sermo Dei, et efficax, et penetrabilior omni gladio
ancipiti [porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante
do que uma espada de dois gumes (Hb 4,12)].
13 DE ABRIL
Si secundum
carmem vixeritis... [se viverdes segundo a carne (Rm 8,13)]
Lamentando
a falta de fervor do clero de seu tempo, São Bernardo observou: Producitur
somnus, producitur mensa, producuntur recreationes et lusus; solius Supremae
Maiestatis cultus, summa qua potest celeritate, deproperatur [prolongam
o sono e o tempo gasto à mesa, postergam as recreações e os passatempos; mas
apressam o culto à Suprema Majestade o máximo que podem apressar].
Não estará,
nessas palavras, um retrato da minha vida? Queixo-me frequentemente do excesso
de trabalho e da consequente falta de tempo. Mas, poderei dizer que não tenho
tempo para o meu repouso, para as minhas leituras, para as minhas distrações,
passeios e visitas? Est modus in rebus [há uma medida (limite) das
coisas]— e até no meu trabalho devo ter medida. O que não está certo,
porém, é que eu dê todo o meu tempo ao trabalho e ao descanso, descuidando com
isso da minha vida interior.
Nesse caso, um horário firme deverá diminuir um pouco a minha atividade e o repouso, para que minha alma também tenha a sua vez... de ser atendida. Pio XII tinha o mundo todo nas suas preocupações, e era homem da oração porque, se os cuidados andavam com ele, ele andava sempre com Deus. Que eu saiba dar o tempo necessário ao Deus das minhas obras e, certamente, não ficarão prejudicadas as obras do meu Deus.
14 DE
ABRIL
Misereor
super turbam [tenho compaixão desse povo (Mc 8,2)]
Se Nosso
Senhor quisesse dar a sua opinião a respeito de certas pregações e panegíricos,
Ele teria que repetir a sua palavra: 'Tenho pena deste povo!' A um homem,
religioso e simples, que saía da igreja, após a pregação de um famoso orador
sacro, alguém perguntou: 'Que tal o pregador?' — 'Ele falou de tudo; mas não
falou de Deus'. Uma palavra que vale por uma acusação.
Diante de
certos pregadores, muitas vezes, somos obrigados a lamentar como
Jeremias: Petierunt panem, et non erat qui frangeret eis [as
crianças pedem pão e não há quem o reparta (Lm 4,4)]. Não é certamente
com flores que se mata a fome a um indigente. As almas não nos pedem flores nem
doces. Elas querem o pão que Nosso Senhor lhes deu; e tem direito de no-lo
pedir. Elas querem uma palavra somente; mas uma palavra que esteja cheia de
Deus, porque, de outra coisa, elas não se alimentam.
Para os
alardes de ciência, vale a pergunta do Apóstolo: Et peribit infirmus in
tua scientia, propter quem Christus mortuus est? [e vai se perder
pela tua ciência o fraco, por quem Cristo morreu? (1 Co 8, 11]. E para
a falta de estudo, para a falta de preparação, a dolorosa afirmação do mesmo
São Paulo: ignorantiam Dei quidam habent... alguns vivem na
ignorância de Deus... (1Co 15,34)].
15 DE
ABRIL
Vos, cum
sitis mali... [vós, que sois maus (Mt 7,11)]
Meu Deus,
eu devo ser mesmo um poço de maldade para estranhar tanto as provas da tua
misericórdia infinita! Como os Mestres da Lei, eu me escandalizo, porque o teu
amor ama os pecadores e a tua Providência os procura.
Como os
Apóstolos que não te compreendiam, eu acho também que devias ter arrasado
aquela cidade que não te quis receber. Teria sido uma lição para aquele povo.
Como os fariseus, que te compreendiam ainda menos, acho também uma exibição
absurda o que fez aquela pecadora que te lavou os pés, à hora daquele banquete.
Minha
maldade não pode entender o teu amor; por isso não se conforma com a tua
misericórdia, perdoando setenta vezes sete vezes... Sim, eu penso que és mau
como eu sou. Por isso tenho tanto medo de Ti e fico, de longe, medindo o oceano
das tuas misericórdias, com a medida curta de uma grande mesquinhez. E não me
lembro que a maior prova da tua paciência e do teu amor sou eu mesmo, com toda
a minha miséria.
16 DE ABRIL
Vulpes
foveas habent [as raposas têm as suas tocas (Mt 8,20)]
E o Mestre
não teve sequer onde reclinar a cabeça. Ele não foi somente um homem pobre;
foi, principalmente, um desapegado de tudo, mesmo do mais necessário. Alguém
escreveu: Jesus é pobre, infinita e rigorosamente pobre. Príncipe da grande
pobreza e Senhor da miséria perfeita.
E Santo Afonso acrescenta: 'muitos gostariam de seguir a esse Pobre, contanto que nada lhe faltasse'. Não será esse o meu caso? Nosso Senhor não exige que eu viva como Ele, numa perfeita miséria. Permite que eu tenha o necessário; mas não pode permitir que eu me apegue a coisa alguma. Por causa desse apego, Ele foi vendido, um dia. E não será esse desejo de possuir o que o mundo oferece que mata, nas almas, o interesse pelo que é de Deus?
Quanto mais
eu desejar deste mundo, tanto menos irei desejar a Nosso Senhor. Por
experiência eu sei que, diante do conforto e bem estar, desaparecem o espírito
de sacrifício, o zelo, os exercícios de piedade, o fervor. Pars
haereditatis meae [minha parte de herança (Sl 15,5)] —
ainda me interesso por ela? Primeiro o desapego de tudo; depois poderei
apegar-me a esse Pobre, Senhor das riquezas infinitas: Da pauperibus,
et veni, sequere me [dá aos pobres, vem e segue-me (Mt
19,21)].
17 DE ABRIL
Sine
intermissione orate [orai sem cessar (1Ts 5,17)]
A um grupo
de crianças, um sacerdote narrava os milagres de um santo quando uma delas,
inocentemente, lhe perguntou: 'Padre, porque o senhor também não é um santo?'
Essa pergunta impressionou o sacerdote que reconheceu depois: 'Não sou um santo
porque não rezo'.
É São
Bernardo quem nos mostra o resultado da oração: a) Mentem purificat [purifica
o espírito] — os pensamentos se elevam, arejados; b) Regit affectus [rege
as afeições] — os sentimentos e afetos não ficam às soltas; c) dirigit
actus [direciona as ações] — o nosso trabalho deixa de ser mera
agitação; d) corrigit excessus [corrige os excessos] —
porque os mostra e indica os meios de correção; e) componit mores [regula
os costumes] — sobrenaturaliza a nossa vida; f) vitam honestat et
ordinat [dá rumo e ordem à vida] — a união com Deus põe tudo no
seu devido lugar.
Compreendemos
São Tiago recomendando: Tristatur aliquis vestrum? Oret. Aequo animo
est? Psallat. [Alguém dentre vós está triste? Reze! Está alegre?
Cante. (Tg 5,13)]. Quantas vezes eu me perguntar: 'por que não sou um
santo?', tantas vezes terei que responder, com minha consciência: 'Não sou um
santo porque não levo uma vida de oração'. E se eu não rezo, não serei nunca o
padre que sonhei ser um dia.
18 DE ABRIL
In omni
patientia et doctrina [com toda paciência e empenho de instruir (2Tm
4,2)]
Dada a
natureza do seu ministério, muitas vezes terá o Padre que repreender e
censurar. É este um dever a que não poderá fugir, sob pena de uma grave
omissão. Terá que fazê-lo, no entanto, in omni patientia et doctrina [com
toda paciência e empenho de instruir]. Dessa forma, estará mais ensinando
que repreendendo.
In omni
patientia [com toda paciência] — muitas vezes será necessário
insistir porque o mal não se deixa arrancar de uma vez. E nesses casos, a
precipitação e a impaciência nada resolvem. Et doctrina [e
empenho de instruir] — gritamos muito contra certos abusos. Mas, talvez,
não ensinamos e esclarecemos o suficiente. Nós mesmos achamos difícil obedecer
sob ameaças e ofensas. Conseguiremos mais, procurando formar uma mentalidade
esclarecida.
Fortiter in
re [firmeza no trato] — é certo que não podemos cruzar
os braços e condescender com o erro, ignorando-o. Mas, suaviter in modo [suavidade
nos modos] — não são os nossos nervos, mas a prudência que nos deve indicar
os meios de combater os abusos, sempre com paciência e doutrina. Os trovões e
as tempestades não fazem germinar as sementes nem crescer as plantas. Uma
chuvinha fina, de doutrina persistente, é o melhor que podemos fazer cair sobre
a messe das almas.
19 DE ABRIL
Ut
exhibeatis... hostiam viventem [para que ofereceis... um
sacrifício vivo (Rm 12,1)]
Essa hóstia
viva deve ser o resultado de uma transformação, operada por um sacrifício. Mas
Deus não nos quer como vítimas de um sacrifício imposto à força. A castidade
foi a melhor parte que livremente escolhemos. Aceitando a dignidade sacerdotal,
não fomos vítimas de nenhuma crueldade; aceitamos uma vocação, e, com ela, uma
renúncia.
Deus não
nos quer em sua casa, como condenados, arrastando penosamente uma carga injusta
ou imprevista; nem se compraz em nos ver como vítimas de um castigo que nos
abate e revolta. Ele nos quer simplesmente como filhos. Tratando-se de um Pai,
qualquer renúncia será aceita com generosidade e alegria. Marcado com o
arrependimento, ou com a má vontade, nosso sacrifício não poderia ser bem
aceito. Hilarem datorem diligit Deus [Deus ama quem se dá
com alegria (2Co 9,7)].
Ninguém se comove, nem se sente agradecido, diante de uma atenção forçada, sem alegria ou espontaneidade. Justamente por isso Deus nos ama como seus filhos prediletos porque lhe oferecemos um sacrifício livre aceitando, com a nossa vocação, uma renúncia que outros não quiseram ou não foram capazes de lhe oferecer: quidquid habeo, id Tibi restituo [Vós me destes tudo o que possuo].
20 DE
ABRIL
Neminem
viderunt, nisi solum Jesum [não viram ninguém mais, mas tão
somente Jesus (Mt 17,8)]
Cansados de
caminhar sempre saturados com o povo que lhes não dava sossego, os Apóstolos
gozaram bem um pedaço do céu, naqueles momentos da Transfiguração: Bonum
est nos hic esse [é bom estarmos aqui (Mt 17,4)]. O
espetáculo fôra deverás deslumbrante.
Durou pouco
aquela ante visão do Paraíso, mas foi bem aproveitada. E quando ela terminou,
tinham desaparecido Elias e Moisés, mas o Mestre ali estava como sempre; e isso
era o principal para eles. Há muitos anos que eu vivo com Nosso Senhor. Moro na
sua casa, trato continuamente com Ele e, todos os dias, eu o tenho diante de
mim, tamquam occisum... [como que imolado... (Ap
5, 6)] transfigurado, portanto, pelos outros e por mim também.
Se não o posso contemplar no Tabor, é na transfiguração do Calvário que eu o tenho diariamente em minhas mãos. No entanto, a minha missa termina e eu não continuo a ver nisi solum Jesum [tão somente Jesus]. De tal forma penetra a dissipação em minha vida, que não chego a perceber a presença de Nosso Senhor. Mihi vivere Christus est [para mim o viver é Cristo (Fp 1,21)] — era assim que vivia o Apóstolo e assim eu também deveria viver. Para isso tenho que viver o programa que ele realizou: Omnia, et in omnibus Christus [Cristo é tudo para todos (Cl 3,11)].
21 DE ABRIL
Curramus ad
nobis propositum certamem [corramos ao combate que nos é
proposto (Hb 12,1)]
Para
estimular os fiéis a perseverarem na fé, São Paulo, na sua Carta aos Hebreus,
lembra a firmeza e o heroísmo dos antepassados, quibus dignus non erat
mundus [eles, de quem o mundo não era digno]. Preciso olhar
para o exemplo dos mártires e confessores dos primeiros séculos, pois tenho
muito a aprender daqueles que me precederam na vinha do Senhor.
E não posso esquecer aqueles que, ainda hoje, estão dando muito mais do que eu, no trabalho a que foram chamados. Enquanto eu penso e calculo para fazer um sacrifício, enquanto procuro avidamente o meu descanso e bem estar, queixando-me do pondus diei [peso do dia (Mt 20,12)], nos desertos ou cidades, nos cárceres ou campos de concentração, há outros que estão se consumindo num martírio que só Deus conhece.
Somente na eternidade irei saber tudo o que eles estão sofrendo, para conservarem a luz da fé em si e nos outros. Todos os dias tenho pela frente um combate a que não posso fugir. E ainda que eu dê, nessa luta, todo o meu tempo, minhas forças e minha saúde, eu só tenho que repetir: Servus inutilis sum [sou um servo inútil] — não estou fazendo mais que a minha obrigação.
22 DE
ABRIL
Domine,
quid vis me facere? [Senhor, que queres que eu faça? (At 9,6)]
À beira da
estrada, Bartimeu, o cego, gritando com toda força e simplicidade: Jesu...
miserere mei! [Jesus, tende piedade de mim!] Todo misericórdia,
Nosso Senhor se aproxima e pergunta: Quid tibi vis faciam? [Que
queres que eu te faça?]. Galopando pela estrada de Damasco, Saulo era o
lobo, à procura das ovelhas de Cristo. De repente, cego, cai do cavalo. Desta
vez não é o Agnus Dei [Cordeiro de Deus] quem
pergunta: Quid tibi vis faciam? [Que queres que eu te faça?].
É o lobo, tremens ac stupens [trêmulo e atônito], quem
indaga: Domine, quid vis me facere? [Senhor, que queres que
eu faça?].
Nosso
Senhor está pronto a atender sempre os meus pedidos. Foi Ele mesmo que me
prometeu: Petite et accipietis [Pedi e recebereis]. Mas
não posso esquecer também que Ele tem os seus desejos. Ele me deu as suas
ordens e quer a minha obediência. De manhã até à noite, minhas obrigações estão
diante de mim; eu as conheço muito bem e, por isso, não preciso perguntar qual
a Vontade de Deus a meu respeito.
Se eu prezo que Ele me ouça porque é meu Pai, Ele exige que eu o atenda como um filho. Às vezes, sua vontade poderá me parecer dura, exigindo sacrifícios e renúncias que me parecem acima de minhas forças. Mas eu sei que Ele não me pede o impossível. Não posso contra stimulum calcitrare [recalcitrar contra o aguilhão (resistir a ter como guia a Palavra de Deus) (At 26, 14)].
23 DE ABRIL
Tradidit
semet ipsum pro me [se entregou a si mesmo por mim (Gl 2,20)]
Assaltado e
ferido por ladrões, estava um homem caído à beira de uma estrada. Passou um
sacerdote. Olhou... e continuou tranquilamente o seu caminho. Naquele dia, pela
estrada de Jericó, passou a figura exata do sacerdote sem caridade. Não
conhecendo a Deus, não o soube ver naquele pobre homem, caído à beira do
caminho. Era um sacerdote de nome; alguém que vivia no Templo.
Sacerdos
pro populo [sacerdote pelo povo] — ele é das almas, deve viver
para elas, vivendo exclusivamente para Deus. É um homem sui
generis [único em seu gênero, especial] que não vive para si
como outro qualquer. Sua vida é uma imolação que só termina com a morte. Sem
caridade, porém, o sacerdote não se entrega nem a Deus e nem às almas. Sua vida
é uma negação contínua já que procura poupar-se como um avarento de si mesmo. E
se realiza alguma coisa é para si, para os próprios interesses; não pode pensar
nos outros pois isso seria esquecer-se.
Preciso
pensar que participo do sacerdócio dAquele que se entregou por mim. Se eu não me
der todo a Deus, e às almas, serei sacerdote apenas de nome. Sine
caritate sacerdos dici potes, esse vero non potes [sem a caridade,
podereis dizer-vos sacerdotes, mas verdadeiramente não o sois].
24 DE ABRIL
Ambo in
foveam cadunt [ambos tombarão na mesma vala (Mt 15,14)]
Isso
acontece quando um cego quer guiar a outro cego. Ambos acabam caindo, diz Nosso
Senhor. É principalmente no confessionário que devemos ser os guias das
consciências. O penitente busca ali o Caminho, a Verdade, a Vida sobrenatural,
isto é, busca a Nosso Senhor mesmo. Para que não se iluda, é preciso que veja,
que sinta no confessor, o amor a Deus, o zelo, o horror ao pecado, a mansidão,
o espírito de fé.
Mas, ao
lado da virtude, a ciência. A ruína das almas, dizia um santo, são os maus
pregadores e os maus confessores. Um cego não terá confiança em seu guia, se
perceber que ele também não está firme. É certo que, no confessionário, não
podemos ser professores dando, a cada penitente, uma aula completa de ascese e
moral. Mas também, não nos podemos transformar em máquinas de absolver.
Homem algum poderia ocupar o confessionário para dizer a um pecador: Ego te absolvo [Eu te absolvo]. Nós o fazemos porque o sacerdócio nos deu esse poder. Mas ele não nos deu nem a ciência nem a virtude que o confessionário exige de nós. Homens de oração, precisamos estar em dia com a nossa Teologia Dogmática e Moral. Somente assim, poderemos ocupar, no confessionário, o lugar de Nosso Senhor.
25 DE ABRIL
Peccatores...
quorum primus ego sum [pecadores... dos quais, sou eu o primeiro (1Tm
1,15)]
Comovedora
a humildade do Apóstolo, considerando-se o maior dos pecadores. E não foi
certamente por mero sentimentalismo, que ele, escrevendo aos coríntios,
considerou-se o último dos Apóstolos, não merecendo sequer esse nome: Non
sum dignus vocari apostolus, quoniam persecutus sum Ecclesiam Dei [não
sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus (1Co
15,9)]. Que tristeza amarga para aquele coração que tanto amava Nosso Senhor
lembrar que perseguira a sua Igreja: Blasphemus fui, et persecutor! [fui
blasfemo e perseguidor!].
São Paulo
não esquecia o seu passado. Sabia bem onde a Graça o fôra buscar e, por isso,
agradecia quia fidelem me existimavit, ponens in ministerio [porque
me julgou fiel (digno de confiança) e me chamou ao
ministério (1Tm 1,12)]. Eu também preciso olhar para trás e considerar
o meu passado, não para me desanimar, reconhecendo que nem tudo ficou de acordo
com a minha boa vontade.
Preciso pensar no que fui, para compreender melhor o que sou e saber o que eu deveria ser. Que a humildade me coloque no meu lugar. Esse olhar sobre o meu passado irá tirar, da minha vida, um pouco do orgulho e do rigor com que olho para os outros. Terei mais paciência e compreensão, porque Peccatum meum contra me est semper [meu pecado está sempre diante de mim].
26 DE ABRIL
Abominato
Domini est omnis arrogans [todo (homem) arrogante
é abominação a Deus (Pr 16,5)]
Se Deus
detesta a arrogância, os homens também a desprezam. E se ela é tão antipática,
tão ridícula, em qualquer pessoa, mais ainda no sacerdote, que deve ser o retrato
vivo de Nosso Senhor. E Ele é inseparável da humildade.
Para que
Deus e as almas não se afastem de mim, preciso por em prática o conselho da
Escritura: superbiam in tuo sensu aut in tuo verbo numquam dominari
permittas [Nunca permitas que o orgulho domine o teu espírito ou as
tuas palavras (Tb 4,14)]. Preciso olhar para o meu Mestre, rodeado
pelos pobres e humildes, falando com simplicidade aos mais ignorantes,
atendendo a todos sem alardes de grandeza, com a maior bondade e mansidão. Ele
era assim e eu não o posso mudar, apresentando aos olhos de todos um outro
Cristo diferente.
A
simplicidade e uma caridosa atenção para com todos serão armas valiosas no meu
apostolado. Mas a vaidade, e presunção, o alarde de ciência e prestígio, o
desprezo para com os pobres e ignorantes, só me poderão tornar ridículo diante
de Deus e das almas. Quanto magnus es, humilia te in omnibus, et coram
Deo invenies gratiam [Quanto mais fores elevado, mais te humilharás
em tudo e, diante de Deus, encontrarás misericórdia (Eclo 3,20)].
27 DE ABRIL
Deus, pars
mea in aeternum [Deus, minha herança na eternidade (Sl 72, 26)]
Dolorosa
esta pergunta de São Bernardo: Quis, avidius clericis, quaerit
temporalia? [quem pode ser mais avarento que um clérigo que cobiça
coisas temporais?]. Nosso Senhor sabe que, devido à nossa posição, não
podemos viver em extremos de miséria. E sabe também que as nossas obras de
apostolado vivem, geralmente, de esmolas. Mas, precisamos ter sempre em conta,
a opinião que o povo possa fazer de nós.
Não é o
escrúpulo, mas a prudência que nos aconselha cautela nesse ponto. Não basta que
a nossa intenção seja boa, e o fim, que nos propomos, muito santo e necessário.
Os meios terão que ser estudados com prudência. São Paulo também lidou com
dinheiro e organizou obras de caridade. Mas não se descuidou da impressão que
poderia dar: Exhibeamus nosmet ipsos sicut Dei ministros... in
necessitatibus [nos apresentamos como ministros de Deus ... nas
necessidades]. E porque esse cuidado? Ut non vituperetur
ministerium nostrum [para que nosso ministério não seja repreendido (2Co
6,3)].
Não podemos
dar a impressão de que o nosso ministério não consiste tanto em ganhar as
almas, como ganhar outra coisa. Ganhando uma fama que não nos convêm, estaríamos
perdendo tudo. Prudência na escolha dos meios, porque o apego, suposto ou
verdadeiro, é a fogueira na qual, mais frequentemente, o povo sacrifica a boa
fama e o bom nome do sacerdote.
28 DE ABRIL
Semen est
Verbum Dei [a semente é a Palavra de Deus (Lc 8,11)]
'Cada um de
vós pregue esta palavra sagrada; cada um de vós insista com constância e
coragem, mesmo quando uma falsa prudência aconselhar a desistir. Nós vemos o
que aconteceu, o que está acontecendo, por se terem os homens afastado da sã
doutrina, para pedirem, a mestres conformes as próprias paixões, as verdades a
crer, as normas a seguir.
Hoje, como
nos primeiros tempos, non est aequum nos derelinquere verbum Dei [não
é razoável que abandonemos a Palavra de Deus (At 6,2)]. Devemos
proclamar bem alto a advertência de São Paulo: fundamentum aliud nemo
potest ponere... quod est Christus Jesus [quanto ao fundamento,
ninguém pode por nenhum outro ... que não seja Jesus Cristo].
Por outros
fundamentos à construção do mundo, significaria preparar sua ruína; lançar no
terreno outra semente que não seja Cristo Jesus, significa ver crescer, junto
ao trigo, o joio; esse joio que parece amor e é ódio; que parece paz e é
guerra; que parece liberdade e é licença; que parece justiça e é opressão; que
parece prudência e é medo; que parece coragem e é imprudência; que parece previdência
e é desconfiança' (Pio XII).
29 DE
ABRIL
Praedica
Verbum! [prega a Palavra! (2Tm 4,2)]
Para um
exame de consciência, siga este Decálogo do Pregador: (i) pregar a Verdade e
não a vaidade. Minha pessoa não interessa, de modo algum, aos ouvintes;
(ii) Não pregar sem preparação. Não posso profanar a Palavra que não é
minha; ela é de Deus.
(iii)
pregar aos domingos e dias santificados. Esta regularidade dá à palavra, que
vem do coração, uma força que lenta, mas infalivelmente, exerce a sua eficácia
(Pio XII); (iv) 4) não desfazer da pregação de outros. A caridade o exige. Se a
minha palavra é de Deus, a dos outros também; (v) ensinar com a palavra, mas
também com o exemplo. Não posso cair nesse absurdo, de matar com meu exemplo,
aquilo que ensinei com a minha palavra.
(vi) não
pecar contra a brevidade. Ensinar sem aborrecer!; (vii) não pregar somente o
que outros escreveram. Preciso assimilar e preciso viver aquilo que prego,
(viii) não esquecer a caridade, pregando a Verdade; (ix) não imitar cegamente a
outros. Se eu me esforçar para dar ao povo uma palavra cheia de Deus, o mais é
secundário; (x) pregar a Palavra e não palavras.
30 DE
ABRIL
Miser fui,
et salvavit me [estava na miséria e (Ele) me salvou (Sl
114,6)]
O teu
Evangelho, Senhor, me diz que todos neste mundo tiveram um lugar nas tuas
preocupações; os pastores e as crianças, os Apóstolos e os traidores, os
letrados e os Mestres da Lei, os publicanos e até os fariseus. Não posso
acreditar que a tua Providência não me tenha visto e não se tenha preocupado
comigo. Por isso é que também procuro o meu lugar, o lugar que ocupei na tua
vida.
Não me vejo
é certo, entre as crianças e os pastores: pois não tenho a inocência com que te
procuravam. Não estou entre os Apóstolos e traidores: se não sou um apóstolo,
também não sou um traidor, porque a tua Graça me amparou. Não fosse a tua
graça, o que seria de mim? Não me julgo entre os publicamos e fariseus: apesar
da minha miséria, Tu sabes, Senhor, que se alguma vez te abandonei, não foi
para fugir ao teu domínio.
E nem me
vejo entre os Mestres da Lei: se alguma vez a tua doutrina me foi dura, nem por
isso deixei de a praticar. Eu me vejo, e muito bem, lá onde foste achar a
ovelha desgarrada. Ela também não te abandonou, porque quisesse fugir aos teus
cuidados. Por isso se entregou agradecida quando a foste buscar. A tua
Providência me procurou, e... por quanto tempo! A tua mansidão me atraiu. E a
tua misericórdia me colocou novamente em teu rebanho, porque o teu amor
continua confiando em mim. E eu sei agora, melhor que antes, que não és o
mercenário, mas o Bom Pastor, que eu bendigo e amo porque miser fui, et
salvavit me [estava na miséria e (Ele) me salvou].
Nosso Senhor não me prometeu outra coisa neste mundo e Ele foi o primeiro a trilhar esse caminho do sacrifício: Exemplum dedi vobis [dei-vos o exemplo (Jo 13, 15)]. Não posso atender as queixas e lamúrias da minha natureza de morte. Quanto mais ela reclamar, tanto mais deverei compreender que não fui criado para viver sempre num vale de lágrimas. Tenho que aceitar os sacrifícios, como uma preparação amarga para uma alegria sem fim. In mundo pressuram habebitis [no mundo haveis de ter aflições (Jo 16,33)] — foi isto o que o Mestre me prometeu.
Nós somos as pessoas dessa Casa, escalados, ou melhor, escolhidos para o serviço divino. E com que cuidado a Igreja não nos escolheu! Ela sabe o porquê. Amar a Casa de Deus significa bem mais que ter apenas um certo interesse pelas coisas da igreja. O principal, tratando-se do culto, somos nós mesmos.
O nosso trabalho deve ser executado com aquele amor e carinho com que a Igreja procura servir a Nosso Senhor. Não pode ser executado mais ou menos. O culto sagrado está exigindo de nós alma e fervor, porque meras cerimônias, executadas sem piedade ou com uma piedade artificial, não convencem e nem elevam. No altar, mais do que nunca, somos os sacerdotes de um Deus vivo.
* no calendário católico tradicional
A vocação à Fé, a graça, a oração e, principalmente, o sacerdócio, que me faz viver a teu lado... mais eu não poderia desejar, pois o teu amor de predileção não me podia elevar mais alto. Realmente, eu recebi demais. Se eu não tenho do que reclamar, o que eu devo, sim, é corresponder a essa predileção, e ser digno da tua confiança. Não posso enterrar o que me deste; preciso fazer essa riqueza render, e muito mais.
Senhor, Tu sabes quantos são aqueles que devem receber de mim e a tua Providência já determinou o quanto devo dar a cada um. Eu seria um servo inútil se não reconhecesse o valor desse tesouro que me deste e se o não soubesse administrar de acordo com teus planos. Preciso reconhecer a tua clemência nos talentos que me confiaste; essa riqueza eu a devo repartir com teus filhos, os meus irmãos.
Então a vida dos fiéis tenderá a elevar-se mais geralmente a um alto nível de santidade e a uma necessidade mais sentida de viver na graça de Deus, para que as nossas oblações lhe sejam aceitas. Assim, o pensamento mais frequente das grandes verdades da Fé e a maior intimidade com o Coração divino irão purificando a alma e ateando a chama do amor que vence as tentações, que não teme sacrifícios, que triunfa nos obstáculos e leva à santidade" (Pio XII).
Nada mais triste, aos olhos do mundo, que um vetus homo [homem velho] transpirando vaidade, comodismo, apego e orgulho a pregar o desprendimento, a penitência, o amor a Deus. A impressão não pode ser outra: Alligant onera gravia, et imponunt in humeros hominum; digito autem suo nolunt ea movere [Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com o dedo (Mt 23,4)].
Certamente não estou em melhores condições que São Paulo cuja virtude, por si só, já bastava para fazer calar todos os seus inimigos. Nunca poderei sacudir os ombros, indiferente à impressão que possam ter de mim, não por respeito humano, mas porque assim exigem o meu ministério e a caridade. Não posso prejudicar a outros, expondo o meu nome. O que um faz, reflete nos outros, e até na própria Igreja.
Podemos dizer que ela anda solta em nossa vida: a mentira do orgulho, que já vem do Paraíso, a nos dizer que não precisamos obedecer tanto, nem a Deus, nem aos superiores; a mentira do apego, dizendo que este mundo pode muito bem contentar o nosso coração; a mentira da sensualidade, insinuando-se à nossa simpatia, como se o prazer dos sentidos superasse as alegrias do espírito. O demônio é a mentira; por isso a Igreja pede que Deus nos livre ab insidiis diaboli [das ciladas do demônio], para que sejamos mais sinceros com a nossa consciência e com Nosso Senhor.
19 DE MAIO
Eu bem sei que outros, em menos tempo, fizeram muito mais do que eu, nos anos todos que vivi. Preciso me prevenir contra essa falta de disposição para a luta, que os anos me poderão trazer. Avançando em idade, poderei atrasar-me ou até estacar no caminho da virtude. O programa do Apóstolo a Timóteo não é para ser realizado nuns poucos anos de mocidade; é trabalho, é luta para toda a vida: sectare vero iustitiam, fidem, spem, caritatem [busca com empenho a justiça, a fé, a esperança e a caridade]. Se eu não sei quantos anos de vida ainda terei, no caminho da virtude resta-me ainda muito para percorrer.
21 DE MAIO
O que te interessa não é tanto aquilo que possa merecer castigo; o que procuras em minha vida é, principalmente, o que possa merecer uma recompensa. Com amoroso carinho vives recolhendo tudo o que possa formar a minha eternidade, na glória que me queres dar. Sei muito bem que um simples copo de água dado por teu amor non perdet mercedem suam [não perderá a sua recompensa (Mt 10, 42)]. Se o mundo não reconhece o meu trabalho e se não dá valor aos meus sacrifícios, não importa.
In domo Patris mei [na casa do meu Pai] há uma recompensa à minha espera porque os teus olhos não perdem as migalhas que enchem a minha vida. O teu amor de Pai não me esquece e está recolhendo, um por um, os meus dias de trabalho. Quando estiver pronta a minha eternidade, sei que me virás buscar porque queres a minha companhia, para sempre: Intra in gaudium Domini tui! [entra na glória (alegria) do teu Senhor! (Mat 25, 21)].
Às vezes, pessoas que nos distinguem com uma amizade toda especial: cartas, visitas, presentes. Aqui é uma pessoa que se diz escrupulosa, à procura de um guia e de um apoio. Ali é alguém que se julga vítima, incompreendida, sob o peso de mil problemas e dificuldades. Todas elas se julgam almas eleitas e, por isso, credoras de uma atenção especial. Querem elogios, visitas, horas de sala e de confessionário. Às vezes, por um nada, armam verdadeiras tempestades de ciúmes, comentários e aborrecimentos para o sacerdote.
Aparentando piedade, querem monopolizar o vigário ou o confessor e, sob o disfarce de caridade, procuram apenas a si mesmas. Com um pouco de prudência, facilmente o sacerdote irá saber logo do que se trata. Valha-nos aqui o aviso de Nosso Senhor: Cavete ab hominibus! [cuidai-vos dos homens!]. E com a observação de um comentarista: Cavete a mulieribus! [cuidai-vos das mulheres!].
Essa discrição não quer dizer condescendência com a falsidade e com o mal. Trata-se aqui de iniciar os entendimentos para uma paz justa, não entre o bem e o mal, o que seria absurdo, mas entre o homem que renuncia a sua malícia e Deus que o acolhe. Saber renunciar a pressa, saber aguardar o momento propício, saber dosar o que se diz e o que se pede: eis um primeiro requisito indispensável à ação apostólica individual' (Pio XII).
Então, quando os lábios do apóstolo murmura: Quid lucri? [o que ganhei?] ou quando dolorosamente ele exclama: Transeat a me... [aparte de mim...] é preciso que ele acrescente logo, como Jesus no Horto: Non mea voluntas sed tua, fiat [não se faça a minha vontade, mas a tua (Lc 22,42)]. E Deus enviará o anjo consolador para revigorá-lo, para sustentá-lo e a sua obra de salvação prosseguirá para coroar o seu zelo e o seu sacrifício' (Pio XII).
Já estaria pressentindo a tormenta de ódio que iria desabar sobre o seu Mestre, naquele palácio do pontífice. Disfarçando, fingindo, ele procurou acompanhar-te, embora de longe. Uma força misteriosa não o deixava fugir, como os outros fizeram. Sentia-se preso pelo amor, a um Mestre e Amigo preso pela inveja e pelo ódio. Realmente, ele te queria bem!
A minha vida não poderá, dessa forma, refletir a virtude que não tenho, mas refletirá, sim, os meus defeitos e falhas. De que servirá então um ramo seco e sem vida, ligado à videira? Ad nihilum valet ultra... [para nada mais serve...]. Que um sacerdote cheque a esse ponto: de se tornar inútil, de não servir para nada, depois que Deus o chamou, depositando nele toda a confiança! Por isso, Nosso Senhor foi claro quando me avisou: si quis in me non manserit, mittetur foras, et arescet [se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, e murchará (Mt 15, 6)].
Dizem que a tua doutrina é pequena para a grande inteligência que possuem. Alegam que é acanhada a mentalidade de tua Igreja, porque eles se julgam donos de uma extraordinária visão dos homens e das coisas. Dizem que a tua Igreja não tem coração, porque não chega a lhes compreender o coração... Com essas e outras desculpas, eles te abandonam. Saem da casa paterna, sonhando com uma liberdade que a tua Igreja não lhes pode dar.
No entanto, pouco depois, já estão escravizados a um rebanho imundo, apascentando as próprias paixões: vaidade, ambição, despeito, sensualidade. Senhor, bendigo a tua Igreja que me manda rezar, ut nosmetipsos in tuo sancto servitio confortare et conservare digneris [que vos digneis confortar-nos e conservar-nos em vosso santo serviço]. E porque sou capaz de tudo, se a tua graça não me ajudar; porque posso até trocar a casa de meu Pai por um rebanho de paixões, quero rezar sempre com tua Igreja, ut mentes nostras ad caelestia desideria erigas [que ergueis os nossos espíritos a desejar as coisas celestiais].
É que costumamos medir o nosso esforço e zelo pela covardia e comodismo. Enquanto Nosso Senhor dá o seu Sangue pelas almas, nós achamos bastante oferecer uma parte apenas do nosso tempo ou de nossas forças. Um meio, não muito raro, de se fugir ao trabalho direto pelas almas, restringindo bastante o nosso zelo, são os cargos e posições. Quando alguém os deseja, poderá dizer que o faz por espírito de sacrifício? Não haverá nisso, um pouco ou muito, de vaidade e comodismo?
É por isso que meu egoísmo fica todo magoado, se me falas da caridade que tudo esquece e perdoa. Meu orgulho se ofende se me falas de humilhações. E meu comodismo grita, quando me ensinas a renúncia, a sacrifício e a imolação. Meu Deus, eu sei que a tua palavra guarda a vida eterna; quero segui-la, ainda que meu amor próprio se apavore e se melindre a minha covardia. Se me parecem duras as tuas palavras, há uma que me atrai e anima: jugum meum suave est [o meu jugo é suave (Mt 11, 30)].
Não somos donos da Verdade, para que a possamos apresentar atenuada e até falsificada. No púlpito, ou no confessionário, o que devemos dar às almas é uma espécie de verdade ou uma simples imitação, mas a verdade, tal qual Nosso Senhor a daria. Caridade e prudência no apresentá-la com lealdade e firmeza. As almas querem ver Nosso Senhor na Verdade que lhes apresentamos.
Isto quer dizer que Deus já me perdoou demais. E poderei dizer que já deixei de pecar? Tenho que me lembrar sempre disto, para não pensar que minha vida está sendo uma perfeição de fidelidade à graça e de fervor. Só Deus pode avaliar as dimensões da minha culpa: delicta mea te non latent [minhas faltas não vos são escondidas]. Se até aqui muita coisa esteve errada em minha vida, não posso garantir que, de agora em diante, nenhuma falta irá aumentar o peso da minha culpa.
Spiritus quidem promptus est [O espírito na verdade está pronto] — boa vontade não me falta, mas eu sei que a minha fraqueza é grande. Por ter recebido tanto, minhas infidelidades à graça estão marcadas por uma malícia especial. Não posso dizer que já me arrependi bastante. Todos os dias, tenho diante de meus olhos, tanta coisa que eu devo fazer. E não me lembro daquela palavra de Nosso Senhor: poenitentiam age! [arrepende-te!]. Sim, isso também eu preciso fazer; e principalmente isso.
Embora minha atividade possa ser limitada a este ou a aquele grupo, meu zelo não deve conhecer limites nem restrições. Sou de todos e para todos. Se não posso evitar os mais cultos e letrados, também não posso ignorar os mais pobres e ignorantes. Para todos, eu não preciso ser o sábio, nem o mestre, nem o doutor da lei; que eu seja simplesmente o sacerdote de Nosso Senhor. Se eu for o Homo Dei [homem de Deus], cheio do sobrenatural, serei tudo para todos, sem fazer exceções. Nosso Senhor não as fez.
Qual o pai que precisa exigir o amor de seus filhos? Mas Ele não quer um amor forçado. Se eu o amasse, somente porque Ele o quer e manda, eu não o estaria amando como devo. O meu amor deve ser alguma coisa de muito grande e sublime, para que Deus o queira tanto, sem restrições. Parece que Ele não se sente feliz se eu o não amar. Tanto questão Ele faz do meu amor que me deu uma ordem expressa nesse sentido: Ele não quer ser esquecido por mim.
Aqueles que hoje me parecem pecadores, amanhã poderão conhecer a Deus e talvez cheguem a amá-lo mais do que eu. E talvez cheguem a servir à Verdade com mais dedicação do que eu mesmo, que fui chamado às primeiras horas para a vinha do Senhor. O erro de outros e a ignorância alheia não pedem o meu desprezo, mas o meu interesse e compreensão.
Se eles ainda não se achegaram a Deus, não terá sido por culpa minha? Poderei dizer que fui para eles a ciência e a virtude que os poderia iluminar? Tenho que me preocupar mais com aqueles que não conhecem a Verdade, dando-lhes, ao menos, minhas orações e sacrifícios ut facerem salvos [de modo que sejam salvos]. O Bom Pastor procura as suas ovelhas, sem esperar que elas o procurem. É com Ele que eu devo sair; com a ciência e virtude que Ele me ensinou. Tanto zelo devo ter para não deixar no erro aqueles que poderiam estar mais perto da Verdade compelle intrare [no empenho de (os fazer) entrar (Lc 14, 23)].
O seu reino certamente não se restringe somente às minhas obras de apostolado. Ele está em todas as horas do meu dia, como também no trabalho que outros realizam. E Ele está principalmente em mim mesmo. Se eu não me compenetrar disso, não o verei em parte alguma e não serei o homem religione plenum [religioso por inteiro] que as almas querem ver em mim.
Ninguém atira fora uma joia cujo valor conhece. Não meditando a própria grandeza e não reconhecendo a altura em que se foi colocado — super candelabrum [(como luz) sobre o candelabro] — compreende-se que alguém não faça diferença entre ser elevado por Deus ou rebaixado pelos homens. E acaba sub modio [debaixo do alqueire (móvel)] pelo pecado e até pela deserção.
Mas Ele queria ser obedecido. E a obediência fez o milagre. Somente as redes lançadas por obediência operam maravilhas. Mandatum accepi a Patre meo [Ordem recebida de meu Pai (Jo 10,18)] — Nosso Senhor realizou a redenção debaixo de ordens, aceitando em tudo a Vontade do Pai. E mesmo quando essa obediência lhe custou um suor de sangue, não deixou de obedecer. Ita et vos faciatis [Assim também façais vós (Jo 13,15)] — é assim que devemos continuar a sua Redenção: per Ipsum et cum Ipso [por Ele e com Ele].
Não posso renunciar a luta, nem fugir ao combate, para não perder a paz eterna que me foi prometida. E nem posso pensar em recompensa, se a minha vida não for uma dedicação contínua e conscienciosa a essa luta que aceitei, quando pedi e aceitei a Fé: certa bonum certamen fidei [lutar pelo bom combate da fé]. Porque eu lutei, porque não me poupei no combate pela Fé, um dia, rezará a Igreja por mim: pie Jesu, dona ei requiem sempiternam! [misericordioso Jesus, concedei-lhe o descanso eterno!].
Subimos, ou melhor, fomos elevados a uma altura que os próprios anjos não podem desejar. Nós mesmos não a chegamos bem a compreender. Mas, nem por isso estamos fora da órbita terrestre. Todos os dias estamos vendo como o mundo continua exercendo sua atração sobre nós. Por isso, timeamus ad lapsum [temamos em cair]. Se o medo e o escrúpulo exagerado são extremos que precisamos fugir, a leviandade e o descuido são um outro extremo, e muito mais lamentável!
Ele, repleto do Espírito Santo, ‘andou fazendo o bem, e curando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele’ (At 10,38). Fortificados pelo mesmo Espírito e impelidos por sua força, podereis exercer um ministério que, nutrido pela caridade cristã, será rico de virtude divina. Seja o vosso zelo vivificado por aquela caridade que não se deixa vencer pelas adversidades e a todos os homens abraça, pobres e ricos, amigos e inimigos, fiéis e infiéis.
Esta diuturna fadiga e cotidiana paciência, eis o que de vós reclamam as almas, para salvação das quais nosso Salvador sofreu dores e tormentos, para nos restituir a amizade divina. Este, bem o sabeis, é o maior dos bens. Não vos deixeis prender pelo imoderado desejo de sucesso, nem vos deixeis desanimar, se após assíduo trabalho não recolherdes os frutos desejados, porque alius est qui seminat, et alius est qui metit [um é o que semeia, outro é o que ceifa] (Pio XII).
Para as almas é que fomos constituídos sacerdotes; a elas, em certo modo, devemos a nossa vocação. Como um pai vive para os seus filhos e a eles pertence, assim o sacerdote pertence às almas e por essa paternidade espiritual que lhe toma o tempo, a saúde e as forças. Como Nosso Senhor alimentou as almas com sua palavra e virtude, com seu suor e com sua vida, assim o Alter Christus [outro Cristo] deverá alimentar aqueles que a Providência lhe confiou, imolando por eles a vida no trabalho de cada dia: Ego veni ut vitam habeant, et abundantius habeant [Eu vi para que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10)].
Ut offerat dona et sacrificia [para oferecer dons e sacrifícios (Hb 5,1)]
A salvação das almas deverá estar em nossas orações como uma preocupação, ideia fixa a nos perseguir sempre. Mas, em nossas mãos, está ainda um sacrifício de reparação, cujo valor infinito devemos fazer chegar às almas. Esse valor é das almas e para as almas, porque nessa intenção foi realizado o Sacrifício da cruz, pelo Sumo e eterno Sacerdote.
Sacrifício reparador que, por nosso intermédio, deve subir continuamente à presença de Deus, já que a provocação de nossas culpas é também contínua. Mas, como nos apresentarmos diante da Justiça divina como mediadores, se as nossas culpas forem mais graves e mais pesadas que as dos simples fiéis? Precisamos de muita humildade para rezar, todos os dias. Pro innumerabilibus peccatis et offensionibus meis [por meus inumeráveis pecados e ofensas]. Depois, e somente depois, é que podemos acrescentar: et pro omnibus fidelibus christianis, vivis atque defunctis [e por todos os fieis cristãos, vivos ou falecidos].
E se eu devo ser um santo, a serviço de Deus, em minha vida deve haver sempre uma santa alegria de reconhecimento, por tudo o que dEle recebi. Depois da Anunciação, Nossa Senhora cantou de alegria e gratidão, embora pudesse prever todos os sofrimentos que lhe reservava a dignidade que recebera. Deus me quer como a uma criança, que o serve na alegria da inocência e não, na tristeza do pecado.
Essa é a única tristeza que pode estragar a minha vida. Quero encher os meus dias com essa inocência alegre da criança que ama o seu pai e nele confia, porque obedece a ele de boa vontade. Se todos os dias posso estar com Nosso Senhor na meditação e na Santa Missa, se posso trabalhar com Ele e para Ele e se lhe posso oferecer os meus sacrifícios porque Ele os recebe, bendito seja Deus por tudo! Que eu fosse feliz no serviço de Deus — foi o que a Igreja um dia me desejou: ut laetus tibi in Ecclesia tua deserviat de die in diem [para vos servir com alegria na Vossa Igreja dia após dia].
Deus tem a sua hora, justamente quando tudo nos parece perdido. Foi assim no dia em que a tempestade, no lago, quase fez naufragar o barco dos Apóstolos. Deus permite as lutas e dificuldades no nosso ministério, porque, sem isso, não nos poderia recompensar. Ele não tem esse prazer, tão nosso, de ver alguém sofrer. Ele nunca nos apresenta uma dificuldade vazia; há em tudo um mérito à nossa espera.
Pai amoroso, Ele se compraz em quebrar conosco as nossas dificuldades, gozando, com seus filhos, a alegria de colherem um resultado, à custa de trabalho e de esforço. Por incrível que pareça, precisamos ser compreensivos para com Deus, não o interpretando segundo as normas da nossa maldade. Custodit simplices Dominus [guardai-vos íntegros no Senhor].
Pensar, falar e agir como qualquer pessoa, não é certamente estar acima; é igualar-se e até inferiorizar-se diante dos outros. Tantum inter sacerdotem et quemlibet probum interesse debet, quantum inter caelum et terram discriminis est [tanto há de distar um sacerdote de qualquer bom leigo tanto quanto se distinguem o céu e a terra] — diz um santo [Santo Isidoro de Peluza]. E Nosso Senhor foi bem claro, quando nos disse: nisi abundaverit iustitia vestra plus quam scribarum et pharisaeorum... [se vossa justiça não exceder mais que a dos escribas e fariseus...]. Sim, para todos temos que ser os Mestres da Lei. Mas, para isso, precisamos antes aprender com Nosso Senhor.
E, depois disso, tudo foi possível: o Presépio, o trabalho em Nazaré, aquela vida ao sol, à chuva, em absoluta pobreza, as perseguições, os horrores da Paixão e da morte. E a única explicação que encontramos para tudo, não pode ser outra: Ele é simplesmente o Amor: vivit amor excessibus [o amor que vive apenas de excessos]. Compreendemos que, para ensinar Nosso Senhor às almas, precisamos conhecê-lo com a inteligência e com o coração: noverim te, ut amem te [que eu vos conheça, para que vos ame].
25 DE SETEMBRO
A este respeito, escreveu Pio XII: 'Estando tão estreitamente em contato com os divinos mistérios, o sacerdote não poderá deixar de sentir fome e sede de santidade ou deixar de sentir estímulo para adotar sua vida à própria dignidade, orientando-a para o sacrifício, porque deve imolar-se a si mesmo com Nosso Senhor'. Podemos dizer, portanto, que a vida do padre será aquilo que for a sua Missa de cada dia. Razão tinha, e bastante, quem observou: 'pela Missa que celebra se conhece o padre'.
Daí deriva, quase naturalmente, que não faltem de todo em nossos tempos, sacerdotes infectados de alguma maneira de semelhante contágio; que manifestam opiniões e levam um teor de vida, até no modo de vestir-se e cuidar de si, inteiramente contrários tanto à sua dignidade como à sua missão; que se deixam empolgar pela mania de novidades, seja no pregar aos fiéis, seja no modo de combater os erros dos adversários; e que comprometem portanto, não somente a própria consciência, mas ainda a sua boa fama, e, por isso, a eficácia do seu ministério.
Se eu me lembrasse mais do meu anjo, se eu vivesse mais com ele, eu teria sempre comigo uma lembrança da eternidade e minha vida não seria tão terrena e dissipada. O respeito e a reverência com que me acompanha em toda parte poderiam levar-me a respeitar mais a minha grandeza e dignidade. Nos ergo affectuose diligamus angelos, tamquam futuros aliquando coheredes nostros, interim vero tutores a Patre positos et praepositos nobis [por isso, nós amamos ternamente os anjos, nossos futuros co-herdeiros, colocados desde agora junto a nós pelo Pai como nossos guias e guardiões (São Bernardo)].
Naquele tempo, havia mais inocência e docilidade, mais fervor e dedicação em minha vida. Hoje, o contato com os homens apagou, em parte, aquela simplicidade da minha vida e apareceram a malícia e a mentira ao longo do meu caminho. À medida que os anos foram passando, muita coisa mudou, e, às vezes, para pior.
Se Ele nos mostrou a cruz — abneget semetipsum [ao negar-se a si mesmo] — foi sobre o fundo de uma esperança: in domo Patris mei mansiones multae sunt [na casa do meu Pai há muitas moradas (Jo 14,2)]. Temos que nos alegrar porque a nossa imolação de cada dia é para Aquele que nos ama e para Aquele que pôs a sua confiança em nós. Ele nunca iludiu a nossa esperança; por isso, nenhum motivo pode haver de desânimo ou tristeza. Ibant Apostoli gaudentes, quoniam digni habiti sunt contumeliam pati [os Apóstolos saíram cheios de alegria por terem sido achados dignos de sofrer ofensas (At 5,41)]. A esse ponto devemos chegar, porque certamente non sunt condignae passiones huius temporis ad futuram gloriam [os sofrimentos da vida presente não se comparam com a glória futura (Rm 8,18)].
E esta não é apenas a negação e a ausência do sobrenatural; é principalmente a presença da hipocrisia e da malícia. O mundo sempre se contenta com qualquer coisa, contanto que seja mentira. A verdade é que não lhe interessa. Unctionem quam accepistis ab eo maneat in vobis... sicut docuit vos, manete in eo [a unção que dele recebestes permanece em vós... permanecei nele, como Ele vos ensinou (1Jo 2,27)]. Somente permanecendo nEle poderei ficar livre da mentira. Cavete! [Tende cuidado!]. Se Nosso Senhor me avisou, Ele sabe o porquê. E, olhando para as minhas quedas, eu também deveria saber porque não devo facilitar.
Então, mais do que nunca, tenho que ser para todos o Homem que vive de Deus. Certas observações e censuras, embora muito justas, nunca sejam feitas durante as cerimônias sagradas; se necessário, antes ou depois, e sempre com uma caridosa discrição sacerdotal. A leviandade ou a ignorância somente as poderei corrigir, com atitudes e palavras dignas de um homem diferente. Minha intenção não poderá ser outra senão ensinar e edificar os fiéis. E se eu não o fizer, inutilem servum ejicite in tenebras exteriores [jogai esse servo inútil nas trevas exteriores (Mt 25,30)].
Basta que o padre consinta e o que antes era aprovado como natural e humano passa a ser condenado com o máximo rigor. E então, uma simples faísca de maledicência, que nunca falta nesses casos, estará logo transformada num incêndio. Nada restará do bom nome e da fama do sacerdote. Com ou sem culpa do padre, precisamos reconhecer que, muitas vezes, se aplica a palavra de São Gregório: quod per linguam praedicamus, per exempla destruimus [o que pregamos pela boca, destruímos pelo exemplo].
Somos realmente os mestres, somos os guias. No entanto: qui in lege gloriaris, per praevaricationem legis Deum inhonoras [tu, que te glorias da lei, desonras a Deus pela transgressão da lei (Rm 2, 23)]. É o que acontece quando o mestre não se lembra que também precisa aprender, porque unus est Magister vester [um é o vosso Mestre]. Temos que aprender, no recolhimento e na meditação. Depois, poderemos ensinar pela pregação. E se assim não fizermos, o resultado será realmente lamentável: cuius vita despicitur, restat ut eius praedicatio contemnatur [quem tem vida desprezada, merecer ter suas palavras rejeitadas].
A mocidade com a qual ela nos fala hoje é a mesma que possuía na época dos Césares. A Igreja primitiva teve na vitória uma confiança que recebia do seu ardor e força na sua inalterável segurança das palavras do Mestre: 'Eu venci o mundo'. A Igreja de hoje não pode simplesmente voltar às formas primitivas do pequeno rebanho inicial. Em sua maturidade, que não é velhice, ela ergue a cabeça e guarda em seus membros o inalterável vigor da mocidade.
Necessariamente se conserva a mesma, não mudando nem os seus dogmas e nem a sua força vital. Ela é inexpugnável, indestrutível e invencível. É imutável; pela própria carta de sua fundação, assinada com o sangue do Filho de Deus, não pode mudar, mas progredir, assumindo formas novas, que correspondem à época do seu progresso. Mas isto não lhe muda a natureza. Como São Vicente Lerins tão bem o notou, a vida religiosa das almas imita a vida dos corpos que, crescendo, à medida que avançam em idade, continuam sendo, no entanto, os mesmos corpos que eram' (Pio XII).
Nosso Senhor nos mandou trabalhar em sua vinha e nos garantiu: Ego vobiscum sum [Eu estou convosco]. Mas, nem por isso podemos pensar que tudo irá correr às mil maravilhas. Vemos como as dificuldades, muitas vezes, estão plantadas à nossa frente, quantas montanhas que não conseguimos remover. Por que? Simplesmente porque a nossa fé não chega a ser sicut granum sinapis... [como um grão de mostarda...].
E, graças a Deus, que a sua vida seja realmente como a vida do seu Mestre, de tal maneira que o zelo não lhe deixe tempo para pensar em si mesmo. No entanto, o padre não pode ser uma máquina de trabalho, mas uma alma em oração constante. E é por isso que, durante o dia, ele precisa não só alimentar o corpo, mas também abastecer o espírito.
Saiba, portanto, fazer de tudo um degrau para se aproximar de Deus. Se lhe falta o tempo para a oração, o espírito de oração não conhece tempo nem lugar, podendo transformar um dia cheio de ocupações num dia cheio de Deus. Em cada minuto, deve estar a eternidade. Se nos fala de Deus a multidão que se comprime numa igreja, com a oração à flor dos lábios, também nos pode e deve falar de Deus a multidão que enche as ruas e praças, levando no olhar as preocupações deste mundo. Sempre, em toda parte, podemos juntar as mãos, em oração: semper et ubique gratias agere [dar graças em todo o tempo e lugar].
Poderá dizer que vive realmente para Deus e para as almas o sacerdote cuja virtude se reduz a evitar as faltas mais graves e cuja atividade se contenta com trabalhar um pouco? Em nossos dias, fala-se tanto da falta de sacerdotes! É verdade, somos poucos. Mas, o Reino dos Céus não é semelhante a uma sementinha? Se Nosso Senhor não exige que cada um seja mais do que deve ser, Ele exige também que não seja menos.
Por isso, lembrando a Deus que Ele ama a inocência e a restitui quando perdida pelo pecado, a Igreja reza: dirige ad te tuorum corda servorum [velai pelos corações dos vossos servos], isto é, que os chame a essa união pela graça, ut in fide inveniantur stabiles, et in opere efficaces [para que sejam firmes na fé e ativos em obras]. Se a nossa vida estiver colocada sobre as verdades de uma fé profunda, ela será certamente uma vida cheia da atividade de Deus. Não podendo imaginar uma vida cristã fora das verdades eternas, como pensar numa vida sacerdotal colocada sobre uma outra base?
Nosso Senhor já nos avisou que não podemos construir sobre a areia. As verdades da fé estão continuamente diante de nós, pela Santa Missa, pelos Sacramentos, pelas festas litúrgicas de todo o ano. Que as saibamos viver; que, com elas, alimentemos nossa piedade e faremos chegar às almas aquela torrente de água viva que Nosso Senhor já previu: flumina fluent aquae vivae [hão de jorrar torrentes de água viva (Jo 7,38)].
O meu papel não é permanecer junto ao altar, lembrando a Deus uma virtude que não possuo. Seria melhor que eu ficasse à porta do templo, rezando humildemente como aquele meu irmão: 'Senhor, tende piedade de mim, pobre pecador!'... Sacerdos, viscera indutus misericordiae Christi, qui non venit vocare iustos, sed peccatores, sciat studiose, patienter et mansuete cum ipsis agere [o sacerdote, revestido de entranhas de misericórdia como Cristo, que não veio chamar os justos mas os pecadores, saiba portar-se com zelo, paciência e mansidão para com eles]. É assim que eu costumo proceder com aqueles que eu julgo pecadores?
Mas a força do Espírito, que estava nele, que dava às suas palavras força e eficácia, valorizava os dons da sua opulenta personalidade. Deste concurso do Espírito com a natureza provinha a sua incomparável e inimitável eloquência. Quem está cheio de Cristo, não encontrará dificuldade em ganhar a outros para Cristo. Mas, que o nobre ardor de conquistar as almas para Nosso Senhor não nos leve a uma ilusão tão fácil quanto funesta.
Mas temos a lamentar que outros não procedam como devem, de modo a oferecer, ao povo cristão que os contempla, o modelo de vida a praticar, e o exemplo a seguir. Insistentemente vos pedimos: Renovamini spiritu mentis vestrae, et induite novum hominem, qui secundum Deum creatus est in iustitia et sanctitate veritatis [renovai o sentimento da vossa alma e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade (Ef 4, 23-24) ]. Ao padre, bem mais que aos edifícios de nossos templos, se aplica esta palavra: Domum tuam decet sanctitas' [a santidade molde a tua casa]. Assim escreveu São Pio X.
Quae praeparavit Deus... [o que Deus tem preparado... (1Cor 2,9)]
MAIO
10 DE
MAIO
Sub tuum
praesidium... [sob a vossa proteção]
A devoção a
Nossa Senhora — não é uma devoção que podemos ter; é uma devoção que devemos
ter, por vontade de Deus. Desde a queda, no Paraíso, que Ele no-la mostrou. No
plano divino da Redenção, nós a vemos em evidência nos dois momentos
principais: Presépio e Calvário. E nunca talvez, como hoje, Nossa Senhora
esteve tão presente na vida da Igreja e das almas.
Porque essa
verdadeira preocupação de Deus em revelar sua Mãe Santíssima ao mundo?
Simplesmente porque Deus quer o nosso amor para com Ela: é pelas mãos de uma
mãe que o filho chega mais facilmente à presença de seu pai. Diz um autor que
Deus, não nos podendo dar um retrato de si mesmo, para que dele nos
lembrássemos sempre, deu-nos sua Mãe, que é o máximo em santidade e perfeição
humana.
Para nós,
sacerdotes, um motivo especial existe para essa devoção: Nossa Senhora nos ama
com um amor particular porque vê em nós aqueles que perpetuam Nosso Senhor no
mundo, mantendo-o nas almas. Porque somos participantes do sacerdócio eterno de
seu Filho, Ela, Mater Christi [Mãe de Jesus Cristo], é
a Mãe do nosso sacerdócio e o fervor de um padre é medido pela sua devoção a
Nossa Senhora.
02 DE
MAIO
Super
candelabrum [(como luz) sobre o candelabro (candeeiro) (Mt
5,15)]
Somos a luz
que Nosso Senhor acendeu in medio Ecclesiae [no meio da
Igreja] e colocou super candelabrum, ut luceat omnibus qui in domo
sunt [(como luz) sobre o candelabro, que ilumina assim todos
os que estão em casa]. Nossa missão será iluminar sempre. A luz da Verdade
terá que brilhar continuamente em nossas palavras, mas também na nossa vida,
para que sejamos realmente uma luz.
Não podemos
esquecer que essa evidência é, para nós, uma responsabilidade. Super
candelabrum [(como luz) sobre o candelabro] — é natural
que chamemos a atenção. Todos os olhares convergem sobre nós e nada perdem os
amigos e inimigos que nos observam atenciosamente. Na escuridão os defeitos
desaparecem. Mas na Luz, qualquer falha chama a atenção.
Alguém
disse, e com razão, que o povo sabe não somente o que o padre faz, o que ele
diz, mas também o que ele pensa... Ouve-se dizer, às vezes: com, ou sem motivo,
as más línguas falam sempre. Que falem, isto é com as más línguas; que não
devemos dar motivo, isto é conosco. Se falarem sem motivo, não importa, porque
a luz sempre se impõe. Mas, se dermos motivo, não nos podemos queixar que as
falhas apareçam, e, com elas, os comentários. Vítima das más línguas, São Paulo
nunca se descuidou de seu bom nome. Por isso aconselhou também ao seu
discípulo: In omnibus teipsum praebe exemplum [dá bom
exemplo em todas as coisas (Tt 2,7)].
03 DE MAIO
Nunquam
indignationem tuam provocemus [(com o nosso orgulho) nunca
provoquemos a vossa indignação]
É como reza
a Santa Igreja, exprimindo uma preocupação sua, muito justa: Que o nosso
orgulho não chegue a atrair sobre nós o desprezo e a ira de Deus. Com a sua
grande experiência, dizia Santa Teresa: Prefiro ver os conventos cheios de
todos os pecados, menos do pecado de orgulho: se os outros pecados dão lugar ao
arrependimento, o orgulho cega a alma e não a deixa aproximar-se de Deus.
Para
qualquer pecado existe sempre a Misericórdia divina; para o orgulho, só existe
o desprezo de Nosso Senhor. É o que se vê no Evangelho. Até aquela mulier
quae erat in civitate, peccatrix [mulher pecadora da cidade (Lc
7, 37)] encontra o perdão para a sua miséria. Mas as fariseus, que se fecharam
no orgulho, não mereceram mais que o desprezo do Mestre, naquela palavra dura e
corajosa: meretrices praecedent vos in regnum Dei [as meretrizes
vos precedem no Reino de Deus! (Mt 21,31)].
Preciso
pensar que meu orgulho só deixará de existir na hora da minha morte. Enquanto
eu estiver vivo, ele não estará morto. Se eu não o dominar, à medida que eu for
crescendo em anos e experiência, poderei crescer também no orgulho e, nesse
caso, irá crescer o desprezo de Deus para comigo.
04 DE MAIO
Augusta
porta quae ducit ad vitam! [estreita é a porta que conduz à vida! (Mt
7,14)]
Foi Nosso
Senhor mesmo quem nos avisou: lata porta, et spatiosa via est, quae
ducit ad perditionem [larga é a porta e espaçoso o caminho que
conduz à perdição (Mt 7, 13)]. Por isso Ele insiste conosco: intrate
per angustam portam! [entrai pela porta estreita!]
É verdade
que uma porta estreita não oferece tanta facilidade. E Nosso Senhor mesmo
reconheceu que o caminho da virtude é estreito e apertada a porta de ingresso
para a vida eterna: Quam angusta porta, et arcta via est, quae ducit ad
vitam [porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à
vida!]. Segundo o Evangelho, a santidade, ora é um caminhar com a cruz às
costas, ora um arado sulcando a terra. Às vezes é o trabalho numa vinha, outras
vezes é o nosso empenho em forçar as portas de um Reino que sofre violências.
Por isso, não devo estranhar se o trabalho me pesa e o caminho se apresenta
longo e difícil.
Nosso Senhor não me prometeu outra coisa neste mundo e Ele foi o primeiro a trilhar esse caminho do sacrifício: Exemplum dedi vobis [dei-vos o exemplo (Jo 13, 15)]. Não posso atender as queixas e lamúrias da minha natureza de morte. Quanto mais ela reclamar, tanto mais deverei compreender que não fui criado para viver sempre num vale de lágrimas. Tenho que aceitar os sacrifícios, como uma preparação amarga para uma alegria sem fim. In mundo pressuram habebitis [no mundo haveis de ter aflições (Jo 16,33)] — foi isto o que o Mestre me prometeu.
05 DE
MAIO
Diligo
decorem domus tuae [amo a ornamentação da Vossa Casa (Sl 25,8)]
A Igreja
nos lembra hoje* a figura de São Pio V, aquele que Deus escolheu ad
divinum cultum reparandum [para restaurar o culto divino].
Esposa imaculada, a Igreja se dá em atenções e cuidados para com seu Esposo
divino. Às vezes até nos poderia parecer exagerado o capricho, verdadeiro
carinho com que ela prevê e determina todos os pormenores, referentes ao culto
e à Casa de Deus.
Nós somos as pessoas dessa Casa, escalados, ou melhor, escolhidos para o serviço divino. E com que cuidado a Igreja não nos escolheu! Ela sabe o porquê. Amar a Casa de Deus significa bem mais que ter apenas um certo interesse pelas coisas da igreja. O principal, tratando-se do culto, somos nós mesmos.
O nosso trabalho deve ser executado com aquele amor e carinho com que a Igreja procura servir a Nosso Senhor. Não pode ser executado mais ou menos. O culto sagrado está exigindo de nós alma e fervor, porque meras cerimônias, executadas sem piedade ou com uma piedade artificial, não convencem e nem elevam. No altar, mais do que nunca, somos os sacerdotes de um Deus vivo.
* no calendário católico tradicional
06 DE
MAIO
Ite, docete [Ide,
ensinai (Mt 28,19)]
Naquele
tempo, essa palavra do Mestre poderia parecer absurda. Com que meios, com que
recursos, aqueles homens sem experiência e sem prestígio, sairiam pelo mundo,
ensinando a Cruz? Humanamente aquela missão deveria fracassar. Mas os
discípulos obedeceram e o milagre se realizou.
Hoje
desapareceram as distâncias. Posso pregar em toda parte, posso me fazer ouvir
em todo o mundo, sem sair de casa. O progresso pôs em minhas mãos os meios que
faltavam aos Apóstolos. Hoje eu posso me multiplicar. Nosso Senhor não me
aconselhou apenas que pregasse; Ele me deu uma ordem nesse sentido. E se os
meios para isso não me faltam, não posso alegar, como desculpa a minha falta de
qualidades. Orator fit [o orador se faz] — tenho que me
esforçar, pois o interesse pela minha missão exige que eu não me acomode na
minha incapacidade.
Para
ensinar a palavra de Deus, eu não devo certamente desprezar os meios humanos.
Mas também não preciso ser um consumado orador sacro. Às almas de boa vontade
aproveita muito mais uma palavra simples, cheia de Deus do que toda uma peça
oratória, transpirando vaidade e cheirando a nada.
07 DE
MAIO
Abscondi
talentum tuum in terra ['escondi o teu talento na
terra' (Mt 8,25)]
Meu Deus,
não é para me queixar se eu digo que, na ordem temporal, não sou nenhum
privilegiado. Pelo contrário, reconheço que a ausência de talentos me reduziu a
uma completa nulidade. Mas na ordem espiritual, tenho que reconhecer a tua
prodigalidade simplesmente incompreensível.
A vocação à Fé, a graça, a oração e, principalmente, o sacerdócio, que me faz viver a teu lado... mais eu não poderia desejar, pois o teu amor de predileção não me podia elevar mais alto. Realmente, eu recebi demais. Se eu não tenho do que reclamar, o que eu devo, sim, é corresponder a essa predileção, e ser digno da tua confiança. Não posso enterrar o que me deste; preciso fazer essa riqueza render, e muito mais.
Senhor, Tu sabes quantos são aqueles que devem receber de mim e a tua Providência já determinou o quanto devo dar a cada um. Eu seria um servo inútil se não reconhecesse o valor desse tesouro que me deste e se o não soubesse administrar de acordo com teus planos. Preciso reconhecer a tua clemência nos talentos que me confiaste; essa riqueza eu a devo repartir com teus filhos, os meus irmãos.
08 DE MAIO
Non erat
eis locus in diversorio [não havia lugar para eles na
hospedaria (Lc 2,7)]
Com que
facilidade lemos estas palavras! E não refletimos bem quanto elas encerram de
humildade para o Redentor e de doloroso para sua Mãe Santíssima. Não houve na
cidade uma família que desse ao Messias um lugar para nascer. Ninguém quis
receber aquela mulher que, com o seu filho, iriam dar muito trabalho... Antes
de nascer, Nosso Senhor já estava sendo um incômodo, um indesejável para muita
gente. E continuou sendo assim através dos tempos.
Uma senhora
da sociedade pedia ao vigário para que não mandasse tocar os sinos de manhã
porque a incomodavam... Após as missões, um pároco se queixava que os
missionários lhe deixaram a paróquia fervorosa demais... E na minha vida, Nosso
Senhor não estará sendo, às vezes, um tanto incômodo também?
Quando uma
obrigação me vem tirar do meu sossego; quando um necessitado, do corpo ou da
alma, me vem bater à porta fora de hora; quando um sacrifício se apresenta para
estragar o meu repouso... então preciso pensar: É Ele, com toda certeza! Em
Belém não o reconheceram; mas eu sei que é Ele, e preciso atendê-lo: quamdiu
fecistis uni ex his fratribus meis minimis, mihi fecistis [o que
fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes (Mt
25,40)].
09 DE
MAIO
Omnia in
nomine Domini [(fazei) tudo em nome do Senhor (Cl
3,17)]
"Toda
a vida do homem, peregrino neste mundo, deve tender para Deus e todos os atos
humanos, devem, afinal, ser culto a Deus, em Jesus Cristo, e por Jesus Cristo.
Ora, o oferecimento cotidiano das obras é já, per si [por
si mesmo], culto prestado ao Senhor; é oração, e das melhores que,
consagrando as primícias do dia, o santifica.
Mas quando
vivido, animando conscientemente a executar bem as ações e a suportar bem cada
sacrifício, então é a vida toda feita realmente culto a Deus, então é a oração
vital de que falam os santos e que o Apóstolo inculcava aos fiéis: 'Fazei tudo
em nome do Senhor Jesus'.
Então a vida dos fiéis tenderá a elevar-se mais geralmente a um alto nível de santidade e a uma necessidade mais sentida de viver na graça de Deus, para que as nossas oblações lhe sejam aceitas. Assim, o pensamento mais frequente das grandes verdades da Fé e a maior intimidade com o Coração divino irão purificando a alma e ateando a chama do amor que vence as tentações, que não teme sacrifícios, que triunfa nos obstáculos e leva à santidade" (Pio XII).
10 DE
MAIO
Vinum novum
in utres veteres [vinho novo em odres velhos (Mt 9,17)]
Nosso
Senhor nos disse que não podemos conservar o vinho novo em vasilhame velho. E o
mesmo pensamento exprimiu São Paulo, ao dizer que não podemos combinar o vetus
homo [homem velho] com o homem renovado pela Graça. Querer conservar
nossos defeitos, poupando-os, seria para nós o mesmo que renunciar à virtude.
Como iríamos manifestar Nosso Senhor em nossa vida, mantendo, vivo em nós,
o vetus homo [homem velho] comodista, vaidoso, apegado e cheio
de si?
Não podendo
ver a santidade em Nosso Senhor que lhes é invisível, as almas esperam ver a
santidade no sacerdote. Supor não lhes basta, querem constatar a virtude
do Alter Christus [outro Cristo]. Por isso o estudam e
observam. Geralmente sabem distinguir muito bem o homem novo, feito de
virtudes, e o homem velho, feito de falhas e fraquezas. Reconhecem com
facilidade o Alter Christus, plenum gratiae et veritatis [outro
Cristo, cheio de graça e de verdade] e o vetus homo [homem
velho] que, a custo, consegue esconder-se atrás de uns poucos remendos de
virtude.
Nada mais triste, aos olhos do mundo, que um vetus homo [homem velho] transpirando vaidade, comodismo, apego e orgulho a pregar o desprendimento, a penitência, o amor a Deus. A impressão não pode ser outra: Alligant onera gravia, et imponunt in humeros hominum; digito autem suo nolunt ea movere [Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com o dedo (Mt 23,4)].
11 DE
MAIO
Si sal
evanuerit... [se o sal perder o sabor (Lc 14,34)]
Isso
acontece quando o padre vai abandonando o seu fervor habitual. Com isso, perde
a força... da graça. Qualquer pretexto é suficiente para dispensá-lo da
meditação. Omite com facilidade o exame de consciência, à noite; o trabalho foi
tanto e o cansaço é demais. Para os exercícios de piedade, não encontra o tempo
necessário porque, não tendo ordem no seu trabalho, ainda se entrega à
dissipação.
A própria
Missa, ele diz mas não a celebra rezando nem a pratica vivendo. Sem fervor, não
se preocupa com a pureza de sua consciência. Facilita as ocasiões e as faltas
vão se sucedendo, até que a consciência, morta, não reage mais ante as faltas
mais graves. Logo o Homo Dei [homem de Deus] estará
transformado num simples homem do mundo e, a essa altura, a própria batina
poderá ir no naufrágio, se um milagre da graça a não salvar.
Ad nihilum
valet ultra [para nada mais serve] — a esse ponto chegou: não servir
para mais nada. Afastado de Deus e das almas, neque in sterquilinium
utile est... [nem para adubo será útil...] assim falou Nosso
Senhor. E com que tristeza não terá Ele proferido uma palavra tão dura!
12 DE
MAIO
Non omnia
expediunt [nem tudo é oportuno (1Cor 10,22)]
Inspirado
pelo meu orgulho e comodismo, às vezes, penso assim: Não me importa o que
outros pensem ou digam a meu respeito; Deus é quem me julga. E se pergunto a
minha consciência, porque chego a pensar dessa maneira, ela me responde: Porque
não me quero impor certas renúncias... Para não dar o que falar, o Apóstolo
renunciou a muita coisa que lhe seria lícita. E o mesmo eu terei que fazer
muitas vezes.
Certamente não estou em melhores condições que São Paulo cuja virtude, por si só, já bastava para fazer calar todos os seus inimigos. Nunca poderei sacudir os ombros, indiferente à impressão que possam ter de mim, não por respeito humano, mas porque assim exigem o meu ministério e a caridade. Não posso prejudicar a outros, expondo o meu nome. O que um faz, reflete nos outros, e até na própria Igreja.
De outro
lado, a Moral me diz que muita coisa, em si lícita, poderá tornar-se ilícita,
conforme as circunstâncias, principalmente em se tratando de ocasiões
perigosas. Para mim também existe o perigo, pois, pela ordenação, não fui
confirmado na graça. Aquele que facilita acaba caindo e, o que é pior,
arrastando a muitos outros na queda.
13 DE
MAIO
In
veritatis amore crescamus [cresçamos no amor à verdade]
Esta a
graça que a Igreja pede para nós na oração do dia. Uma graça que nunca
deveríamos deixar de pedir: o amor à Verdade, e, consequentemente, o horror aos
pecado, que é a mentira: In veritate non stetit, quia non est veritas
in eo... mendax est [não permaneceu na verdade, porque a verdade
não está nele... é mentiroso (Jo 8,44)].
Como a
nossa natureza pende sempre para o pecado, entre a Verdade e a mentira, esta
sempre ganha a nossa preferência. Daí o nosso medo à Verdade; custa-nos tanto a
sinceridade com a nossa consciência, e com Deus mesmo! E daí também o nosso
apego à mentira.
Podemos dizer que ela anda solta em nossa vida: a mentira do orgulho, que já vem do Paraíso, a nos dizer que não precisamos obedecer tanto, nem a Deus, nem aos superiores; a mentira do apego, dizendo que este mundo pode muito bem contentar o nosso coração; a mentira da sensualidade, insinuando-se à nossa simpatia, como se o prazer dos sentidos superasse as alegrias do espírito. O demônio é a mentira; por isso a Igreja pede que Deus nos livre ab insidiis diaboli [das ciladas do demônio], para que sejamos mais sinceros com a nossa consciência e com Nosso Senhor.
14 DE MAIO
Ut omnes
facerem salvos [para que todos sejam salvos (1Cor 9,23)]
É São
Francisco de Sales quem nos dá uma receita muito sábia para o nosso ministério
pastoral. Diz ele que, para dirigir bem as almas, precisamos de um copo de
ciência, um barril de prudência e um oceano de paciência.
Um copo de
ciência — é certamente o mínimo. E se nos descuidamos, perdendo o contato com
os livros, esse copo de ciência adquirido no seminário poderá secar. Um barril
de prudência — e é Nosso Senhor quem indica a qualidade, mandando-nos ter uma
prudência de serpentes. O Mestre já nos avisou que estaríamos no mundo, como
ovelhas entre lobos. Geralmente ignoramos as dimensões da falsidade que nos
rodeia: mundus vult decipi [o mundo quer ser enganado].
Um oceano
de paciência — é o mais difícil, e também o mais necessário. Sem paciência,
acabaremos no desânimo; não nos faremos ouvir nem compreender. Foi justamente
pela paciência e mansidão que São Francisco de Sales realizou tanto. É que a
bondade atrai a todos e para os pecadores, principalmente, ela já é uma
promessa e uma esperança de perdão.
15 DE MAIO
Implete
hydrias aqua! [enchei as talhas de água! (Jo 2,7)]
O que
pediam os convivas era vinho. Sua Mãe lhe diz: Vinum non habent [eles não
têm vinho]. E Nosso Senhor manda encher as vasilhas com água... Sempre a
sua misteriosa Providência! Et impleverunt eas [e
encheram-nas] — logo depois a água estava transformada no melhor dos vinhos.
Em minha
vida, há muita coisa a que não dou importância, como a água à hora daquele
banquete em Caná. Mas... quodcumque dixerit vobis, facite [fazei
o que Ele vos disser (Jo 2,5)] — que eu faça tudo, de acordo com Nosso
Senhor. Que eu não me negue a cooperar com a sua Providência, embora não
compreenda os seus desígnios. Que eu ponha toda a minha obediência e amor na
vida simples que levo. Que eu me entregue, com toda confiança, à vontade de
Nosso Senhor porque Ele não irá estragar nada, mas transformar tudo.
Não tenho
que me inquietar, perguntando porque isto ou porque aquilo. A infinita
Sabedoria já previu tudo em meu favor. Que eu não lhe negue a minha dedicação e
Nosso Senhor saberá mudar a água da minha vida no vinho da minha eternidade.
Que a minha única preocupação neste mundo seja o que Santo Tomás tão sabiamente
pedia: Quae tibi placita sunt, ardenter concupiscere, prudenter
investigare, verasciter agnoscere, et perfecte adimplere [aquilo
que te agrada (ó Deus) ardentemente desejar, prudentemente
investigar, verdadeiramente conhecer e perfeitamente realizar].
16 DE MAIO
Simile est
regnum caelorum... [o Reino de Deus é similar ... (Mt 13,31)]
a uma
sementeira que, lançada à terra, germinou, desenvolveu-se e se fez árvore, para
abrigar as aves do céu: aí está o Reino de Deus em minha vida. Mas, para que a
semente crescesse, foi necessário muito cuidado e carinho; do contrário, nem
teria germinado.
No campo da
minha vida, quanta sementinha tem sido atirada por Nosso Senhor. São, muitas
vezes, insignificâncias, que eu não considero, mas que Ele já viu e sabe porque
colocou nos meus caminhos. Nihil odisti eorum quae fecisti [(Deus) não
odeia nada que fez (conforme Sb 11,25)] — os seus olhos consideram
tudo, embora eu não queira considerar. Preciso dar às outras pequenas sementes
o valor que elas têm. Se eu as desprezar, estarei desprezando a minha
existência mesma. Aos olhos de Deus tudo é grande, porque de tudo Ele se serve
para transformar a minha vida no seu Reino.
A
fidelidade nas coisas pequenas nunca foi uma pequena virtude. Renunciar a uma
palavrinha que eu iria dizer; caprichar numa simples genuflexão que iria ser
apressada; fazer uma jaculatória para ganhar um momento que eu iria perder...
quanto esforço e espírito de fé! E é desse esforço que está dependendo o Reino
de Deus em minha vida.
17 DE
MAIO
Daemones
rogabant eum [os demônios imploraram a Ele (Mt 8,31)]
Por
incrível que pareça, um dia os demônios fizeram um pedido a Nosso Senhor: E que
pedido! Si ejicis nos hinc, mitte nos in gregem porcorum... [se
nos expulsas, envia-nos para aquela manada de porcos...]. Eram os demônios
que pediam e Nosso Senhor os atendeu!
Depois
disto, como não confiar nas palavras do Mestre: Petite et accipietis [Pedis
e recebereis]? Impossível a Nosso Senhor não cumprir o que nos prometeu.
Mas a condição é que peçamos. O Bone Jesu! [Ó Bom Jesus!]
que eu me convença, de uma vez por todas, do amor com que me amas e da
misericórdia com que me olhas! Eu devo pensar que nunca deixarias de atender a
um pedido meu, porque, sem que eu o pedisse, já fizeste muito mais por mim.
Que eu
reconheça a minha miséria de filho pródigo: preciso da tua força, da tua vida
e, principalmente, do teu perdão. Embora pródigo, sempre serei teu filho, com
direito de falar com meu Pai. Que eu não renuncie a esse direito porque seria
essa a minha perdição. Preciso me convencer de que nada tenho e tenho tudo, na
promessa de uma riqueza infinita que o teu amor me preparou. Mas essa riqueza
somente será minha se eu a souber desejar e pedir, pois 'quem reza se salva'.
18 DE
MAIO
Ut etiam
pro illo patiamini [mas, por Ele, sofrer (Fl 1,29)]
Diz o
Apóstolo que nós recebemos não somente a graça de crer em Nosso Senhor, mas
também a de podermos sofrer por Ele. Uma fé profunda leva-nos sempre ao
espírito de sacrifício e reparação. Os mártires são a Fé que não morre.
Trabalhar
para Nosso Senhor não nos pesa tanto, ainda mais quando dispomos de uma boa
saúde, aliada a uma disposição natural para a atividade. Até a nossa vaidade se
oferece para nos auxiliar no trabalho. Mas tratando-se de sofrer a falta de
saúde, as incompreensões, a ausência de meios ou de qualidades... só mesmo um
grande amor a Nosso Senhor é que nos pode animar. Ante o sofrimento as forças
desaparecem.
Precisamos
compreender que, sofrer por Ele, não é nenhum castigo; é uma graça. O
sofrimento é um mérito puro, quando alimentado pelo amor; ninguém sofre por
gosto ou vaidade. Messis quidem multa [a messe é grande (Lc
10,2)] — não é pouco o que devemos reparar com nossos sacrifícios. Operarii
autem pauci [os operários são poucos (Lc 10,2)] — mas não
são muitos os que se dedicam a essa forma de apostolado. No entanto, diz São
Francisco de Sales, sofrer é quase a única coisa de bom que podemos fazer neste
mundo. Nossa natureza não o entende; nossa generosidade o irá compreender.
19 DE MAIO
Iuvenilia
desideria fuge! [foge das paixões da mocidade! (2Tm 2,22)]
Assim
escreveu São Paulo a um moço. Mas, nem por isso, deixa de ser um conselho para
aqueles que já estão mais avançados em anos. Iuvenilia desideria [paixões
da mocidade] — porque atraem a mocidade, não deixam de impressionar também
a idade madura.
Certas
ilusões e ingenuidades são próprias da falta de experiência e, por isso,
aparecem com mais frequência na mocidade. Outras porém, como a vaidade, o apego
e os ciúmes não fazem questão de morar só em coração de moço; aninham-se
perfeitamente em qualquer vida, em qualquer idade. Eu não devo pensar que, por
ser mais avançado em anos, já esteja também mais longe nos caminhos da
virtude.
Eu bem sei que outros, em menos tempo, fizeram muito mais do que eu, nos anos todos que vivi. Preciso me prevenir contra essa falta de disposição para a luta, que os anos me poderão trazer. Avançando em idade, poderei atrasar-me ou até estacar no caminho da virtude. O programa do Apóstolo a Timóteo não é para ser realizado nuns poucos anos de mocidade; é trabalho, é luta para toda a vida: sectare vero iustitiam, fidem, spem, caritatem [busca com empenho a justiça, a fé, a esperança e a caridade]. Se eu não sei quantos anos de vida ainda terei, no caminho da virtude resta-me ainda muito para percorrer.
20 DE
MAIO
Et videns
eos sequentes... [e vendo que O seguiam...(Jo 1,38)]
Tendo
ouvido que Nosso Senhor era o Cordeiro de Deus, os dois discípulos o seguiram.
E o Mestre lhes perguntou: Quid quaeritis? [o que
procurais?] — Eles queriam o Mestre, queriam a sua doutrina. Seguir a Nosso
Senhor é o que já estamos fazendo há muito tempo. Mas se Ele nos perguntasse,
às vezes: Quid quaeritis? [o que procurais?] — qual
seria a nossa resposta?
Infelizmente
nem sempre o seguimos com aquele interesse dos Apóstolos. Enquanto o
acompanhamos, deixamo-nos prender por muita coisa que nos atrai, que desvia a
nossa atenção e até nos afasta do caminho certo. Quando procuramos fugir a um
trabalho, quando descuidamos alguma obrigação — quid quaeritis? [o
que procurais?].
Quando
reclamamos, sentindo-nos prejudicados em nosso descanso ou comodismo — quid
quaeritis? [o que procurais?]. Quando condescendemos com a
vaidade, preocupando-nos demasiado conosco, ou com outros — quid
quaeritis? [o que procurais?]. Facilitando em certas ocasiões,
alimentando certos apegos e amizades quid quaeritis? [o que
procurais?]. Consultemos a nossa consciência e ela nos irá mostrar como,
muitas vezes, pensando procurar a Nosso Senhor, estamos procurando a nós
mesmos.
21 DE MAIO
Scio opera
tua [conheço as vossas obras (Ap 2,2)]
Meu Deus,
que consolo para mim saber que conheces tudo em minha vida! Se nada escapa aos
olhos da tua Justiça, nada perde também a tua Misericórdia. O que me anima é
pensar que olhas para a minha vida, mais com amor do que com justiça.
O que te interessa não é tanto aquilo que possa merecer castigo; o que procuras em minha vida é, principalmente, o que possa merecer uma recompensa. Com amoroso carinho vives recolhendo tudo o que possa formar a minha eternidade, na glória que me queres dar. Sei muito bem que um simples copo de água dado por teu amor non perdet mercedem suam [não perderá a sua recompensa (Mt 10, 42)]. Se o mundo não reconhece o meu trabalho e se não dá valor aos meus sacrifícios, não importa.
In domo Patris mei [na casa do meu Pai] há uma recompensa à minha espera porque os teus olhos não perdem as migalhas que enchem a minha vida. O teu amor de Pai não me esquece e está recolhendo, um por um, os meus dias de trabalho. Quando estiver pronta a minha eternidade, sei que me virás buscar porque queres a minha companhia, para sempre: Intra in gaudium Domini tui! [entra na glória (alegria) do teu Senhor! (Mat 25, 21)].
22 DE MAIO
Consurgunt
reges terrae... [insurgem os reis da terra...(Sl 2,2)]
Deliciosa a
expressão do salmista: Deus fazendo mofa dos seus inimigos. São reis e
poderosos da terra que se levantam contra Ele. Mas, são reges terrae... [reis
da terra...]. Pelo caminho de nosso ministério não faltam dificuldades que
precisamos vencer. A oposição de alguns, a incompreensão de outros, a
indiferença de muitos, e ainda, as nossas próprias falhas, tudo está diante de
nós, dificultando o nosso trabalho.
Não nos
admiremos; somos ministros de uma Igreja militante — in mundo pressuram
habebitis [vós tereis aflições no mundo]. E se hoje a fé parece
encontrar maiores dificuldades, nem por isso diminuiu a força de Deus que nunca
abandonou a sua Igreja. Se pusermos a nossa confiança nos meios humanos,
certamente iremos desanimar. Temos que nos apegar a Nosso Senhor pela vida de
oração. A união com Deus é que nos dará a força de Deus.
E mesmo
quando tudo nos parecer perdido, a confiança não nos deixará desanimar. Com a
morte do Mestre, os discípulos poderiam pensar que tudo estava terminado. Mas a
Ressurreição lhes mostrou que era apenas o começo, o que eles pensavam fosse o
fim. Confidite, ego vici mundum [Coragem. Eu venci o
mundo!].
23 DE
MAIO
Omnia
vestra in caritate [tudo fazeis na caridade (1Cor 16,14)]
Se este
conselho do Apóstolo valia para os simples fiéis, quanto mais não deverá valer
para nós, sacerdotes. Que sentido terá a nossa vida de sacrifício, de renúncia
e imolação, se não fizermos da glória de Deus uma como ideia fixa de toda a
nossa atividade? Somente um grande amor a Nosso Senhor e às almas poderá
justificar e explicar uma vida verdadeiramente sacerdotal.
Escrevendo
aos padres da sua congregação, Santo Afonso dizia: 'Desejo imensamente que
todos vivam como enamorados de Jesus Cristo, principalmente nestes tempos
infelizes, em que Ele é tão pouco amado no mundo'. Realmente, Nosso Senhor está
esquecido, porque o trabalho e a dissipação tomaram conta do mundo. Mas Ele
espera que, ao menos os seus escolhidos se interessem por Ele: Numquid
et vos vultis abire? [quereis vós também retirar-vos? (Jo
6,67].
Se nós, que
devemos dar Nosso Senhor às almas, não nos interessamos por Ele; se damos ao
mundo o espetáculo de uma vida dissipada porque nos preocupamos com outros
interesses, muito mais que com Nosso Senhor; enfim, se nós não vivemos in
caritate [na caridade], assim como ensinamos a outros, então é
mesmo para se exclamar com Santo Afonso: Pobre Jesus Cristo!...
24 DE
MAIO
Dominus
sollicitus est mei [O Senhor vela por mim (Sl 39, 18)]
Quanta
poesia, quanta unção pôs Nosso Senhor em suas palavras, ao nos falar da
Providência divina! (Mt 6,25). E, para o salmista, a Providência não é um
simples cuidado de Deus a nosso respeito — o que já seria muito — mas é a
solicitude de um Pai, verdadeira preocupação de Deus para conosco.
Se Deus não
somente cuida de nós, mas até vive preocupado conosco, porque teremos que
pensar tanto em nós mesmos? Quid solliciti estis? [por que
vos inquietais?]. Não precisamos pensar tanto no dia de amanhã: sufficit
diei malitia sua [a cada dia basta o seu mal]. Os interesses de
Nosso Senhor são as almas, e é a elas que nos devemos dedicar. Temos que ser a
Providência divina para os outros, preocupando-nos com eles, material e
espiritualmente. E como será isso possível, se não nos esquecermos de nós pela
confiança em Deus?
Nosso
egoísmo é tão grande que enche todos os nossos cuidados. Não há lugar para
ninguém. Temos que sair das nossas preocupações, dando lugar a outros. E
podemos sair tranquilos, confiando nessa verdade tão antiga, que Abrão, o
Patriarca, já nos ensinou: Dominus providebit [o Senhor
proverá].
25 DE MAIO
Saepe
videtur caritas... [muitas vezes parece caridade...]
Com a sua
experiência, Santo Agostinho nos previne contra uma falsa caridade, nascida de
um sentimentalismo perigoso — ubi non est nisi carnalitas [onde
não há senão amor próprio]. Às vezes, são pessoas que trabalham nas obras
paroquiais, nas associações, no cuidado da igreja...
Às vezes, pessoas que nos distinguem com uma amizade toda especial: cartas, visitas, presentes. Aqui é uma pessoa que se diz escrupulosa, à procura de um guia e de um apoio. Ali é alguém que se julga vítima, incompreendida, sob o peso de mil problemas e dificuldades. Todas elas se julgam almas eleitas e, por isso, credoras de uma atenção especial. Querem elogios, visitas, horas de sala e de confessionário. Às vezes, por um nada, armam verdadeiras tempestades de ciúmes, comentários e aborrecimentos para o sacerdote.
Aparentando piedade, querem monopolizar o vigário ou o confessor e, sob o disfarce de caridade, procuram apenas a si mesmas. Com um pouco de prudência, facilmente o sacerdote irá saber logo do que se trata. Valha-nos aqui o aviso de Nosso Senhor: Cavete ab hominibus! [cuidai-vos dos homens!]. E com a observação de um comentarista: Cavete a mulieribus! [cuidai-vos das mulheres!].
26 DE
MAIO
Tu es qui
venturus es? [sois vós aquele que deve vir? (Mt 11,3)]
A essa
pergunta, Nosso Senhor respondeu, lembrando a sua doutrina e os seus
milagres: Renuntiate quae audistis et vidistis [contai o
que ouvistes e o que vistes (Mt 11,4)]. Hoje temos diante de nós
aqueles que ainda não conhecem o Mestre. Querem conhecê-lo e por isso o
procuram. Temos também aqueles que o conheceram e o abandonaram; não se
interessam mais por Ele. A uns e outros deve chegar o nosso zelo, cheio de
solicitude e prudência.
Se não lhes
podemos oferecer milagres, como prova da nossa missão divina, nem por isso
estamos desarmados diante da incredulidade ou da indiferença. O que podemos e
devemos apresentar é o espetáculo de uma virtude a toda prova, assentada sobre
uma doutrina que não é deste mundo.
Se nossa
vida estiver em tudo de acordo com a doutrina que pregamos, o mundo
compreenderá que está diante daquele que pode perguntar: Quis ex vobis
arguet me de peccato? [quem de vós me acusará de pecado? (Jo
8,46]. Para as almas não basta ouvir a doutrina do Mestre, querem vê-la
praticada: Audistis et vidistis [ouvistes e vistes]. A
santidade de nossa vida, toda iluminada pela presença de Nosso Senhor, será o
argumento decisivo para aqueles que não creem. E, diante de nós, eles irão
reconhecer: Invenimus Messiam [encontramos o Messias].
27 DE MAIO
In tua
simus voluntate concordes [concordes em fazer a Vossa
Vontade]
Assim reza
a Igreja. E, ensinando-nos a rezar, Nosso Senhor já nos lembrou que precisamos
concordar com Deus, em tudo: Fiat voluntas tua, sicut in caelo [seja
feita a vossa vontade como no céu]. Nós... discordando de Deus —
parece incrível, mas é o que acontece.
Temos que
viver unidos a Nosso Senhor pela oração para que a nossa vontade e os nossos
caprichos não ponham a perder nossas atividades. Nisi manserit in vite,
palmes non potest ferre fructum a semet ipso [sem permanecer na
videira, os ramos não podem dar frutos por si mesmos (Jo 15,4)]. Poderemos
realizar maravilhas e passar pelos maiores sacrifícios; sem Ele, tudo será
inútil, sem valor. A Igreja não é um regnum in se divisum [reino
dividido em si mesmo] — é um corpo, cuja cabeça é Nosso Senhor. Para
vivermos unidos a esta Cabeça, temos que viver com a Igreja, trabalhando com
seu zelo sobrenatural, com seu amor e dedicação à glória de Deus.
Homo quidem
habuit duos filios [um homem tinha dois filhos (Lc 15, 11)] — e um
deles não quis concordar com seu pai, permanecendo em casa. Saiu para viver em
liberdade. Nesse dia começou a sua ruína. É nessa desgraça que continuam a cair
aqueles que não querem concordar com Deus, por não concordarem com sua Igreja
ou com os próprios superiores.
28 DE
MAIO
Zelus domus
tuae [o zelo da tua casa (Jo 2,17)]
'Sede,
antes de tudo, discretos em começar. Impelido pelo zelo que muitas vezes o
devora, pode o sacerdote apóstolo cair num erro danoso pretendendo conseguir
tudo de uma vez. Proceder desse modo significa expor-se primeiro a vãs ilusões,
e depois, a desilusões amargas.
Não pode o
apóstolo deixar de considerar a fraqueza moral alheia, a falta de preparo
intelectual, as pessoas e coisas no meio das quais vive e, por assim dizer, a
margem de onde a alma extraviada deveria vir a ele, melhor, voltar a Deus, se
ela se deixasse induzir a empreender a travessia. Mas atacá-la com argumentos
que ela não entende ou pedir o que ela não está preparada para lhe dar
certamente seria nocivo aos efeitos do apostolado.
Essa discrição não quer dizer condescendência com a falsidade e com o mal. Trata-se aqui de iniciar os entendimentos para uma paz justa, não entre o bem e o mal, o que seria absurdo, mas entre o homem que renuncia a sua malícia e Deus que o acolhe. Saber renunciar a pressa, saber aguardar o momento propício, saber dosar o que se diz e o que se pede: eis um primeiro requisito indispensável à ação apostólica individual' (Pio XII).
29 DE MAIO
Non mea
voluntas fiat [não se faça a minha vontade (Lc 22,42)]
'Outra
qualidade, porém, deve ter o apóstolo, no trato com as almas, objeto dos seus
cuidados pastorais. Sucede que nem sempre se consegue aquilo que se quer e raro
é que se obtenha imediatamente. Nem está excluído que hostilidade, frieza ou
indiferença possam tentar o sacerdote a desistir da sua obra ou tornem sua
ação mais fraca e menos eficaz.
O apóstolo
deve ser constante, persistente, sem ceder ao cansaço e ao tédio. Precisa saber
ficar a pé, quando tudo impele a vacilar; ficar firme, quando se devesse cair
de bruços ao peso de uma angústia que transforma em silenciosas agonias certas
noites que parecem eternas.
Então, quando os lábios do apóstolo murmura: Quid lucri? [o que ganhei?] ou quando dolorosamente ele exclama: Transeat a me... [aparte de mim...] é preciso que ele acrescente logo, como Jesus no Horto: Non mea voluntas sed tua, fiat [não se faça a minha vontade, mas a tua (Lc 22,42)]. E Deus enviará o anjo consolador para revigorá-lo, para sustentá-lo e a sua obra de salvação prosseguirá para coroar o seu zelo e o seu sacrifício' (Pio XII).
30 DE MAIO
Non
turbetur cor vestrum [Não se perturbe o vosso coração (Jo 14,1)]
'Uma
terceira qualidade quereríamos no apóstolo que atende à santificação das almas.
Há na Igreja um sopro do Espírito Santo, que convoca ao heroísmo, à dedicação
completa. No meio dos espinhos de um mundo novamente pagão, brotam, sempre mais
numerosas, flores imaculadas, que recreiam com sua frescura, e encantam com seu
perfume: espíritos eleitos, de todas as idades e condições.
Quiséramos
que, com uma santa coragem, os sacerdotes soubessem propor os alvos de uma
santidade mais elevada. Porque tantas almas caem nas redes do mundo? Por
acreditarem achar nele aquilo que faz o objeto de seus anseios; infelizmente
tarde demais, percebem elas que os frutos dessa convivência são a inquietação,
a dúvida, a tristeza, a desconfiança, o ódio. Sede corajosos!
Sabei tomar
pela mão as almas e impeli-las, doce mas firmemente, para Jesus, para a amizade
com Ele, para a transformação nEle. Fazei-lhes compreender que, só assim, elas
acharão a paz, a fé, a alegria, a esperança, o amor; só assim elas acharão a
vida. Sede discretos em começar, constantes em continuar, corajosos em levar a
termo' (Pio XII).
31 DE
MAIO
Petrus
sequebatur eum a longe [Pedro o seguia de longe (Mt
26,58)]
Senhor:
quanto não tenho que aprender do teu Apóstolo, nesse momento em que ele me
poderia parecer um medroso, um covarde! Quando todos fugiram, embora de longe,
ele te seguiu. Sozinho, em meio àquela turba, ele compreendia que nada seria
possível fazer em tua defesa.
Já estaria pressentindo a tormenta de ódio que iria desabar sobre o seu Mestre, naquele palácio do pontífice. Disfarçando, fingindo, ele procurou acompanhar-te, embora de longe. Uma força misteriosa não o deixava fugir, como os outros fizeram. Sentia-se preso pelo amor, a um Mestre e Amigo preso pela inveja e pelo ódio. Realmente, ele te queria bem!
Senhor, há
muitos anos que eu te venho seguindo. E, se nem sempre te segui de perto, nunca
também eu te quis abandonar. Meu consolo é que conheces minha boa vontade,
assim como reconhecias o amor e dedicação do teu Apóstolo. Se ele te seguiu de
longe foi porque as circunstâncias não lhe permitiram ficar ao teu lado, como
sempre fizera. Tu scis quia amo te [tu sabes que te amo]
— aumenta, Senhor, a minha generosidade para que eu não me conforme em te
seguir sempre de longe. Que eu procure, com todas as forças, aproximar-me
sempre mais de Ti!
10 DE JUNHO
Não posso profanar o sofrimento com meu espírito pagão; ele é sagrado já que pertence à Redenção que eu devo realizar in unione illius divinae intentionis [em união com aquela divina intenção]. Toda a minha vida sacerdotal gira em torno de um sacrifício — o do Calvário, que eu renovo diariamente. A essa Redenção devo unir os sacrifícios da minha cooperação: pela Santa Igreja, pelos pecadores, por mim mesmo. Confixus sum Cruci [crucificado com Cristo]: esta palavra deve refletir a minha vida.
Sendo homem, preciso viver neste mundo, interessando-me pela sua salvação. Mas, como homem de Deus, preciso viver acima deste mundo, não me deixando contaminar pelo seu espírito. Quando deixei de ser um simples homem, foi para me tornar um homem de Deus, à imagem e semelhança do Homem de Deus.
Se algum colega fizer qualquer reparo a nosso respeito, diremos que é uma falta de caridade. Se houver algum comentário ou censura, da parte dos leigos, diremos que não precisamos levar em conta o que dizem as más línguas. E não procuramos saber, com sinceridade, se os reparos e censuras têm sua razão de ser. Fechamo-nos, intangíveis, na torre da nossa presunção. Se então a nossa consciência não nos despertar, fazendo-nos ver certas falhas, que o poderá fazer?
E eu não posso fugir a essa luta sem tréguas, que exige nada menos que todas as minhas forças. Em meio a tanta agitação, unum est necessarium [só uma coisa é necessária]. Tenho que me preocupar com tudo, sem esquecer o principal: a eternidade que virá depois de tudo.
12 DE JUNHO
Se eles se diziam santos e perfeitos, porque se queixavam das atenções que o médico das almas queria fazer aos pecadores? Mas eu sei que, na realidade, o teu zelo não tem limites e o teu amor não faz exceções. Os teus cuidados estão em toda parte, mas principalmente onde estiver uma ovelha desgarrada; e, no teu coração, junto a aqueles que te amam, os pródigos também podem ter o seu lugar.
É o problema das ovelhas que nunca entraram no redil; o problema das que dele fugiram, abandonando a fonte de água viva, para buscar lodo e lama nas cisternas fendidas — dereliquerunt fontes aquae vivae, et foderunt sibi cisternas, cisternas dissipatas [abandonaram a fonte da água viva para cavar cisternas, cisternas fendidas (Jr 2,13)]. Ovelhas desgarradas, que nem sequer aceitariam que as fossem buscar; outras, no entanto, gostariam de encontrar o olhar piedoso que as descubra e a mão caridosa que as recolha; enfim, que já se dispõem a voltar e talvez temem ser mal recebidas.
Nós vos suplicamos que permaneçais num estado de santa e quase perene angústia pelas ovelhas ainda afastadas, porque nunca tiveram ou porque perderam a fé. Não duvidamos que, se elas baterem à vossa porta, no verão ou no inverno, de dia ou de noite, encontra-la-ão aberta ou pronta para se abrir. E aquelas que não vêm, buscai-as... com aquele apostolado da oração e do sacrifício, que não conhece obstáculo e é o mais eficaz' (Pio XII).
23 DE JUNHO
Hoje ainda Nosso Senhor poderia queixar-se, como naquela noite, no Cenáculo: Pater juste, mundus te non cognovit [Pai justo, o mundo não te conheceu (Jo 17,25)]. Viver na obediência e no desapego, sem liberdade e sem conforto; viver como anjos em carne humana, enquanto ao meu redor todos se afogam no luxo, no prazer e na riqueza... Não importa que o mundo veja nisso uma loucura. O que me importa é compreender e seguir sempre o espírito de Nosso Senhor.
Que eu não viva, no serviço de Deus, como um infeliz. Que eu não acompanhe o meu Mestre, como um criminoso, pegado à força. Que eu não reclame, enquanto sofro, por invejar a outros que estão gozando. Seria essa, realmente, uma loucura. Mas que eu acompanhe Nosso Senhor com generosidade, sem arrependimento, e verei que a sua palavra nunca enganou a ninguém: jugum meum suave est et onus meum leve [meu jugo é suave e meu peso é leve (Mt 11,30].
Minha liberdade de querer é qualquer coisa de sagrado, que Deus respeita e não força. No entanto, se eu quiser apegar-me ao pó da terra, ninguém me poderá impedir igualmente; e a culpa será toda minha. Amando a Deus com todas as minhas forças, eu o terei, um dia, para sempre. E se eu o não quiser amar, se eu me apegar ao lodo deste mundo, só me restará depois o ódio a Deus e o ódio de Deus, na eternidade. Que eu queira bem a Nosso Senhor e tudo em minha vida entrará no seu lugar, para eu viver, já neste mundo, a vida eterna.
E podemos dizer que Ele não está nas ordens que recebemos, nos sacrifícios que machucam o nosso comodismo, na simplicidade que tanto mortifica o nosso orgulho, no cumprimento exato de nossos deveres? Mais apego e fidelidade a Nosso Senhor. Se o amarmos, como aquele discípulo quem diligebat Jesus [a quem Jesus amava], facilmente iremos ver onde Ele se encontra. Saberemos reconhecer sua presença, em geral, naquilo que nos desagrada e a sua ausência, em tudo aquilo que mais facilmente nos atrai.
Não basta que eu tenha compaixão dos que sofrem; isso é apenas humano. Preciso traduzir minha compaixão em gestos de caridade sobrenatural. O meu nome pater [padre/pai] está me lembrando os meus encargos de pai. Non relinquam vos orphanos [não vos deixarei órfãos (Jo 14, 18)] — Nosso Senhor me deixou no seu lugar para que a todos eu dê a sua caridade e compreensão.
Mas posso e devo passar a minha vida fazendo de meus dias um canto de louvor à glória de meu Pai. Luz do mundo — minha vida sacerdotal estaria apagada, se não fosse um templo grandioso, continuamente iluminado pela presença de Deus. E somente Ele irá compreender e admirar a beleza dessa catedral que eu devo construir, dia por dia, com o auxílio da sua graça: vos estis templum Dei [vós sois templos de Deus].
Mas toda vida humilde, se vivida em Deus, é semente de frutos excelsos, é sinfonia perene, que a morte não interrompe, mas sublima; e, sobre a terra, onde tudo morre, é mensagem de uma vida imortal. Na esperança da futura glória, tendes hoje a realizar obras de vida e não de morte. Espalhai por toda parte a torrente de vida que recebestes de Cristo.
Nosso Senhor, por ser humano, também conheceu o descanso; mas não conheceu a dissipação. Nisi efficiamini sicut parvuli [se não vos tornardes como criancinhas] — podemos usar das alegrias que Deus nos dá; abusar porém, nunca. E que venham dEle realmente; pois a dissipação não vem de Deus. Alegres sicut parvuli [como criancinhas] — isto é, sem exageros que prejudicam o nosso fervor.
Uma corrida contínua, sem ordem e sem método, poderá provocar um irremediável desgaste de forças. E é na oração e no recolhimento, que eu devo recuperar as energias necessárias. Sois um templo — escreveu alguém — colocai os objetos no átrio; dai aos homens a nave, mas reservai o presbitério para Deus. Numquam tibi promittas securitatem in hac vita [nunca te dês por seguro nesta vida] — é o aviso da Imitação [Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis].
E, sendo ela inseparável do egoísmo, todos nós mais ou menos egoístas, levamos conosco uma pontinha de inveja. Pode ser que a não reconheçamos; geralmente muito discreta, ela prefere aparecer com outros nomes. Às vezes ela se deixa ver numa palavrinha de censura, que dizemos bem intencionada. Outras vezes é uma gotinha de crítica, que se diz construtiva. Ora é uma observação, sob pretexto de caridade; ora um silêncio estudado e significativo.
Geralmente ela estuda, antes de se apresentar. Não será o veneno da inveja que, muitas vezes, põe o descontentamento em minha vida? O irmão do filho pródigo vivia feliz na casa paterna. Mas um dia sofreu amargamente; achou que lhe faltava a festa que fizeram ao pródigo que mortuus erat, et revixit... [estava morto e reviveu...]. Aceitemos o que somos; procuremos dar o máximo para Nosso Senhor. E deixemos os outros em paz.
Não olha para as conveniências; tinha um pedido a fazer e queria fazê-lo. Falou com o Mestre. Mas Ele não se mostrou muito pronto em atendê-la, argumentando com aparente desprezo para com a estrangeira. E ela insiste, argumentando também. O desejo de ser atendida fê-la esquecer que era uma ignorante, a querer discutir com um Mestre. Agarrou-se à palavra de Nosso Senhor e dela arrancou uma conclusão que lhe era inteiramente agradável: et catelli comedunt sub mensa, de micis puerorum... [até os filhotes de cães se fartam sob a mesa das migalhas das crianças...].
Tudo então pode acontecer. Sem apoio e sem força, a alma acaba desmoronando. E oxalá desmoronasse sozinha! Mas, infelizmente, essa queda é sempre a ruína de muitos outros. Com toda humildade precisamos fazer nossa a oração daquele homem que, não confiando em si mesmo, cum lacrymis aiebat: Credo Domine; adjuva incredulitatem meam [respondeu de imediato: creio, Senhor, mas me socorre na minha pouca fé].
Por isso, quando a tua misericórdia realizou aquele último assalto: amice, ad quid venisti? [amigo, é para isso que vieste?] — encontrou pela frente o rochedo de uma indiferença verdadeiramente diabólica. Eu sei que me chamaste para a santidade. Nem por isso posso pensar que já estou confirmado na graça como dono de todas as virtudes. Que eu não me ponha a seguir caminhos que a minha vontade escolhe, mais de acordo com as minhas fraquezas; meu caminho é somente um: ego sum via [eu sou o caminho].
Mas, será que Nosso Senhor pode contar sempre comigo? Se Ele não me chamou para grandes obras, e realizações de vulto, Ele deveria poder contar comigo, ao menos, para os meus deveres de cada dia. Será muito o que Ele me pede? Quando Nosso Senhor me acena com alguma alegria ou mesmo com algum trabalho que agrada à minha vaidade e o meu gosto, não ofereço dificuldades; estou pronto.
Mas, tratando-se de algum sacrifício, de alguma renúncia, no cumprimento de alguma obrigação que me pesa, geralmente não me mostro muito pronto. Chego mesmo a reclamar da obediência, do excesso de trabalho, para dizer, enfim, que não posso. Foi sempre assim: para o Tabor não faltam voluntários. Mas quando se trata de sacrifício e renúncia, o entusiasmo desaparece, porque a disposição não é a mesma.
Quantas vezes Ele não nos surpreende com renúncias e sacrifícios que julgamos acima de nossas forças! Ficamos apavorados; mas Ele não diminui o peso do sacrifício, nem a extensão da renúncia que nos impõe. E nós já o devíamos saber, desde que recebemos o primeiro mandamento da sua Lei. Que eu não pense estar correspondendo com perfeição às exigências do seu amor. Para isso, não me falta apenas alguma coisa; falta ainda muita coisa que se resume nisto: abneget semetipsum et tollat crucem suam... [negue-se a si mesmo e tome a sua cruz...].
Aqueles que o procuravam sabiam que Ele não desprezava nem desatendia a ninguém: si quis venit ad me, non eiciam foras [se alguém vem a mim, não lançarei fora (Jo 6, 37)]. Se minha vida não pode ser outra que a de Nosso Senhor, eu também não posso ser outro senão o alter Christus [outro Cristo], para todos aqueles que me procuram.
Que o trabalho não me faça desanimado e nem perder o entusiasmo. Que as dificuldades não me tornem ríspido nem pesado para ninguém. Que a minha simplicidade não degenere em rudeza ou descuido, porque a polidez e as boas maneiras me devem auxiliar no ministério. Que a minha inteligência e cultura não me isolem na vaidade ou no orgulho porque sou também dos pobres e ignorantes. Por todos devo eu sofrer a minha vida de todos os dias, porque Ele também sofreu a sua vida e a sua morte, por todos, e até por mim...
Certamente saberíamos dar mais valor aos minutos que passam, realizando mais para as almas, e... para nós mesmos. De que nos vale o tempo, se o não empregamos em preparar a nossa eternidade? No entanto, somemos as horas sacrificadas em conversas inúteis, em esporte e divertimentos, em cinemas e leituras, em visitas e passeios; teríamos meses inteiros. Mas... e o descanso necessário à saúde? Sem dúvida, um descanso comedido poderá ser necessário.
Mas, consulte-se a consciência. Não é qualquer descanso que nos fica bem. Que seja moderado e conveniente, pois nunca poderíamos ver o espírito de imolação e de zelo no impendam et superimpendar [gastar-se e se desgastar] na ociosidade ou no descanso exagerado. Clericus illud apud se repetere debet, se non ad inertiam et ignaviam, sed ad spirituales et ecclesiasticae militiae labores vocatum esse [o sacerdote deve se recordar que não é chamado à inércia ou à preguiça, mas a trabalhar com afinco nas hostes espiritual e eclesiástica (São Carlos Borromeu)].
JUNHO
10 DE JUNHO
Et
contristati sunt vehementer [e ficaram profundamente consternados (Mt
17,23)]
Essa imensa
tristeza dos Apóstolos foi causada pelas palavras de Nosso Senhor: Filius
hominis tradendus est in manus hominum, et occident eum [o Filho do
Homem deve ser entregue nas mãos dos homens, que vão matá-lo]. Os
discípulos não podiam imaginar fosse essa a sorte reservada ao seu Mestre.
Em nossa
vida não faltam tristezas e aborrecimentos que, muitas vezes, nos colocam numa
situação de apatia, desânimo e pessimismo. Sinal que não agimos sempre de acordo
com a Vontade de Deus, com verdadeiro espírito de fé. Se em tudo nos
dirigíssemos pela boa intenção, ela não nos deixaria desanimar. Infelizmente, a
nossa imprudência e precipitação é que dirigem muitas vezes a nossa atividade.
E daí os aborrecimentos e os percalços que nos tornam desanimados e
pessimistas.
Examinemos
o nosso modo de agir e de trabalhar. Podemos dizer que, em tudo, aparece e
prevalece o amor a Deus ou o zelo pelas almas? O que fazemos sinceramente para
Nosso Senhor não nos aborrece nem desanima. O que nos torna apáticos ou mau
humorados são as preocupações alheias ao nosso ministério, introduzidas em
nossa vida pela vaidade, ambição e mesmo por uma caridade bastante sentimental.
Que tenhamos zelo, sim, mas prudência também e boa intenção pois nemo
militans Deo implicat se negotiis saecularibus [nenhum soldado de
Deus pode dedicar-se aos negócios mundanos (2Tm 2,4)].
02 DE
JUNHO
Crucifixi
sunt cum eo duo latrones [foram crucificados com ele dois
ladrões (Mt 27,38)]
Um dos
ladrões era a revolta; o outro, a conformidade. O Mestre da paciência esteve
crucificado entre a confiança e o desespero. Foi sempre assim. Nosso Senhor
conheceu esses dois grupos: os inconformados e os que aceitam o sofrimento com
espírito sobrenatural de reparação.
Sofrer
porque não há remédio é próprio daqueles que não amam. Aceitar, porém, o sofrimento,
com espírito de reparação, é coisa daqueles que pensam como o Apóstolo: adimpleo
ea quae desunt passionum Christi [o que falta às tribulações de
Cristo (Cl 1,24)]. Preciso pensar que minha vida só tem significação
se estiver unida à morte de Nosso Senhor. Ela é a minha cooperação, para que as
almas possam crescer in mensuram aetatis plenitudinis Christi [na
medida da plena estatura de Cristo (Ef 4, 13)].
Não posso profanar o sofrimento com meu espírito pagão; ele é sagrado já que pertence à Redenção que eu devo realizar in unione illius divinae intentionis [em união com aquela divina intenção]. Toda a minha vida sacerdotal gira em torno de um sacrifício — o do Calvário, que eu renovo diariamente. A essa Redenção devo unir os sacrifícios da minha cooperação: pela Santa Igreja, pelos pecadores, por mim mesmo. Confixus sum Cruci [crucificado com Cristo]: esta palavra deve refletir a minha vida.
03 DE JUNHO
Tu autem, o
Homo Dei... [mas tu, ó homem de Deus... (1Tm 6,11)]
Com que
respeito e convicção, o Apóstolo não terá escrito essa palavra! Se ele não me
deixou uma definição verbal do Homo Dei [homem de Deus],
em sua vida ele o soube retratar com perfeição. Pelo sacerdócio eu me tornei
esse homem de Deus, porque fui destinado, ungido para Ele. Isso porém não
basta. Tenho que ser um homem todo de Deus na minha vida.
Às vezes a
tentação é esta: sou padre, é verdade, mas também sou homem. Preciso inverter a
tentação, pensando de outra forma: Sou homem, é certo, mas também sou um
sacerdote. Ungido e destinado para o serviço de Deus, tenho que ser diferente
dos outros que não o foram. Sendo humano, não posso pretender uma vida nas
alturas, despreocupado das almas. Sendo, porém, de Deus, não devo igualar-me
aos outros que não o são.
Sendo homem, preciso viver neste mundo, interessando-me pela sua salvação. Mas, como homem de Deus, preciso viver acima deste mundo, não me deixando contaminar pelo seu espírito. Quando deixei de ser um simples homem, foi para me tornar um homem de Deus, à imagem e semelhança do Homem de Deus.
04 DE
JUNHO
Duobus
dominis servire [servir a dois senhores (Lc 16,13)]
A tibieza
em minha vida e a falta de fervor são sempre uma tentativa de realizar o que
Nosso Senhor já declarou impossível. Querer a virtude e não romper com o
pecado; rezar sempre: et ne nos inducas in tentationem [e
não nos deixeis cair em tentação] e não evitar as ocasiões perigosas;
querer o fervor e não renunciar a tudo o que me leva à dissipação... esse o
absurdo que eu não posso realizar: nemo servus potest [nenhum
servo pode].
São Paulo,
cuja sinceridade não se prestava a servir a dois senhores ao mesmo tempo, já
perguntava admirado: Quae enim participatio iustitiae cum iniquitate?
quae societas lucis ad tenebras? [que união pode haver entre
justiça e iniquidade? que sociedade entre a luz e a s trevas? (IICo,
6,14)]. O exemplo de minha vida para o mundo tem que ser um sal limpo e puro,
pois Nosso Senhor já me disse que sal infatuatum ad nihilum
valet ultra [o sal insosso para nada mais serve] nenhum
resultado produz.
Aos olhos
de todos, a minha virtude precisa ser uma luz sem sombra, que ilumine com
segurança, inspirando certeza e coragem — luceat lux vestra! [brilhe
a vossa luz!]. Preciso ter mais cuidado para que certos hábitos não
estraguem o sal do meu bom exemplo e nem diminuam o brilho da minha vida, aos
olhos do mundo e aos olhos de Deus.
05 DE
JUNHO
Vae vobis! [ai
de vós! (Lc 6,24)]
Oito vezes
seguidas, Nosso Senhor pronunciou, numa única ocasião, esta palavra. Era o que
tinha a dizer aos fariseus e mestres da Lei. Era o seu desprezo divino,
condenando a presunção dos homens. Que gestos e que olhares não terão
acompanhado essa linguagem tão forte, que arrasava, perante o povo, a
hipocrisia daqueles que pareciam intangíveis!
Hoje, somos
nós os Mestres da Lei divina. A verdade está muito mais ao nosso alcance que
para o comum dos fiéis. In medio Ecclesiae [no meio da
Igreja], à vista de todos, fomos colocados super candelabrum [(como luz)
sobre o candelabro]. E é por isso que uma ruga em nossa vida é mais
lamentável que uma chaga na vida de um leigo. Acostumados a ensinar a verdade e
a condenar o erro, facilmente podemos cair na presunção de nos julgarmos um
modelo em tudo.
Se algum colega fizer qualquer reparo a nosso respeito, diremos que é uma falta de caridade. Se houver algum comentário ou censura, da parte dos leigos, diremos que não precisamos levar em conta o que dizem as más línguas. E não procuramos saber, com sinceridade, se os reparos e censuras têm sua razão de ser. Fechamo-nos, intangíveis, na torre da nossa presunção. Se então a nossa consciência não nos despertar, fazendo-nos ver certas falhas, que o poderá fazer?
06 DE JUNHO
Vinctus
Christi Jesu [prisioneiro de Jesus Cristo (Ef 3,1)]
Há, nesta
palavra do Apóstolo, uma secreta alegria, por ter provado até os horrores do
cárcere por amor ao seu Mestre. E há também um santo orgulho em se dizer
'Prisioneiro de Cristo'. O pensamento de que estava preso por causa de Nosso
Senhor era-lhe um consolo que somente o podia animar. Por isso, nenhum
abatimento e nenhuma inveja daqueles que podiam trabalhar em liberdade. Ele
sabia que o seu cárcere era um exemplo e uma pregação. Sua inatividade, por
amor ao Mestre, só poderia aumentar o mérito do seu apostolado.
Quando as
forças me abandonarem, quando a saúde não corresponder, quando me faltar a
necessária capacidade, não poderei deixar que o desânimo e o pessimismo
estraguem meu apostolado. Não é somente com as forças físicas que eu posso
trabalhar para Nosso Senhor.
E quando a
obediência, ou mesmo a incompreensão não me permitir realizar tudo o que eu
desejaria realizar, vinctus Christi [prisioneiro de Cristo]
— preciso aceitar essa prisão em que as circunstâncias me fecham, acrescentando
mais um sacrifício ao meu apostolado. O bom exemplo será sempre a melhor
pregação.
07 DE
JUNHO
Aprehende vitam
aeternam [conquista a vida eterna (1Tm 6,12)]
Todos os
dias, de manhã, tenho diante dos olhos o pondus diei [peso
do dia] que me espera. E, muitas vezes, com que insistência não reclama os
meus cuidados e minha atenção! Tanta coisa para pensar, para decidir e fazer!
Todos os meses e todos os anos me apresentam novos problemas e novos
trabalhos.
E eu não posso fugir a essa luta sem tréguas, que exige nada menos que todas as minhas forças. Em meio a tanta agitação, unum est necessarium [só uma coisa é necessária]. Tenho que me preocupar com tudo, sem esquecer o principal: a eternidade que virá depois de tudo.
Sim, ela
virá depois de tudo; mas se não me preocupar com ela, antes de tudo, estarei
esquecendo a única coisa necessária. Se eu não me preocupar agora com a minha
eternidade, depois será tarde. Se eu a não ganhar agora, nunca mais a poderei
ganhar. Aprehende vitam aeternam, in qua vocatus es [conquista
a vida eterna, para a qual foste chamado] — tudo em minha vida só pode ter
essa finalidade. Quid prodest homini?... [que servirá ao
homem?... (Mt 16, 26]. À luz dessa pergunta de Nosso Senhor, é que eu
devo colocar todos os meus cuidados e preocupações hoje, amanhã e sempre.
08 DE JUNHO
Saeculi
tristitia mortem operatur [a tristeza do mundo produz a
morte (2Cor 7,10)]
Essa
tristeza nunca poderá estar em nossa vida. Ela é do mundo porque não se eleva
pela conformidade e pelo amor a Deus. É o desânimo que nos abate; é o
pessimismo que nos leva ao isolamento, à falta de zelo e de caridade.
Vazia de
Deus, essa tristeza não tem fé. Por isso acaba fechando a nossa alma para tudo
e para todos. Mortem operatur [produz a morte] — é o
resultado da falta de confiança. Quae enim secundum Deum tristitia est,
poenitentiam operatur in salutem [com efeito, a tristeza
segundo Deus produz um arrependimento salutar] — a tristeza cheia de Deus
eleva a alma para o arrependimento, para as boas resoluções, enfim, para a
graça. Não é o pessimismo nem o isolamento mas a confiança que nos leva a
procurar o perdão e a força que Nosso Senhor nos pode dar.
Foi essa a
tristeza do Apóstolo, após as negações; tristeza cheia de esperança, na certeza
de que o Mestre o haveria de perdoar. A própria Igreja me aconselha essa
tristeza de penitência e contrição: Humiliate capita vestra Deo [inclinai
vossas cabeças diante de Deus], mas insiste na confiança, ao me dizer,
todos os dias: Sursum corda! [Corações ao alto!]. Uma
alegria santa e um otimismo alegre só poderão fazer bem à minha alma e às
almas.
09 DE JUNHO
Qui
quaerunt te, Deus [os que vos procuram, ó Deus (S 68,7)]
Aqueles que
me vêem no altar, na igreja, no meu trabalho; aqueles que me ouvem, no púlpito
ou no confessionário; todos aqueles que passam por mim, nas ruas e praças...
poderei dizer o que vai na alma de cada um? Meu Deus, eu não sei qual seja o
momento de tua graça para ninguém.
Não sei
quais as circunstâncias que a tua misericórdia escolheu para o último assalto a
uma alma que desejas conquistar. Eu não conheço bem todos os caminhos que o teu
amor percorre, antes de chegar às profundezas de uma consciência. O que eu sei
é que a tua misericórdia não descansa. A qualquer momento o teu amor poderá
usar de mim, para os teus planos de conquista.
Colocado
sobre o candelabro, quanto bem não poderei fazer, quando menos pense estar
fazendo o bem! Mas, quanto mal não poderei fazer, se me esquecer que estou numa
contínua evidência! Quanto bem poderás deixar de fazer porque, no momento
exato, não poderias contar comigo! És o Bom Pastor que não descansa, à procura
das tuas ovelhas. Que eu esteja, continuamente, em condições de ser usado pela
tua graça na conquista das almas que o teu amor persegue!
10 DE
JUNHO
Qui parce
seminat [aquele que semeia pouco (2Cor 9,6)]
Às vezes, o
desânimo, o pessimismo ou mesmo a realidade me dizem que o resultado do meu
trabalho não está sendo o que eu desejava. Queixo-me então da má vontade de
outros, da incompreensão e indiferença com que respondem ao meu esforço. Minha
preocupação é o resultado.
Tenho que
me entregar ao trabalho, com todas as forças, com toda dedicação e boa vontade.
Se eu não sei o quanto Deus está esperando de mim, é certo, no entanto que, se
eu não lhe der todo o meu esforço, não estarei correspondendo à sua vontade. O
resultado não me deve interessar tanto. Tenho que me interessar mais pela
generosidade com que devo trabalhar.
Não posso
me impressionar com o que os outros pensem do resultado que eu possa conseguir;
não é e nem deve ser por vaidade que eu ponho mãos ao arado. Se as censuras não
me devem desanimar, chamando-me apenas a atenção, os elogios também não me
façam envaidecer. Seja qual for o resultado, se eu não me poupar, dando a Nosso
Senhor toda a minha boa vontade, o resultado sempre será grande aos olhos de
Deus. E isso é tudo o que me deve interessar.
11 DE
JUNHO
Qui volunt
divites fieri [os que ambicionam tornar-se ricos (1Tm 6,9)]
Esses não
se conformam com a pobreza do Mestre. Procuram rodear-se de todas as
facilidades, de todo conforto. Em casa, tudo concorre para o bem estar. Fora,
as visitas, as amizades, as rodas que não desprezam o luxo, ajudam as horas a
passar menos monótonas e mais interessantes.
Na igreja,
porém, a diferença é muito grande. Imagens, vasos, tapetes, castiçais,
lembrando muita antiguidade e pouco interesse daquele que reza: diligo
decorem domus tuae [amo a habitação da vossa casa (Sl 25,
8)]. Abandonado no sacrário, Nosso Senhor não vê passar uma alma pelo deserto
da Igreja e o seu reino se prolonga bem mais que por quarenta dias e noites.
A isso nos
leva a exagerada preocupação com o conforto e bem-estar. Pensando em nós
mesmos, esquecemos Nosso Senhor e as almas. Desideria multa nociva...
mergunt homines in interitum et in perditionem [muitos desejos
nefastos... que precipitam os homens na ruína e na perdição]. A raiz de
todas as misérias é o desejo da riqueza. E para combatermos todos os males em
sua raiz, não nos basta falar sobre a confiança na Providência. O mundo nos
dirá que isso é muito fácil, quando se tem de tudo. Somente o nosso desapego e
a nossa simplicidade poderão pregar e convencer.
12 DE JUNHO
Blasphemus
fui et persecutor [era blasfemo e perseguidor (1Tm 1,13)]
Tanto antes
como depois da sua conversão, o Apóstolo foi sempre um apaixonado pela Verdade.
Por isso não nos estranha a profunda humildade com que fala de si mesmo: Peccatores,
quorum primus sum ego [dos pecadores, sou o primeiro].
Mas a humildade nunca foi o desespero nem o pessimismo. A humildade que abate e
desanima, outra coisa não é senão um orgulho mal disfarçado.
Com toda a
sua humildade, Nossa Senhora pôde ver a sua grandeza, cantada pelos séculos
afora: Beatam me dicent omnes generationes [todas as
gerações me chamarão bem aventurada (Lc 1,48)]. Se a verdade me faz reconhecer
o meu nada, a minha miséria, nem por isso me manda ignorar a infinita
misericórdia de Deus. Eu seria um pobre condenado ao desespero se, ao
considerar as minhas faltas, não pudesse contar com a bondade infinita de meu
Pai.
São Paulo
reconhecia o seu triste passado: blasphemus, et persecutor, et
contumeliosus [blasfemo, e perseguidor e injuriador]. Nem por
isso ele desesperou, deixando-se ficar num pessimismo estéril; pelo contrário,
reconheceu o que a verdade também lhe mostrava: a misericórdia divina com que
afirma tranquilamente: sed misericordiam Dei consecutus sum [mas
alcancei a misericórdia de Deus].
13 DE
JUNHO
Dum carni
parcimus... [enquanto pela carne empenhamos...]
Esta
palavra de Santo Agostinho chega aos nossos ouvidos qual longínqua
reminiscência dos anacoretas. Vivemos, em geral, tão preocupados com a nossa
saúde, com o nosso conforto e bem estar, que a penitência deixou de ser ponto
obrigatório no nosso programa de vida.
Não entrar
no terreno do ilícito — esse o resumo de certa ascese que se vai generalizando.
E não raro se ouve a pergunta: Que mal haverá se alguém se concede um prazer
lícito? Ao que poder-se-ia responder também com uma pergunta: Que mal haverá se
alguém se nega um prazer lícito, in spiritu poenitentiae [com
espírito de penitência]? A experiência mostra que, concedendo sempre à
nossa vontade o que é permitido, nós a acostumamos mal; ad proelium
hostem nutrimus [alimentamos um inimigo em batalha (S.
Greg., Moral, XXX, cap. 14)].
O Apóstolo
não dispensava a mortificação: castigo corpus meum [castigo
o meu corpo (I Co 9,27)]. Por que? Ne reprobus
efficiar... [para que não venha a ser condenado (por
não cumprir aquilo que se pregava)]. E nós poderíamos dispensar essa virtude?
Por menos não se amansa uma natureza animal como a nossa. Surge et
ambula [Levanta-te e anda] — primeiro ficar de pé, dominar-se;
depois, será possível caminhar. Por isso a Imitação já ensinava: Tantum
proficies, quantum tibi ipsi vim intuleris [tanto mais
aproveita (o homem) quanto mais vence a si mesmo (Imit.
I 25,3)].
14 DE
JUNHO
Non te
negabo [nunca vos negarei (Mt 26,35)]
Senhor, foi
assim que te falou o teu Apóstolo, julgando-se dono de uma coragem que não
possuía. E, como ele, todos os demais discípulos: Similiter et omnes
dixerunt [e todos (os ostros discípulos) diziam o
mesmo]. Certamente eles te falaram com sinceridade e não te quiseram
enganar.
Por medo
não cumpriram a palavra e, à hora da prova, eles te abandonaram. Mas logo
depois estavam novamente à tua procura, no sepulcro. Tu sabes, Senhor, que eu
sou também assim. Eu mesmo o sei; e ainda bem que o reconheço. Não quero e não
posso alimentar a presunção de que sou inabalável nos meus propósitos. Quantas
vezes eu já não te neguei, com a mesma frieza do Apóstolo, para depois voltar
atrás!
Ensina-me a
desconfiar de mim mesmo porque o meu orgulho não entende disso e vive me
inspirando uma exagerada confiança em minhas resoluções. Embora seja grande a
minha boa vontade — a dos Apóstolos também era — minha coragem não é tão grande
como costumo supor. Que eu não me conforme com voltar sempre à tua presença
como um filho pródigo. Muitas vezes já voltei e o teu amor me recebeu com
festas; mas eu não sei quantas vezes ainda poderei voltar...
15 DE
JUNHO
Venite post
me [vinde após mim (Mc 1,17)]
Nosso
Senhor teve os seus planos quando nos chamou: Faciam vos piscatores
hominum [farei de vós pescadores de homens]. Mas, para isso, há
uma condição: venite post me [vinde após mim]. Temos
que segui-lo, não somente com um olhar de boa vontade ou com simples desejos.
Segui-lo em toda parte, como os Apóstolos, vivendo a sua vida, partilhando dos
seus trabalhos e sacrifícios.
E para
segui-lo, temos que deixar tudo: relictis retibus [deixaram
as redes]. Eles trocaram o sossego das pescarias pela vida agitada e
barulhenta em meio ao povo. Trocaram a vastidão das águas pelos caminhos
cobertos de pó. Trocaram o que tinham pelo que poderiam ou não receber de
esmola. Para segui-lo, não nos podemos apegar a nada. Hospes ego sum in
terra [hóspede sou na terra] — apenas hóspedes, é o que somos
neste mundo.
Et secuti
sunt eum [e eles o seguiram] — aqui está a biografia dos
Apóstolos e o resumo da vida de todos os santos. É a única explicação para as
virtudes que praticaram e para os sacrifícios que venceram. Santificaram-se
porque o seguiram. Esta igualmente é a explicação para a vida que devemos
viver: Ele nos chamou e temos que segui-lo.
16 DE
JUNHO
Quid igitur
faciam de Jesu? [que farei então de Jesus? (Mt 27,22)]
Para o
sacerdote, Nosso Senhor está na oração e no recolhimento, no Breviário e na
Missa de cada dia. Ele está nos anos de formação, intelectual e religiosa, está
em todo o seu apostolado mas, principalmente, no poder que recebeu para ensinar
e perdoar. Nosso Senhor está nas mãos do sacerdote.
Preocupado
com a sua posição, Pilatos não sabia o que fazer com Nosso Senhor. Estava em
suas mãos a sorte daquele Homem e ele, no entanto, perguntava: quid
faciam de Jesu? [que farei de Jesus?]. A esse ponto poderá
chegar também o sacerdote que se preocupa demasiado com certas coisas alheias
ao seu ministério. Nosso Senhor está em suas mãos e ele não O sabe repartir com
as almas.
As
ciências, as artes, a política, os negócios absorvem toda a sua atividade.
Aquilo que podia ser apenas um meio de apostolado, acaba sendo a sua única
preocupação. Temos assim um sacerdote que, sendo um gênio em ciências e artes,
não sabe dizer duas palavras no púlpito ou atender algumas confissões. O fim
principal da nossa vocação não consiste em alimentarmos nosso gosto e nossas
inclinações particulares, mas em alimentarmos as almas, dando-lhes Nosso
Senhor.
17 DE JUNHO
Oportet
semper orare [é necessário orar sempre (Lc 18,1)]
Atirados ao
trabalho de um apostolado que não nos dá descanso, precisamos de um profundo
espírito de fé, que transforme a nossa atividade em contínua oração. Mesmo
assim, porém, não podemos dispensar, todos os dias, um a sós com Deus, que
alimente o nosso fervor habitual.
A
meditação, a Santa Missa com a devida ação de graças, o Breviário e uma breve
leitura espiritual — é o mínimo para que não sejamos reduzidos a simples
máquinas de trabalho. Um trabalho morto, sem alma, certamente não é digno de
Deus. E nem será digno daquele que deve trabalhar e viver in unione
illius divinae intentionis [em união com essa divina intenção].
Somente
esses poucos momentos dedicados exclusivamente à oração, durante o dia, poderão
elevar a nossa atividade, para que realizemos o nosso trabalho per
Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso [por (Ele) Cristo, com Cristo e em
Cristo]. Necessária se torna, geralmente, a ditadura de um horário, que
ponha tudo em seu tempo e lugar, dentro de uma vida bem ordenada. O autor da
Imitação já observava em seu tempo: si te subtraxeris a superfluis
locutionibus, necnon a novitatibus et rumoribus audiendis, tempus invenies pro
bonis meditationibus instituendis [se te abstiveres de conversações
supérfluas e também de ouvir novidades e boatos, acharás tempo suficiente para
boas e santas meditações (Imit. I, 20,1)].
18 DE JUNHO
Orate,
fratres! [orai, irmãos!]
'Desejaríamos
que nascesse em todos vós, e crescesse progressivamente, uma como santa
inquietação por encontrar os meios aptos a fazer brilhar de novo a luz onde se
encontram as trevas e a levar outra vez a vida a aqueles que estão mortos.
Começai
procurando que respirem novamente, as almas atingidas pela asfixia, porque não
rezam nunca, de maneira alguma. Esforçai-vos para que de todos os corações suba
aos lábios, e dos lábios ao céu, uma invocação, embora breve, mas repetida
todos os dias; eis um objetivo para o qual é justo que se mobilizem todas as
forças do bem. Uma paróquia em que todos, a cada dia, se lembram de invocar o
Senhor, não tardará a mostrar que nela germina a vida'.
Assim
escreveu Pio XII; e o seu pensamento é claro; se hoje vemos que as almas morrem
asfixiadas pelo mundo, não podendo respirar a Deus, a tarefa mais importante e
urgente para nós, é fazer que as almas respirem ... pela oração! O mais, por
importante que nos pareça, virá depois. Doce nos orare [ensina-nos
a orar] — é o que as almas pedem ao Homem de Deus. E se ele não o sabe
fazer, pela palavra e exemplo, é porque ele também vive asfixiado e não respira
a Deus pela oração.
19 DE JUNHO
Non est
opus valentibus medico [não são os sãos que precisam de
médico (Mt 9,12)]
Apesar da
tua mansidão, Senhor, apesar da tua infinita santidade, não posso deixar de
ver, nesta palavra tua, uma pontinha de fina ironia. Era o teu desprezo para a
hipocrisia dos teus inimigos; e mais, eles não teriam merecido.
Se eles se diziam santos e perfeitos, porque se queixavam das atenções que o médico das almas queria fazer aos pecadores? Mas eu sei que, na realidade, o teu zelo não tem limites e o teu amor não faz exceções. Os teus cuidados estão em toda parte, mas principalmente onde estiver uma ovelha desgarrada; e, no teu coração, junto a aqueles que te amam, os pródigos também podem ter o seu lugar.
Senhor,
preciso imitar-te neste ponto, porque minha vaidade não se sente muito bem
entre os ignorantes e o meu comodismo se acovarda ante as aperturas do pobre.
Não tenho o teu amor nem a tua misericórdia e, por isso, gosto de fazer
diferença entre aqueles que me procuram. Preciso compreender que sou de todos e
a todos devo procurar com o teu zelo, a todos devo amar com o teu amor de Pai.
É por isso que a tua Igreja me lembra que, hoje como ontem, omnes
homines vis salvos fieri [(Deus quer) todos os homens sejam
salvos (I Tm 2,4)].
20 DE
JUNHO
Pie vivamus
in hoc saeculo [vivamos sobriamente no tempo presente (Tt
2,12)]
Viver
piedosamente num mundo entregue à dissipação, desprezar o prazer que este mundo
procura com tanta avidez e seguir Nosso Senhor sempre com a cruz às costas...
diz o mundo que isso não passa de loucura. E compreendemos o porquê.
O mundo põe
a sua esperança na mentira; nós, pelo contrário, confiamos na verdade. Tollat
crucem suam [tome a sua cruz] — essa é uma ordem que não
discutimos; confiamos na Verdade Eterna que assim nos falou. Sabemos bem que
esse caminho para o Calvário terá um fim: cum Sanctis tuis in gloria
numerari [com todos os Vossos Santos na glória].
Em meio às
perseguições, à hora do martírio, os primeiros cristãos animavam-se mutuamente
com a saudação: Dominus veniet! — [o Senhor vem!]
porque eles O Esperavam, como fim e recompensa de todas as lutas. Era esse o
consolo que os animava a suportar todos os tormentos. Para nós, Ele também há
de vir. Se Ele nos mandou tollite iugum meum [tomai o meu
jugo] — não foi apenas para nos ver com a cruz às costas; foi para nos
entregar, um dia, a recompensa que nos preparou a constitutione mundi [desde
a criação do mundo]. Compreendemos então o Apóstolo, aconselhando-nos a
viver spe gaudentes [alegres na esperança] — gozando,
desde agora, pela esperança de uma realidade que virá depois.
21 DE JUNHO
Non
spiritum huius mundi accepimus [não recebemos o espírito
desse mundo (1Cor 2,12)]
No Batismo,
na Confirmação e na Ordem, o que nos disse a Santa Igreja foi isto: accipe
Spiritum Sanctum [recebe o Espírito Santo]. Não foi, portanto,
o espírito do mundo que recebemos, sed spiritum qui ex Deo est [mas
sim o espírito que vem de Deus]. Este espírito de santidade é que nos
distingue dos demais. É a nota característica de nossa vida sacerdotal, que
deve ser uma luz.
Com
facilidade as almas sabem distinguir o padre mundanizado e o padre que vive
cheio de Deus, porque fructus autem spiritus est caritas, gaudium, pax,
patientia, fides, modestia, continentia, castitas [ao contrário, o
fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, fidelidade, temperança,
continência, castidade (Gl 5,19)]. As almas sabem que uma vida
alimentada pelo espírito do mundo não pode produzir esses frutos, que só podem
ser produzidos pelo espírito de Deus. A falta de zelo e mansidão, o apego, a
vaidade, o comodismo são, entre outros, os frutos de uma vida alimentada pelo
mundo.
22 DE
JUNHO
Et alias
oves habeo [tenho ainda outras ovelhas (Jo 10,16)]
'O Bom
Pastor deve conhecer todas as ovelhas, ocupar-se de todas, prodigalizar-se a
todas. O seu primeiro pensamento correrá para as ovelhas que não estão no
redil: et illas oportet me adducere [preciso conduzi-las
também].
É o problema das ovelhas que nunca entraram no redil; o problema das que dele fugiram, abandonando a fonte de água viva, para buscar lodo e lama nas cisternas fendidas — dereliquerunt fontes aquae vivae, et foderunt sibi cisternas, cisternas dissipatas [abandonaram a fonte da água viva para cavar cisternas, cisternas fendidas (Jr 2,13)]. Ovelhas desgarradas, que nem sequer aceitariam que as fossem buscar; outras, no entanto, gostariam de encontrar o olhar piedoso que as descubra e a mão caridosa que as recolha; enfim, que já se dispõem a voltar e talvez temem ser mal recebidas.
Nós vos suplicamos que permaneçais num estado de santa e quase perene angústia pelas ovelhas ainda afastadas, porque nunca tiveram ou porque perderam a fé. Não duvidamos que, se elas baterem à vossa porta, no verão ou no inverno, de dia ou de noite, encontra-la-ão aberta ou pronta para se abrir. E aquelas que não vêm, buscai-as... com aquele apostolado da oração e do sacrifício, que não conhece obstáculo e é o mais eficaz' (Pio XII).
Se não se
apresentar às almas com o espírito de Deus, o sacerdote não será o homem
diferente que elas procuram; será, sim, um tipo comum, incapaz, portanto, de
realizar a sua missão de atrair e elevar as almas a Deus. Por isso insistia o
Apóstolo: dico autem: Spiritu ambulate [digo, pois,
conduzi-vos pelo Espírito (Gl 5,16)] — porque devemos viver de acordo
com o espírito de Deus que recebemos.
23 DE JUNHO
Pater,
peccavi coram te! [Pai, pequei contra ti! (Lc 15,21)]
Apesar de
toda a sua miséria, aquele filho pródigo ainda pôde encontrar o caminho para a
casa paterna. Caiu em si, reconheceu o erro cometido, arrependeu-se,
compreendeu que precisava sair daquela situação. Foi feliz, porque sua
consciência ainda reagiu e o levou de volta para os braços de seu pai.
Nada mais
triste para Nosso Senhor que constatar a morte da consciência no seu sacerdote.
Se ela ainda reagisse... haveria alguma esperança. Mas quando ela não reage
mais, quando não responde aos chamados da graça... é o fim. Si is qui
odit me contra me insurrexisset, abscondissem me ab eo; sed eras tu, sodalis
meus, amicus et familiaris, quocum dulce habui consortium [daqueles
que me odeiam e me perseguem, poderia eu deles me esconder; porém, (isso
não é possível) contra quem era meu amigo e companheiro e por quem
nutria tão doce intimidade! (Sl 54)].
Um dia,
Nosso Senhor tentou, num último esforço, ressuscitar uma consciência
morta: Amice, ad quid venisti? [amigo, é para isto que
vieste? (Mt 26, 50)]. E aquela consciência não reagiu; o traidor
estava definitivamente perdido. Quid enim miserius misero non
miserantem se ipsum, non flentem mortem suam, quae fiebat non amando Te, Deus,
lumen cordis mei?... [o que, afinal, é mais miserável do que o
miserável que não lamenta a sua miséria, que não chora a sua própria morte por
não Vos ter amado, ó Deus, luz do meu coração? (Santo Agostinho)].
24 DE JUNHO
Si vis
religiosam ducere vitam... [se queres seguir a vida
religiosa...]
A Imitação
me diz que, se eu quiser viver uma vida religiosa, isto é, em união com Deus,
tenho que viver, mais ou menos, como um louco aos olhos do mundo: oportet
te stultum fieri [convém fazer-te louco]. Já no tempo de São
Paulo, seguir a Nosso Senhor era um escândalo e uma loucura; em nossos dias, o
mundo continua pensando da mesma forma, porque o seu espírito não mudou.
Hoje ainda Nosso Senhor poderia queixar-se, como naquela noite, no Cenáculo: Pater juste, mundus te non cognovit [Pai justo, o mundo não te conheceu (Jo 17,25)]. Viver na obediência e no desapego, sem liberdade e sem conforto; viver como anjos em carne humana, enquanto ao meu redor todos se afogam no luxo, no prazer e na riqueza... Não importa que o mundo veja nisso uma loucura. O que me importa é compreender e seguir sempre o espírito de Nosso Senhor.
Que eu não viva, no serviço de Deus, como um infeliz. Que eu não acompanhe o meu Mestre, como um criminoso, pegado à força. Que eu não reclame, enquanto sofro, por invejar a outros que estão gozando. Seria essa, realmente, uma loucura. Mas que eu acompanhe Nosso Senhor com generosidade, sem arrependimento, e verei que a sua palavra nunca enganou a ninguém: jugum meum suave est et onus meum leve [meu jugo é suave e meu peso é leve (Mt 11,30].
25 DE
JUNHO
Noli vinci
a malo [não te deixes vencer pelo mal (Rm 12,21)]
'Nós
vivemos da Fé. Mas a Fé importa um completo abandono a Deus, independente de
todo cálculo humano, sobre as possibilidades de um resultado favorável. No
momento em que começássemos a orientar o nosso trabalho segundo esse cálculo,
afastar-nos-íamos do sentido da Fé (Pio XII).
Vivendo e
tratando com o mundo, facilmente nos deixamos contagiar pelo seu espírito. E os
aborrecimentos e as dificuldades poderiam levar-nos ao desânimo. Imaginamos que
tudo depende exclusivamente de nossas forças — o que não é certo. Precisamos
contar com Deus. O mal estará sempre à nossa frente e as dificuldades ao nosso
redor.
Vince in
bono malum [vence o mal com o bem (Rm 12, 21)] — temos que
aproveitar as dificuldades para a nossa mortificação, para a nossa humildade e
confiança em Nosso Senhor. Já dizia São Francisco de Sales: aquele que se
entrega ao desânimo e à falta de confiança é semelhante à pessoa que, de um
roseiral, colhe os espinhos e deixa as rosas. 'Não devemos esquecer' — diz Pio
XII, 'que o caminho da Igreja é o caminho da Cruz e seguir a Jesus Cristo,
levando a Cruz, é o dever primário do sacerdote'.
26 DE JUNHO
Si vis ad
vitam ingredi [se queres entrar na vida (Mt 19, 17)]
Para eu
alcançar a vida eterna, Deus não está exigindo o impossível de mim. Apenas
isto: que eu o ame. Diliges Dominum ex toto corde tuo [amarás
o Senhor de todo o teu coração (Dt 6,5)]. A medida do meu amor para
com Ele é que eu o ame sem medida — ex todo corde [de todo
o coração].
Se eu o
amar, saberei servi-lo e nele amarei os meus semelhantes: et proximum
tuum sicut te ipsum [e o teu próximo como a ti mesmo (Lv
19,18)]. Por experiência, eu sei que tenho um coração feito a propósito para
amar. Apego-me tanto a tanta coisa e... a cada coisa! Basta que eu queira e
poderei apegar-me à infinita riqueza de Deus, em vez de amar o pó da terra.
Sim, basta que eu queira, porque ninguém, nem Deus mesmo, poderá me impedir de
o amar.
Minha liberdade de querer é qualquer coisa de sagrado, que Deus respeita e não força. No entanto, se eu quiser apegar-me ao pó da terra, ninguém me poderá impedir igualmente; e a culpa será toda minha. Amando a Deus com todas as minhas forças, eu o terei, um dia, para sempre. E se eu o não quiser amar, se eu me apegar ao lodo deste mundo, só me restará depois o ódio a Deus e o ódio de Deus, na eternidade. Que eu queira bem a Nosso Senhor e tudo em minha vida entrará no seu lugar, para eu viver, já neste mundo, a vida eterna.
27 DE JUNHO
Dominus
est! [é o Senhor! (Jo 21,7)]
No dia em
que Nosso Senhor apareceu aos Apóstolos, à margem do lago em que pescavam,
ninguém o reconheceu. Apenas São João o identificou, avisando logo aos demais:
É Ele! Dominus est! [é o Senhor!].
Muitas
vezes em nossa vida, estaremos em situação semelhante, sem saber distinguir
onde Nosso Senhor está e onde Ele não está. Que a nossa fidelidade a Nosso
Senhor nos faça reconhecer sempre o que é de Deus e o que é do mundo. Podemos
dizer, tuta conscientia [de sã consciência], que
Nosso Senhor esteja em certas reuniões e divertimentos, em determinadas
leituras, em certas idéias e hábitos que vamos adquirindo? Estará Ele em certas
facilidades que se vão introduzindo em nossa vida, minando sempre o nosso
fervor?
E podemos dizer que Ele não está nas ordens que recebemos, nos sacrifícios que machucam o nosso comodismo, na simplicidade que tanto mortifica o nosso orgulho, no cumprimento exato de nossos deveres? Mais apego e fidelidade a Nosso Senhor. Se o amarmos, como aquele discípulo quem diligebat Jesus [a quem Jesus amava], facilmente iremos ver onde Ele se encontra. Saberemos reconhecer sua presença, em geral, naquilo que nos desagrada e a sua ausência, em tudo aquilo que mais facilmente nos atrai.
28 DE JUNHO
Hominem non
habeo [não tenho quem (me ajude) (Jo 5,7)]
Aquele
paralítico não esperava que um anjo do céu o viesse ajudar. Queria apenas um
homem que lhe desse a mão. Como padre, devo ser para todos esse homem
providencial, porque devo ser um Homem de Deus. Se eu não der a mão da minha
caridade a aqueles que a procuram, estarei traindo o meu nome e a minha missão.
E quanto pobre, de corpo e da alma, ao longo do meu caminho, esperando por mim!
Sem ser
anjo, vivendo nas alturas, tenho que viver neste mundo como Homem de Deus,
humano e compreensivo para com todos. O meu lugar deverá ser sempre o lugar
daqueles que me procuram, porque devo sentir e sofrer com eles. O Bom
Samaritano, que eu devo ser, não poderá passar indiferente junto a aqueles que
o sofrimento atirou à beira da estrada.
Não basta que eu tenha compaixão dos que sofrem; isso é apenas humano. Preciso traduzir minha compaixão em gestos de caridade sobrenatural. O meu nome pater [padre/pai] está me lembrando os meus encargos de pai. Non relinquam vos orphanos [não vos deixarei órfãos (Jo 14, 18)] — Nosso Senhor me deixou no seu lugar para que a todos eu dê a sua caridade e compreensão.
29 DE
JUNHO
Semper in
Templo [sempre no Templo (Lc 24,53)]
Após a
Ascensão do Senhor, assim como nos assevera São Lucas, voltaram os Apóstolos a
Jerusalém, e passaram a viver praticamente no Templo, laudantes et
benedicentes Deum [louvando e bendizendo a Deus]. Eu não posso
passar os meus dias na igreja; meu trabalho e minhas obrigações não o
permitem.
Mas posso e devo passar a minha vida fazendo de meus dias um canto de louvor à glória de meu Pai. Luz do mundo — minha vida sacerdotal estaria apagada, se não fosse um templo grandioso, continuamente iluminado pela presença de Deus. E somente Ele irá compreender e admirar a beleza dessa catedral que eu devo construir, dia por dia, com o auxílio da sua graça: vos estis templum Dei [vós sois templos de Deus].
É nesse
templo que eu devo trabalhar e sofrer; nesse templo, é que irei transformar
tudo em glória e louvor ao Pai. No templo de sua vida, Nosso Senhor viveu
ocupado somente com os interesses de Deus. E eu poderei viver de outra maneira?
Cada momento de minha existência tem que ser uma nota desse cântico de louvor
que Ele espera de mim. Sua glória infinita enche os céus e a terra; que ela
penetre a minha vida, porque eu também fui chamado a tomar parte do eterno
festim dos eleitos: in conspectu Angelorum psallam tibi [à
vista dos anjos, eu vos cantarei salmos].
30 DE JUNHO
Mors illi
ultra non dominabitur [nem a morte terá domínio sobre Ele (Rm 6,9)]
'Vivida
contra Deus ou ignorando a Deus, qualquer vida, mesmo insigne por obras e
poder, é relâmpago estéril, que nenhuma memória póstuma tem a força de
reacender; é destinada, na outra vida, à ressurreição para a morte.
Mas toda vida humilde, se vivida em Deus, é semente de frutos excelsos, é sinfonia perene, que a morte não interrompe, mas sublima; e, sobre a terra, onde tudo morre, é mensagem de uma vida imortal. Na esperança da futura glória, tendes hoje a realizar obras de vida e não de morte. Espalhai por toda parte a torrente de vida que recebestes de Cristo.
Sabemos que
quereis ser fermento de vida, mas receamos que vos possa prostrar, no
abatimento, a prolongação das mesmas lutas e a repetição dos mesmos perigos. O
perigo de hoje é o cansaço dos bons. Sacudi todo abatimento, retomai a
costumada virtude. Que as vitórias já conquistadas pela vossa cooperação com a
Fé, com a Igreja e com a humanidade, tornem-se estáveis e duradouras. Não
descanseis sobre os louros do passado; não vos detenhais a contemplar o sulco
outrora traçado mas, consolidando o que já foi adquirido, almejai sempre novos
incrementos. Perseverai vigilantes na fé e unidos na concórdia!' (Pio XII).
JULHO
10 DE JULHO
Redemisti
nos, Domine! [remiste-nos, Senhor!]
Sim, Ele
nos remiu. Mas — in sanguine tuo [pelo vosso Sangue] —
esse foi o preço que Ele pagou; por menos não foi possível. O que o Jardim das
Oliveiras viu, naquela noite, não foi um simples suor de sangue no rosto de
Nosso Senhor. Mais do que isso: sudor eius sicut gutae sanguinis
decurrentis in terram [seu suor tornou-se gotas de sangue a
escorrer pela terra (Lc 22,44)].
Ultrapassa
a nossa imaginação o suplício experimentado pelo Redentor naqueles momentos de
agonia. O pavor diante do sofrimento previsto não se manifestou num suor comum;
foi um suor de sangue e tão intenso que as gotas rolaram à terra. Naquela
noite, Ele me viu também. E viu a minha vida, viu os meus pecados, que nenhuma
impressão me fizeram, porque deles nem me lembro mais.
O seu
Sangue continuou correndo na flagelação, na coroação de espinhos, na cruz; por
menos eu não seria salvo. Quanto sangue nessa luta entre Deus e o demônio, pela
posse de minha alma! Não será demais todo sacrifício que eu fizer, para que
essa alma não volte a ser escrava; nem será demais todo cuidado que eu tenha
pela pureza de minha consciência. Ele pagou por mim um preço que ninguém podia
pagar: empti praetio magno [comprado por um preço muito
alto].
02 DE JULHO
Semper
gaudete! [alegrai-vos sempre! (1Ts 5,16)]
O Apóstolo
nos deseja a alegria santa dos filhos de Deus. É a alegria inocente, que nasce
de um coração reto e de uma consciência pura. Certamente precisamos distinguir
essa alegria da dissipação. Esta é fruto da tibieza. Está nas conversas inúteis,
nos passeios e viagens sem necessidade; está em certas leituras, em certas
amizades e reuniões. Aparece em certos divertimentos que sacrificam o tempo, o
estudo e a oração. Numa palavra, a dissipação está em tudo o que nos diminui o
fervor.
Muitas
vezes tentamos vestir a dissipação com as aparências de um descanso necessário.
Apelamos para o argumento de que esta ou aquela alegria nos dispõe melhor para
o trabalho e oração. A nossa consciência é quem o sabe. Mesmo assim, não
podemos esquecer que o fim não justifica os meios. Descanso é uma coisa;
dissipação é outra.
Nosso Senhor, por ser humano, também conheceu o descanso; mas não conheceu a dissipação. Nisi efficiamini sicut parvuli [se não vos tornardes como criancinhas] — podemos usar das alegrias que Deus nos dá; abusar porém, nunca. E que venham dEle realmente; pois a dissipação não vem de Deus. Alegres sicut parvuli [como criancinhas] — isto é, sem exageros que prejudicam o nosso fervor.
03 DE JULHO
Exaltavit
humiles [exaltou os humildes (Lc 1,52)]
O meu
caminho para chegar até Deus não pode ser outro senão a humildade. E para eu me
aproximar das almas, o caminho é o mesmo. Se Nosso Senhor não tolerava o
orgulho dos fariseus, as almas também não se aproximam do sacerdote cheio de
si. Homens cheios de si mesmo não faltam e as almas querem um homem cheio de
Deus. Por isso, na falta de humildade e mansidão é que vamos achar a causa de
muito fracasso no apostolado.
De que me
serve sacrificar a vida num trabalho contínuo, se o móvel de toda a minha atividade
é o meu orgulho e amor próprio? Quid prodest tenuari abstinentia, si
animus intumescit superbia? [para que serve uma severa
abstinência (do corpo), se a mente está locupleta de orgulho?]
— pergunta São Jerônimo. De nada me serve a mentira do orgulho pois, se as
almas não sabem o que sou, Deus o sabe muito bem! Tu scis insipientiam
meam, et delicta mea te non latent [vós conheceis a minha
insipiência e minhas faltas não vos estão ocultas (Sl 68,6)].
Ingenuidade
absurda seria eu pensar que, aos olhos de Deus e das almas, posso vestir a
minha vaidade com aparências de zelo e ocultar as minhas falhas com retoques de
virtude. Por menor que seja, o orgulho sempre aparece, mesmo que se oculte sob
um hábito de morte. Humillis habitus non sanctae novitatis est meritum,
sed priscae vetustatis operculum [o hábito humilde (usado
pelos monges) não é sinal de distinção e renovação interior, mas apenas
uma capa que reveste antigos vícios] — observava São Bernardo.
04 DE JULHO
Quamvis
bonus videaris coenobita... [ainda que pareças um bom
anacoreta (religioso)...]
Tenho que
reconhecer a boa vontade com que iniciei o meu sacerdócio. Naqueles anos havia
mais fervor em minha vida, mais ordem no meu trabalho, mais apego à oração.
Mas, com o tempo, o trabalho invadiu a minha vida e, como um vendaval, deixou
cair em tudo a poeira da dissipação, da rotina e de uma confiança exagerada.
Vendo-me na
agitação de todos os dias, já não me reconheço. Quam mutatus ab illo! [quão
diferente desde então!]. As ocupações e cuidados se multiplicaram, destruindo
a ordem do meu dia. Minha vida de oração ficou reduzida à Missa e ao Breviário,
que já não se caracterizam pelo fervor, mas pela pressa da agitação. Sem
renunciar a experiência dos anos, preciso voltar atrás para reaver aquela minha
alma fervorosa, dócil e simples.
Uma corrida contínua, sem ordem e sem método, poderá provocar um irremediável desgaste de forças. E é na oração e no recolhimento, que eu devo recuperar as energias necessárias. Sois um templo — escreveu alguém — colocai os objetos no átrio; dai aos homens a nave, mas reservai o presbitério para Deus. Numquam tibi promittas securitatem in hac vita [nunca te dês por seguro nesta vida] — é o aviso da Imitação [Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis].
05 DE JULHO
Quid
facimus?... [o que faremos? (Jo 11,47)]
Os fariseus
incomodavam-se com os milagres do Mestre. Viam-se perdidos; interrogavam-se uns
aos outros, sem saberem mais o que fazer quia hic homo multa signa
facit [uma vez que este homem realiza muitos sinais]. O
despeito os cegava, a inveja não lhes dava sossego. Por ser a mãe de muitos
outros pecados, a inveja está entre os pecados capitais.
E, sendo ela inseparável do egoísmo, todos nós mais ou menos egoístas, levamos conosco uma pontinha de inveja. Pode ser que a não reconheçamos; geralmente muito discreta, ela prefere aparecer com outros nomes. Às vezes ela se deixa ver numa palavrinha de censura, que dizemos bem intencionada. Outras vezes é uma gotinha de crítica, que se diz construtiva. Ora é uma observação, sob pretexto de caridade; ora um silêncio estudado e significativo.
Geralmente ela estuda, antes de se apresentar. Não será o veneno da inveja que, muitas vezes, põe o descontentamento em minha vida? O irmão do filho pródigo vivia feliz na casa paterna. Mas um dia sofreu amargamente; achou que lhe faltava a festa que fizeram ao pródigo que mortuus erat, et revixit... [estava morto e reviveu...]. Aceitemos o que somos; procuremos dar o máximo para Nosso Senhor. E deixemos os outros em paz.
06 DE JULHO
Fides quae
per caritatem operatur [a fé que atua pela caridade (Gl
5,6)]
Toda a
nossa vida, segundo o Apóstolo, deve ser uma fé profunda, posta em atividade
por um grande amor a Deus. Scio cui credidi [sei em quem
creio (II Tm 1,12)] — afirmava São Paulo; e a sua fé apareceu num
apostolado admirável, como nenhum outro tanto que, referindo-se aos demais
Apóstolos, sem nenhuma vaidade, pôde dizer: abundantius illis omnibus
laboravi [tenho trabalhado mais do que todos (1Cor 15,10)].
Como a
nossa vaidade insiste sempre em se colocar no lugar de Deus e como geralmente
sentimos muita facilidade para nos amar 'sobre todas as coisas', não será
demais chamarmos, de vez em quando, a nossa atividade para um exame. Nossos
trabalhos e iniciativas, certas atitudes e medidas que tomamos, será tudo fruto
do nosso amor a Deus?
Pode ser
que alguma ou muita coisa em nossa vida tenha apenas uma fantasia de zelo e
caridade, a cobrir uma vaidade nossa, muito discreta é verdade, mas que não se
conforma com ficar esquecida. E, diante de Deus, só tem valor aquilo que
estiver marcado com a boa intenção; o mais é artifício, que não aproveita às
almas, nem à nossa alma. Sine caritate opus externum nihil prodest;
quidquid autem ex caritate agitur, totum fructuosum efficitur [sem
a caridade, nada vale a obra exterior; tudo, porém, que procede da caridade
produz frutos abundantes (Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)].
07 DE JULHO
Ibo ad
Patrem [irei até o meu Pai (Lc 15,18)]
Meu Deus,
todos aqueles que me procuram são, mais ou menos, uns filhos pródigos, à
procura de um Pai. No perdão que eles esperam, no conselho que me pedem, na
solução que desejam, eles querem a tua Verdade, a tua Vida. Quando me procuram,
é a ti que eles querem achar. Palavras deste mundo, o mundo as tem para lhes
dar. Mas eles querem a tua palavra de vida eterna, que tem o sabor do
sobrenatural.
Indiferença,
frieza e leviandade, o mundo também lhes pode oferecer. Mas eles buscam a tua
compreensão, a tua prudência e a tua caridade. Querem o teu amor, o teu perdão.
Preciso pensar que, se eles não encontrarem o que procuram, voltarão
desiludidos, e talvez não te procurem mais. Eu teria, então, que amargar o
remorso de não ter sido para eles o Pai que a tua misericórdia lhes deu. Ou
irei condenar a avidez com que eles desejam a mentira do mundo.
Senhor, que
eu não me esqueça daquela palavra tua, que vale também para mim: Vae
vobis, quia clauditis regnum caelorum ante homines! Vos enim non intratis, nec
introeuntes sinitis intrare [ai de vós que fechais aos homens o
Reino dos Céus; vós mesmos não entrais e não deixais que entrem os que querem
entrar (Mt 23,13)].
08 DE JULHO
Hoc est
maximum et primum mandatum [esse é o maior e o primeiro
mandamento (Mt 22,38)]
'Consoante
o ensino do Divino Mestre, a perfeição da vida cristã consiste no amor a Deus e
do próximo; amor, porém, que seja verdadeiramente fervoroso, zeloso e ativo.
Seja qual for o estado em que se encontre o homem, para este fim deve dirigir
as suas intenções e as suas ações.
A este
dever está de modo particular obrigado o sacerdote. Toda a sua ação sacerdotal
tende realmente para isso; ele deve, de fato, emprestar a sua cooperação a
Cristo, único e eterno Sacerdote; é, por isso, necessário que siga e imite
Aquele que, durante a sua vida terrena, não teve outro escopo senão demonstrar
o seu ardentíssimo amor ao Pai, anunciando aos homens os infinitos tesouros de
seu Coração.
Não confie
o sacerdote em suas próprias forças, nem se deslumbre com as próprias
qualidades; não procure a estima e louvores dos homens, não aspire a cargos
elevados, mas imite a Cristo que não veio para ser servido, mas para servir.
Renuncie-se a si mesmo — para seguir mais livremente o Mestre Divino. Tudo
aquilo que tem, e tudo quanto é, procede da bondade e do poder de Deus. Se
quiser, portanto, glorificar-se, lembre-se das palavras do Apóstolo: quanto a
mim, em nada poderei me gloriar, senão em minhas fraquezas' (Pio XII).
09 DE
JULHO
Quis ex
vobis arguet me de peccato? [quem de vós me acusará de pecado? (Jo
8,46)]
Para
perseguir a Nosso Senhor, o mundo usou de todas as armas. E para nos atacar, o
mundo de hoje também dispõe de todos os recursos. Para atingir a sua
finalidade, todos os meios lhe são lícitos, já que desconhece a moral.
Seríamos
ingênuos se nos quiséssemos defender, usando as mesmas armas com que somos
atacados. Para nossa defesa temos uma única arma e essa de efeito infalível: é
a nossa virtude. Foi dessa arma que Nosso Senhor também usou, confundindo seus
inimigos com a própria santidade. Arma secreta, o mundo não a conhece e, por
isso, não a sabe manejar.
As outras
ele as conhece e muito bem, melhor do que nós, já que lhe pertencem a calúnia,
o ódio, a difamação. In omnibus teipsum praebe exemplum bonorum operum,
in doctrina, in gravitate [em tudo mostra-te modelo de bom
comportamento e sob austeridade na doutrina (Tt 2, 7)]. São Paulo
provou de perto a oposição dos inimigos da Verdade e, para vencê-los, nada mais
fez que impor-se pela santidade da sua vida: ut is qui ex adverso est,
vereatur, nihil habens malum dicere de nobis [para que o adversário
seja confundido, não tendo nada de mal a dizer sobre nós (Tt 2, 8)].
Se Nosso Senhor nos colocou super candelabrum [(como luz)
sobre o candelabro], muito acima do mundo, foi para que o mundo não nos
pudesse alcançar. Resta que nos saibamos conservar na altura em que fomos
colocados.
10 DE JULHO
Peccatum
meum contra me est semper! [diante de mim está sempre o meu
pecado! (Sl 50,5)]
A lembrança
das minhas faltas me humilha, porque eu sei e compreendo o absurdo que é o
pecado na vida sacerdotal. Depois de ter recebido tanto de Deus, eu já devia
estar correspondendo melhor a tantas provas de predileção. Arrastando, sempre
com tantas dificuldade, o peso das faltas e defeitos que não consigo vencer,
era para eu desanimar, não fosse a confiança que eu devo ter na misericórdia de
Deus.
Peccavi
nimis in vita [pequei muitas vezes na vida] — ao longo do meu caminho, as
faltas estão marcando os meus dias, como coisa muito natural. Elas já não me
impressionam. No entanto, pelo muito que Deus me ama e pelo muito que recebi, o
pecado devia ser uma anormalidade em minha vida, um absurdo que me devia chamar
a atenção. Mas, apesar disso, me acostumei tanto com o pecado, que nem posso
dizer quantas vezes pequei num ano, em um mês, e até num dia.
A esse
ponto eu cheguei: de perder a conta das minhas faltas... certamente porque não
empreguei todo o esforço necessário. Mesmo assim não posso desanimar. Ao perder
a conta das minhas faltas, perdi também a conta de todas as vezes que Deus me
perdoou. Sem abusar do seu amor, laudate Dominum quia bonus! [louvai
o Senhor porque Ele é bom! (Sl 134, 3)].
11 DE JULHO
Placent
Dominum qui timent eum [agradam ao Senhor os que o temem (Sl
146,11]
É certo que
Deus ama aqueles que o temem. E Ele espera que eu o respeite com um santo
temor. Tanto assim, que me lembrou, muitas vezes, o pranto e ranger de dentes
daqueles que se revoltaram contra a sua Vontade soberana.
Mas, com
isso, Deus não quer criar distância entre a minha miséria e a sua infinita
grandeza. Se Ele ama os que o temem, deve amar ainda mais aqueles que o amam e
confiam na sua bondade. Não terá sido por isso que Ele mostrou tanto amor e
predileção para as crianças? Preciso me lembrar sempre disto: temer, sim, mas
principalmente amar.
O Apóstolo
não me diz que Ele é a justiça, o poder ou a grandeza. Deus caritas est [Deus
é amor] — Ele é simplesmente o Amor. E foi assim, como um Amor infinito,
que Ele se revelou ao mundo, ocultando aos nossos olhos toda a sua grandeza e
poder. O salmista, que tantas vezes cantou as perfeições divinas, viu também
como Ele sabe amar: ipse sanat fractos corde, et alligat vulnera eorum;
videte qualem caritatem dedit nobis Pater, ut filii Dei nominemur, et simus [Ele
cura os corações chagados e cuida das suas feridas (Sl 146,3); considerai com
que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus, e nós o
somos (1Jo 3,1)].
12 DE
JULHO
Nolite
tangere unctos meos [não ouseis tocar os meus ungidos (St 104, 15)]
É o que
podemos fazer, e infelizmente o fazemos com certa facilidade, por não usarmos
da devida caridade no falar. Precisamos reconhecer que a nossa língua também
faz as suas vítimas, principalmente quando nos referimos a colegas.
O respeito
e a veneração para com os sacerdotes são virtudes que o povo deve praticar, mas
nós também. Que triste espetáculo não oferecem certas rodas ou meros encontros
que fazem das faltas alheias tema obrigatório das conversas! Comentários e
observações que certamente não primam pela caridade, chegam a constituir o
prato predileto de certo gosto estragado, que não sabe alimentar uma conversa a
não ser com as faltas e defeitos de colegas.
E, o que é
pior: muitas vezes, os comentários são feitos a leigos ou diante deles. E,
nesse caso, a má impressão, ou mesmo o escândalo, estará tornando mais grave a
culpa. Toda vez que comentamos uma falta alheia, condenamos a nós mesmos: in
quo enim iudicas alterum, teipsum condemnas [naquilo que aos outros
julgas, a ti mesmo condenas (Rm 2, 1)]. Sirva-nos de aviso a palavra
de São Paulo: quod si invicem mordetis... videte ne ab invicem
consumamini [mas se vos mordeis... cuidai para não aniquilar-vos
uns aos outros (Gl 5,15)].
13 DE JULHO
Haec et
metet [semeia e colherá (Gl 6,8)]
É esta uma
verdade que podemos verificar todos os dias. Quando levamos a sério o
cumprimento de nossos deveres, os exercícios de piedade, a nossa união com
Deus, experimentamos a paz de uma consciência limpa. É a íntima satisfação de
estarmos servindo a Deus como filhos, in fide et veritate [na
fé e na verdade].
Do nosso
esforço e boa vontade, nasce a alegria e colhemos maior disposição para
continuarmos trabalhando. Mas, quando abrimos a nossa alma à dissipação, quando
nos entregamos ao comodismo e descuidamos os nossos deveres, o resultado não se
faz esperar: achamos tudo difícil, perdemos o entusiasmo e sentimo-nos pesados
a nós mesmos.
Qui seminat
in carne, de carne et metet corruptionem [quem semeia na carne, na
carne colherá a corrupção]. Não trabalhando com Deus e nem para Deus, o
sacerdote acaba vivendo uma vida vazia. Torna-se pesado e insípido o seu
ministério e a sua vocação não lhe oferece mais atrativos. Não vivendo para
Deus, começa a viver para si mesmo. E o resultado dessa tibieza é sempre o
mesmo: novimus multos, omnes virtutes numero habuisse, et tamen,
negligentia lapsos, ad vitiorum barathrum devenisse [quantos não
conhecemos que eram cheios de virtudes e, mais tarde, imersos na tibieza,
precipitaram-se num abismo de iniquidades (São João Crisóstomo)].
14 DE
JULHO
Et catelli
comedunt sub mensa [e até os filhotes de cães se fartam sob a mesa (Mc
7,28)]
Pelas
aparências, que mulher imprudente aquela siro-fenícia! O tipo da mulher
ignorante, mas que sabe importunar. Na realidade, porém, que mulher admirável!
Recolhido, quase escondido numa casa de família, o Mestre queria sossego.
Estava cansado de atender a tanto pedido. E a mulher o vai importunar.
Não olha para as conveniências; tinha um pedido a fazer e queria fazê-lo. Falou com o Mestre. Mas Ele não se mostrou muito pronto em atendê-la, argumentando com aparente desprezo para com a estrangeira. E ela insiste, argumentando também. O desejo de ser atendida fê-la esquecer que era uma ignorante, a querer discutir com um Mestre. Agarrou-se à palavra de Nosso Senhor e dela arrancou uma conclusão que lhe era inteiramente agradável: et catelli comedunt sub mensa, de micis puerorum... [até os filhotes de cães se fartam sob a mesa das migalhas das crianças...].
A bem
dizer, Nosso Senhor ficou desarmado ante a insistência daquela profunda
humildade. A mulher aceitava o aparente desprezo com que o Mestre lhe falava.
Mas, nem por isso desistia do seu pedido. Propter hunc sermonem...
exiit daemonium a filia tua [por causa desta palavra... saiu o
demônio da sua filha (Mc 7, 29)]. O milagre foi feito, a pedido da
simplicidade.
15 DE JULHO
Omnia
possibilia sunt credenti [tudo é possível a quem crê (Mc
9,22)]
Ao ter
notícia de uma apostasia, alguém observou: omnia possibilia sunt... non
credenti [tudo é possível... (até) não crer].
De fato, quando uma alma perde a fé, tudo é possível, até mesmo uma traição
estilo Judas, premeditada e concluída com a maior frieza.
A história
das deserções é sempre a mesma: a princípio algumas faltas, aparentemente sem
importância; depois a tibieza que, pouco a pouco, vai minando o espírito de fé;
as trevas tomam conta. Sabemos muito bem que, sem vida de oração, a alma não se
pode alimentar com a graça. As paixões começam a arrastá-la para fora da sua
base, que são as verdades da fé. As faltas deliberadas vão se sucedendo,
anunciando a queda final.
Tudo então pode acontecer. Sem apoio e sem força, a alma acaba desmoronando. E oxalá desmoronasse sozinha! Mas, infelizmente, essa queda é sempre a ruína de muitos outros. Com toda humildade precisamos fazer nossa a oração daquele homem que, não confiando em si mesmo, cum lacrymis aiebat: Credo Domine; adjuva incredulitatem meam [respondeu de imediato: creio, Senhor, mas me socorre na minha pouca fé].
16 DE JULHO
Quae vestra
sunt [o que é vosso (2Cor 12,14)]
'Nós vos
exortamos ardentemente a não vos prenderdes com afeto às coisas da terra,
transitórias e perecíveis. Tomai como exemplo os grandes santos do passado e de
nossos tempos, os quais, unindo o necessário desprendimento dos bens materiais
a uma grandíssima confiança em Deus e a um ardentíssimo zelo sacerdotal,
realizaram maravilhosas obras, confiando unicamente na Providência, que nunca
deixa faltar o necessário.
Também o
sacerdote, que não faz com voto particular a profissão de pobreza, deve ser
sempre guiado pelo espírito e amor desta virtude, amor que deve demonstrar pela
simplicidade e modéstia do teor de vida, e pela generosidade para com os
pobres. De modo particularíssimo, portanto, não queira imiscuir-se em empresas
econômicas, que lhe impedirão de cumprir seus deveres pastorais e diminuirão a
confiança que nele depositam os fiéis.
Vosso zelo
deve ter por objeto não as coisas terrenas, mas as eternas. Deve ser este o
propósito dos sacerdotes que aspiram a santidade: trabalhar unicamente para a glória
de Deus e a salvação das almas. Dedicado com o máximo empenho à salvação das
almas, deve o sacerdote aplicar a si mesmo a palavra de São Paulo: non
enim quaero quae vestra sunt, sed vos [porque não busco o que é
vosso, mas a vós mesmos] (Pio XII)
17 DE JULHO
Nemo repente
fit malus [nada se torna mal de repente]
Senhor,
aqueles que te abandonaram, poderão dizer quando começaram a perder o caminho?
Foi aos poucos. Não quero pensar que eu tenho o monopólio da verdade, que sou o
representante exclusivo da virtude. Que a desgraça de outros me abra os olhos
da humildade, para que eu me entregue inteiramente ao teu domínio.
Do
contrário, minha vontade enferma acabará me arrastando para longe do caminho
certo. E perderei de vista o ideal que escolhi. Aquele ladrão, que agonizou ao
teu lado, nem te conhecia. Bastou que te ouvisse e se converteu. Mas o teu
traidor viveu contigo. Ouviu a tua doutrina e assistiu os teus milagres. Mas
nunca te pertenceu sinceramente.
Por isso, quando a tua misericórdia realizou aquele último assalto: amice, ad quid venisti? [amigo, é para isso que vieste?] — encontrou pela frente o rochedo de uma indiferença verdadeiramente diabólica. Eu sei que me chamaste para a santidade. Nem por isso posso pensar que já estou confirmado na graça como dono de todas as virtudes. Que eu não me ponha a seguir caminhos que a minha vontade escolhe, mais de acordo com as minhas fraquezas; meu caminho é somente um: ego sum via [eu sou o caminho].
18 DE JULHO
Simon,
dormis? [Simão dormes? (Mc 14,37)]
Que
tristeza amarga nessa pergunta do Mestre! À hora em que mais precisou do apoio
e da companhia dos seus, eles estavam dormindo, inteiramente despreocupados. Eu
sei que, a qualquer momento, posso contar com Nosso Senhor. Tenho confiança,
porque Ele nunca me poderia abandonar.
Mas, será que Nosso Senhor pode contar sempre comigo? Se Ele não me chamou para grandes obras, e realizações de vulto, Ele deveria poder contar comigo, ao menos, para os meus deveres de cada dia. Será muito o que Ele me pede? Quando Nosso Senhor me acena com alguma alegria ou mesmo com algum trabalho que agrada à minha vaidade e o meu gosto, não ofereço dificuldades; estou pronto.
Mas, tratando-se de algum sacrifício, de alguma renúncia, no cumprimento de alguma obrigação que me pesa, geralmente não me mostro muito pronto. Chego mesmo a reclamar da obediência, do excesso de trabalho, para dizer, enfim, que não posso. Foi sempre assim: para o Tabor não faltam voluntários. Mas quando se trata de sacrifício e renúncia, o entusiasmo desaparece, porque a disposição não é a mesma.
19 DE JULHO
Adhortamini
invicem! [animai-vos mutuamente! (Hb 3,13)]
Este é o
conselho que o Apóstolo nos dá ut non obduretur quis ex vobis fallacia
peccati [para que nenhum de vós seja obscurecido pela sedução do
pecado (Hb 3, 13)]. Sempre, em toda parte, eu devo realizar o
apostolado do bom exemplo. E se esse apostolado deve atingir a todos, de um
modo especial deve ele chegar aos meus colegas de sacerdócio. Eles têm direito
ao meu bom exemplo.
Não os
posso desanimar, contagiando-os com o meu pessimismo, com o meu espírito
negativo, que tudo censura e destrói. Não lhes devo ser uma pedra no caminho,
com certas ideias ou hábitos que mais pregam a tibieza do que o fervor. Com a
palavra e com o exemplo, tenho que ser um estímulo para todos.
Não posso
ignorar que os mais novos, e menos experientes, olham para mim como para um
modelo. Com minha tibieza, eu poderia contribuir para que eles não fossem o que
deveriam ser. Vale também para mim aquela palavra: confirma fratres
tuos [fortalece os teus irmãos (Lc 22, 32)]. Será esse o
fruto do meu bom exemplo. A caridade, a discrição, o zelo, a obediência, o
desapego, enfim, o fervor, eis o que eu desejo ver nos meus colegas e o que
eles também querem ver em mim. Timeamus, ne forte relicta
pollicitatione introeundi in requiem eius, existimetur aliqui ex vobis deesse [embora
subsista a promessa de entrar no seu repouso, cuidemos para que alguns não
sejam excluídos (Hb 4,1)].
20 DE JULHO
Unum tibi
deest [uma só coisa te falta (Mc 10,21)]
Depois de
ter examinado a sua vida e de fazer os seus cálculos, aquele rapaz achou ter
feito o suficiente para merecer o Reino dos Céus. Com toda sinceridade,
afirmou: haec omnia observavi a iuventute mea [tenho
observado tudo isso desde a minha juventude (Mc 10, 20)]. Mas o
Mestre, que via mais longe, observou: está faltando ainda uma coisa...
Nosso
Senhor sabe muito bem o quanto lhe devemos oferecer. E, ao mesmo tempo, conhece
as restrições que lhe costuma fazer a nossa mesquinhez. É que o nosso egoísmo
nunca se conforma com perder aquilo que ele julga a sua parte. Diante das
medidas que pomos na nossa generosidade, Nosso Senhor é total nas suas
exigências.
Quantas vezes Ele não nos surpreende com renúncias e sacrifícios que julgamos acima de nossas forças! Ficamos apavorados; mas Ele não diminui o peso do sacrifício, nem a extensão da renúncia que nos impõe. E nós já o devíamos saber, desde que recebemos o primeiro mandamento da sua Lei. Que eu não pense estar correspondendo com perfeição às exigências do seu amor. Para isso, não me falta apenas alguma coisa; falta ainda muita coisa que se resume nisto: abneget semetipsum et tollat crucem suam... [negue-se a si mesmo e tome a sua cruz...].
21 DE
JULHO
Ecce sanus
factus es [eis que ficaste são (Jo 5,14)]
Tendo
curado a um pobre doente, Nosso Senhor lhe deu este aviso: jam noli
peccare, ne deterius tibi aliquid contingat [não peques mais, para
que não te suceda algo pior]. Muito pior que uma doença de trinta e oito
anos, será certamente a justiça divina, quando provocada pelo pecado. Se Deus
me esperou até agora, não posso abusar da sua paciência: plus timendus
est cum tolerat, quam cum festinanter punit [quanto mais
pacientemente se tolera, tanto mais rapidamente se castiga] — assim me
avisa São Gregório.
Tenho que
me preocupar mais com a pureza de minha consciência. Não posso permitir que
certas faltas se introduzam na minha vida e continuem como coisa muito natural.
Já não sei quantos pecados fui deixando ao longo do meu caminho, de tantos que
são... Alguma providência preciso tomar, ne deterius aliquid contingat [para
não suceder algo pior].
Quantas
vezes Deus já me perdoou? Não sei. E quantas vezes Ele ainda me quer perdoar?
Também não sei, porque a sua justiça também é infinita. O certo é que não posso
continuar despreocupado com a minha situação, como se tudo estivesse em ordem,
somente porque Deus me ama e me perdoa. Ele me avisou: jam noli
peccare, porque indulgentiam tibi Deus promisit; crastinum diem tibi nemo
promisit [não peques mais, porque Deus te prometeu o perdão de tuas
iniquidades, mas não te prometeu o dia de amanhã (Santo Agostinho)].
22 DE
JULHO
Repellam te [te
excluirei (Os 4,6)]
Por
que? Quia tu scientiam repulisti [por teres rejeitado a
instrução (Os 4,6)]. Deus não me quer como uma máquina a seu serviço e
nem como um simples funcionário, a serviço da sua Igreja. Se, pelo estudo e
oração, eu não me colocar à altura do meu ministério, repellam te, ne
sacerdotio fungaris mihi [te excluirei do ofício do meu sacerdócio].
É certo
que, às vezes, uma piedade profunda pode suprir uma cultura deficiente. Mas
isso acontece quando a deficiência de cultura está isenta de culpa. Abandonando
os livros, para me ocupar com trabalhos alheios ao ministério, para me entregar
à dissipação e viver mais à vontade, não poderei esperar que a graça me venha
em auxílio. Deus não irá fazer o impossível, quando eu não me resolver a fazer
o possível.
Tratando-se
das ciências profanas, sapere ad sobrietatem [saber com (a
devida) sobriedade (Rm 12, 2)] — para que os leigos não me
tenham por ignorante. Mas, em se tratando das coisas de Deus, quanto mais
preparado, tanto mais à altura da minha missão. Como inspirar confiança, como
ser tudo para todos, se eu não me impuser pela doutrina e cultura? Pelos livros
que tem se conhece o padre, contanto que os tenha em uso e não somente como
adorno de sua biblioteca. A experiência me diz que o óleo da minha vida
sacerdotal não é somente a piedade; é a ciência também.
23 DE JULHO
Omnes
quaerunt te [todos te procuram (Mc 1,37)]
Que vida
aquela de Nosso Senhor! De cidade em cidade, pelos campos e estradas, sob o
sol, a chuva e a poeira. Não tinha onde reclinar a cabeça e, ainda que tivesse,
o povo não lhe dava sossego. A fome e a sede o acompanhavam e, em toda parte,
conhecia a gratidão de alguns e a ingratidão e a indiferença de outros.
Aqueles que o procuravam sabiam que Ele não desprezava nem desatendia a ninguém: si quis venit ad me, non eiciam foras [se alguém vem a mim, não lançarei fora (Jo 6, 37)]. Se minha vida não pode ser outra que a de Nosso Senhor, eu também não posso ser outro senão o alter Christus [outro Cristo], para todos aqueles que me procuram.
Que o trabalho não me faça desanimado e nem perder o entusiasmo. Que as dificuldades não me tornem ríspido nem pesado para ninguém. Que a minha simplicidade não degenere em rudeza ou descuido, porque a polidez e as boas maneiras me devem auxiliar no ministério. Que a minha inteligência e cultura não me isolem na vaidade ou no orgulho porque sou também dos pobres e ignorantes. Por todos devo eu sofrer a minha vida de todos os dias, porque Ele também sofreu a sua vida e a sua morte, por todos, e até por mim...
24 DE JULHO
Unum est
necessarium [uma só coisa é necessária (Lc 10,42)]
De manhã
até a noite, eu vejo tanta coisa e tanta gente à espera dos meus cuidados,
exigindo a minha atenção... O altar, o confessionário, a pregação, os doentes,
as crianças, as obras de caridade, tudo precisa de um luar no meu dia de
trabalho. Tenho que me preocupar com tudo porque o trabalho aumenta sempre e
nada posso esquecer.
No entanto,
tenho também uma alma que está à minha espera. Em meio a toda a agitação que
enche o meu dia, ela não pede, mas exige, que eu a não esqueça, porque é dela
que depende tudo. Se eu a esquecer, todo o meu trabalho será inútil, porque
será um trabalho sem alma, que Deus não poderá aceitar. Ele é um Deus vivo e
quer que eu trabalhe com uma alma viva, pelo contato com a sua graça.
Tantas
vezes deixo minha alma esquecida em meio a tanta preocupação! E ela tem direito
aos meus cuidados. A ordem do meu dia não pode ser outra senão esta: primeiro a
minha alma; depois, as almas. Sem vida sobrenatural, minha atividade não terá
valor. A alma do meu apostolado só pode ser o apostolado que eu dispensar à
minha própria alma. Unum est necessarium [uma só coisa é
necessária].
25 DE JULHO
Securis ad
radicem arborum posita est [o machado está posto à raiz das
árvores (Mt 3,10)]
Este aviso
do Precursor devia estar clamando sempre aos meus ouvidos. A qualquer momento,
quando menos eu espere, a árvore da minha vida poderá cair. Mors ubique
te expectat; tu ubique eam expectabis [a morte te espera em todos
os lugares; em todos os lugares ela te aguardará] — diz São Gregório.
O
pensamento da morte só me trará vantagem se ele me fizer pensar em minha vida.
Horror à morte, todos têm; mas nem por isso se resolvem a mudar de vida. Que eu
devo morrer é certo e o que já sei não me deve impressionar. O que me deve
preocupar é o que eu não sei: de que lado irá cair a árvore dos meus dias? Essa
preocupação é que me deve acompanhar sempre. É assim que eu devo pensar na
morte, para que ela me faça pensar na minha vida.
Talis vita,
finis ita [tal vida, tal morte]. Que eu queira viver sempre com
Deus e a morte será, para mim, a alegria que foi para os santos. Será a
realização de um desejo que, durante toda a vida, eu alimentei: Deus
meus es, sollicite te quaero. Te sitit anima mea ut terra arida et sitiens [ó
meu Deus, com ardor vos procuro, minha alma vos anseia como a terra árida e
sequiosa (Sl 62, 2)]. É assim que eu o devo desejar agora, como a
terra árida, sequiosa de uma chuva benéfica. Naquele dia em que Ele vier
— ecce sponsus venit [eis que o noivo vem (Mt
25,6)] — poderei tranquilamente ir ao seu encontro: exite obviam
ei [ide ao encontro dele].
26 DE JULHO
Otiositas
mater est nugarum [a ociosidade é a mãe das coisas inúteis]
Assim
escreveu São Bernardo. E alguém observou que, para o sacerdote, a perda de
tempo é a perda das almas. À hora de sua morte, Pio XI dizia: 'Resta-me ainda
tanto por fazer!' Se fosse essa a nossa preocupação, enquanto a morte não
chega!
Certamente saberíamos dar mais valor aos minutos que passam, realizando mais para as almas, e... para nós mesmos. De que nos vale o tempo, se o não empregamos em preparar a nossa eternidade? No entanto, somemos as horas sacrificadas em conversas inúteis, em esporte e divertimentos, em cinemas e leituras, em visitas e passeios; teríamos meses inteiros. Mas... e o descanso necessário à saúde? Sem dúvida, um descanso comedido poderá ser necessário.
Mas, consulte-se a consciência. Não é qualquer descanso que nos fica bem. Que seja moderado e conveniente, pois nunca poderíamos ver o espírito de imolação e de zelo no impendam et superimpendar [gastar-se e se desgastar] na ociosidade ou no descanso exagerado. Clericus illud apud se repetere debet, se non ad inertiam et ignaviam, sed ad spirituales et ecclesiasticae militiae labores vocatum esse [o sacerdote deve se recordar que não é chamado à inércia ou à preguiça, mas a trabalhar com afinco nas hostes espiritual e eclesiástica (São Carlos Borromeu)].
27 DE
JULHO
Ne videant
vanitatem [(que meus olhos) não vejam a vaidade (Sl
118,37)]
Tinha razão
o salmista ao rezar assim, pois é pelos olhos que o espírito do mundo penetra
mais facilmente em nossa vida. Lucerna corporis tui est oculus tuus. Si
oculus tus fuerit simplex, totum corpus tum lucidum erit; si autem nequam
fuerit, etiam corpus tum tenebrosum erit [o olho é a lâmpada do
corpo. Se teu olho é são, todo o corpo será bem iluminado; se, porém, estiver
em mau estado, o teu corpo estará em trevas (Lc 11,34)].
Que o padre
procure salvar as almas, sim. Mas, que não se deixe levar pela correnteza de
leviandades em que elas vivem. A nossa vaidade bem que procura aproximar-se da
vida mundana. E, para isso, chega a vestir-se, às vezes, de zelo bem
intencionado, que julga necessário aproximar-se mais do ambiente. Já em seu
tempo, observava São Jerônimo: Facile contemnitur clericus qui, saepe
vocatus ad prandium, ire non recusat. Obsecro, charissime, ut multitudinem
hominum, et officia et salutationes et convivia, velut quasdam catenas fugias
voluptatum [o sacerdote torna-se desprezível quando, sempre que
convidado para jantares, nunca recusa o convite. Exorto-vos a evitar, queridos
irmãos, reuniões, cumprimentos e festas, como tantas outras cadeias que vos
escravizam no prazer].
O contato
exagerado e leviano com o mundo - a experiência que o diga - longe de salvar as
almas, põe o padre a perder. O mundo acabará por lhe impor as suas idéias e o
seu espírito. O autor do Eclesiástico já sabia e ensinava que: vinum et
mulieres faciunt apostotare sapientes [o vinho e as mulheres fazem
sucumbir os sábios (Eclo 19,2)].
28 DE JULHO
Satanas
satanam ejicere? [Satanás expulsar a Satanás? (Mc 3,23)]
O demônio
conhece de longe aqueles que o podem vencer: videns autem Jesum a
longe, cucurrit... clamans voce magna [vendo Jesus de longe
correu... gritando em alta voz (Mc 5,6)]. Como reconheceu logo a Nosso
Senhor, assim também o demônio conhece bem, e de longe, o sacerdote cheio do
espírito de Deus. Ele sabe que a virtude é mais forte que a sua malícia.
A Igreja me
diz que Satanás e outros espíritos malignos andam pelo mundo, para perder as
almas. E, diante das ovelhas ameaçadas, eu não posso fugir, como um mercenário
covarde. Não posso facilitar o trabalho do lobo. Se o demônio não expulsa os
seus espíritos malignos deste mundo, nec sacerdos, habens spiritum
huius mundi, eum expellere potest ab aliis [nem os sacerdotes,
possuindo o espírito desse mundo, podem expulsá-los dos outros].
Conhecendo
de longe o sacerdote cheio de Deus, o demônio conhece também o sacerdote pouco
fervoroso e dissipado, pois tem nele um ótimo aliado, como exemplo de tibieza,
colocado super candelabrum [(como luz) sobre o
candelabro], aos olhos do povo. Pouco dado à virtude e vazio de Deus, não
serei para as almas a defesa que Nosso Senhor lhes deu. Serei apenas um
mercenário. E, com a minha tibieza, estarei auxiliando o demônio no seu
trabalho de perder as almas.
29 DE JULHO
Quomodo
placeat Deo [de como agradar a Deus (1Cor 7,32)]
'O
sacerdote tem, como campo da sua própria atividade, tudo o que se refere à vida
sobrenatural e é órgão de comunicação e incremento da mesma vida no Corpo
Místico de Cristo. Por isso, é necessário que ele renuncie a ‘tudo quanto é do
mundo’ para cuidar somente daquilo ‘que é de Deus’.
E é
justamente porque deve estar livre das preocupações do mundo, para se dedicar
todo ao serviço divino, que a Igreja estabeleceu a lei do celibato, a fim de
que ficasse sempre manifesto a todos que o sacerdote é Ministro de Deus e pai
das almas. Com a lei do celibato, o sacerdote, ao invés de perder o dom e o
encargo da paternidade, aumenta-o ao infinito, pois, se não gera filhos para
esta vida terrena e passageira, gera-os para a vida eterna.
Quanto mais
refulge a castidade sacerdotal, tanto mais unido se torna o sacerdote com
Cristo, hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada. Para guardar intacta, como
inestimável tesouro, a pureza sacerdotal, é necessário ater-se fielmente a aquela
exortação do Príncipe dos Apóstolos, que diariamente repetimos: sobrii
estote, et vigilate' [sede sóbrios e vigiai (1Pd 5,8)] (Pio
XII).
30 DE JULHO
Tu autem...
haec fuge [mas tu... foge disso (1Tm 6,11)]
'Sim,
vigiai, porque a castidade sacerdotal está exposta a muitos perigos, seja pela
dissolução dos costumes públicos, seja pelas atrações do vício, tão frequentes
e insidiosas; seja afinal, pela excessiva liberdade que cada vez mais se
introduz nas relações entre os dois sexos e também tenta penetrar no exercício
do sagrado ministério.
Vigilate et
orate [Vigiai e orai], sempre lembrados de que vossas mãos
tocam as coisas mais santas, de que estais consagrados a Deus e a Ele somente
deveis servir. O próprio hábito que vestis vos adverte de que não deveis viver
para o mundo, mas para Deus. Esforçai-vos, pois, com ardor e alegria, confiando
na proteção da Virgem Mãe de Deus, para vos conservar sempre ‘alvos, limpos,
puros e castos, como convém a Ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios
de Deus’.
Uma
particular exortação vos endereçamos, a fim de que, dirigindo associações e
sodalícios femininos, vos mostreis como convém a sacerdotes, evitai toda
familiaridade e, quando se fizer mister prestar a vossa assistência, prestai-a
como ministros sagrados. Que a vossa tarefa, na direção dessas associações, se
limite ao estritamente prescrito ao vosso sagrado ministério' (Pio XII).
31 DE JULHO
Stulta
mundi elegit Deus [Deus escolheu o que é estulto no mundo (1Cor 1,
27)]
No dia em
que me chamaste, Senhor, eu não perguntei: como?... para que?... Mas, mesmo
assim, eu pensei comigo: quem sou eu, para que te lembres de mim? No entanto,
embora não compreendendo os teus planos, eu sei que a tua Providência não
engana e sabe muito bem o que faz ao fazer o que quer.
Por isso,
prontamente como os teus Apóstolos, eu te segui. Qual não foi, porém, a minha
surpresa, quando vi que a tua mão me colocava super candelabrum... [(como
luz) sobre o candelabro...] para brilhar aos olhos de todos!
Senhor, se a tua Providência procurava um modelo de defeitos e de faltas,
compreendo que ela me tivesse preferido a tantos outros. Mas, para ser modelo
de virtudes... para iluminar a outros com minha palavra e exemplos... eu? Meu
Deus, confesso que não entendo bem os teus desígnios.
Mas, quando
me chamaste, era firme a tua voz, e decisivo o teu gesto: Veni! [Vem!].
E eu te segui. Agora, super candelabrum [(como luz) sobre
o candelabro], eu não sei como agradecer a tua misericórdia. Confesso que,
até agora, não iluminei bastante, como era teu desejo. Mas Tu sabes que ao
menos obedeci e não abandonei o lugar onde a tua mão me colocou. O Profeta que
não sabia falar também obedeceu e realizou assim o que mandavas. Por isso
espero realizar ainda, embora muito indignamente, o que esperas da minha
nulidade: ut luceat omnibus qui in domo sunt [de modo que
brilhe sobre todos que estão em casa (Mt 5,15)].
AGOSTO
10 DE
AGOSTO
Cuius
facturae simus [do que somos feitos (Sl 102, 14)]
Consolo
para mim: Deus conhece a minha natureza, pois sabe muito bem de que barro me
fez. Por isso não está exigindo que eu seja um anjo de perfeição; Ele me quer
apenas humano e humanamente santo.
Se os anjos
devem glorificar a Deus, com a sua perfeição de espíritos celestes, eu devo
glorificar ao Pai com a minha miséria humana, sobrenaturalizada pela graça. É
assim que Deus me quer, assim é que Ele me ama, tal qual Ele me fez, ex
limo terrae [do pó da terra]. Tanto maior o mérito de um
artista, quanto menos indicado o material com que realiza uma obra de
arte. Recordatur nos pulverem esse [lembre-se que somos pó]
— e é com esse pó que Deus realiza uma obra de arte divina, verdadeiro
espetáculo, et angelis, et hominibus [aos anjos e aos
homens].
Com essa
miséria humana que sou, Ele constrói o seu templo neste mundo — vos
estis templum Dei [vós sois o templo de Deus] — e não é com
outro material que Ele vai construindo a sua Igreja triunfante, na eternidade.
Devo ser, um dia, tal qual sou, uma pedra no templo da sua glória eterna. Gratia
Dei sum id quod sum [pela graça de Deus eu sou o que sou] — e
Ele conta comigo para o conjunto da sua glória divina.
02 DE
AGOSTO
Spiritus
Domini super me [o Espírito do Senhor sobre mim (Is 61,1)]
Um biógrafo
de Santo Afonso [Santo Afonso Maria de Ligório] diz que ele foi o mais santo
dos napolitanos e o mais napolitano dos santos. Realmente, o Doutor Zelosíssimo
é bem uma prova de que a graça não suprime a natureza, mas a eleva e
transforma. Deus não destrói o que fez, mas aproveita cuidadosamente o que
somos, para realizar aquilo que devemos ser.
Bispo e
Fundador, escritor e missionário, asceta e artista, apesar de viver sempre
enfermo, numa contínua tempestade de lutas e perseguições, Santo Afonso foi o
Doutor da Oração, o homem que vivia somente para Deus. Tal era o seu zelo, que
soube guardar escrupulosamente o seu voto de não perder tempo. Inauditum,
et Alphonsi caracteristicum [desconhecido, mas característico de
Afonso], esse voto bem revela um temperamento de apóstolo que não queria
fazer apenas alguma coisa para Nosso Senhor.
Entregou-se
inteiramente à graça para poder realizar tudo o que Deus dele esperava. Vivit
amor excessibus [o amor vive de excessos] — compreendemos
porque vivia repetindo: Eu vos recomendo o estudo do Crucifixo! Napolitano por
sua vivacidade e coragem, pela sua dedicação e lealdade, soube ser o que era:
um homem apóstolo, simplesmente apaixonado por Nosso Senhor e sua Igreja.
03 DE AGOSTO
In vineam
meam [para a minha vinha (Mt 20,7)]
Ele nos
mandou trabalhar na sua vinha: ite [ide] — é uma ordem
que não pode sofrer desculpas nem demoras. E a sua vinha é muito grande. Irá
durar até o fim dos tempos; por isso, oferece trabalho a todos que realmente
desejam trabalhar.
Desde os
primeiros séculos, Ele já chamou a tantos para esse trabalho! Nós também — e
até nós — fomos chamados. Não podemos iludir a confiança que em nós depositou.
Mas, precisamos pensar que a vinha não nos pertence. É de Nosso Senhor. Por
isso Ele é quem sabe onde e como devemos trabalhar. Que o nosso trabalho seja consciencioso,
para ser digno de Nosso Senhor.
Que
trabalhemos com amor, sem invejas nem dissenções. Que não exista 'a minha
paróquia' nem 'a minha Ordem ou Congregação'; mas que exista somente a vinha de
Nosso Senhor, oferecendo lugar e trabalho para todos. Precisamos pensar que a
sua Igreja não pode ser transformada num regnum in se divisum [reino
dividido em si mesmo], onde as forças se destroem, por se dividirem. Se, a
meu lado, alguém realiza mais do que eu... tanto melhor. Se realiza menos,
preciso ajudá-lo, na medida do possível. Ele não chamou operários para
trabalhar cada qual na sua vinha. In vineam meam [para a
minha vinha], diz Ele, porque a vinha é propriedade sua e nós somos apenas
os seus auxiliares.
04 DE
AGOSTO
Pater meus
agricola est [meu Pai é o agricultor (Jo 15,1)]
Deus é o
agricultor que trabalha a minha vida: Dei agricultura, estis [vós
sois o campo de Deus (1Cor 3,9)]. E se eu devo auxiliar o seu trabalho
nas almas, antes de tudo, preciso ajudar o seu trabalho na minha alma, já que
Ele, não só me manda trabalhar, mas trabalha também comigo.
Ego sum
vitis, vos palmites [Eu sou a videira; vós, os ramos (Jo 15, 5)] — o
ramo da videira deve refletir o viço da planta à qual está unido. Assim também
tenho que refletir em mim a vida e a imagem de Nosso Senhor. Esse o trabalho
que devo realizar com Ele e que Ele quer realizar comigo. Se eu não o fizer,
não chegarei a ser o alter Christus [outro Cristo].
Serei então um ramo inútil na videira, inútil para as almas e para Deus mesmo.
A minha vida não poderá, dessa forma, refletir a virtude que não tenho, mas refletirá, sim, os meus defeitos e falhas. De que servirá então um ramo seco e sem vida, ligado à videira? Ad nihilum valet ultra... [para nada mais serve...]. Que um sacerdote cheque a esse ponto: de se tornar inútil, de não servir para nada, depois que Deus o chamou, depositando nele toda a confiança! Por isso, Nosso Senhor foi claro quando me avisou: si quis in me non manserit, mittetur foras, et arescet [se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, e murchará (Mt 15, 6)].
05 DE
AGOSTO
Per
mansuetudinem Christis [pela mansidão de Cristo (2Cor
10,1)]
Era assim
que o Apóstolo se dirigia aos fiéis: lembrando a mansidão e a humildade de
Nosso Senhor. Se há em nós um defeito que pode por a perder todo o nosso
ministério, esse defeito é o orgulho. Cheio de si, o sacerdote acaba atraindo o
desprezo das almas e de Deus.
São
Gregório já observava: difficile in se quisque inveteratam superbiam
deprehendit; hoc vitium, quanto magis patimur, tanto minus videmus [é
difícil superar qualquer orgulho empedernido; quanto mais sofremos esse vício,
menos o percebemos]. Infelizmente nos damos sempre por muito humildes,
embora todos tenhamos uma pontinha, mais ou menos acentuada, de orgulho. A
prova é que, com todo o desejo de ser humildes, qualquer ato de humildade já
nos parece uma humilhação, acima de toda a nossa virtude.
Sendo Deus,
Nosso Senhor esqueceu a sua dignidade (Fl 2,5) e se fez, não somente um homem
pobre, mas até um pobre homem. Por isso atraiu a todos. Nós, pelo contrário,
demasiado preocupados com nos impor a todos, deixamos que o orgulho caracterize
as nossas palavras e atitudes. Não nos lembramos de que, pelo orgulho, ninguém
consegue se impor. O que faz é apenas atrair o desprezo de Deus e dos homens.
06 DE
AGOSTO
Ut pasceret
porcos [para guardar os porcos (Lc 15,15)]
A esse
ponto chegou o filho pródigo, porque não havia outro remédio... Ao sair da sua
casa, não teria pensado que, abandonava a própria felicidade, ut
pasceret porcos [para guardar os porcos]. A esse ponto, Senhor,
chegam aqueles que te abandonam, por não quererem viver mais na tua casa.
Dizem que a tua doutrina é pequena para a grande inteligência que possuem. Alegam que é acanhada a mentalidade de tua Igreja, porque eles se julgam donos de uma extraordinária visão dos homens e das coisas. Dizem que a tua Igreja não tem coração, porque não chega a lhes compreender o coração... Com essas e outras desculpas, eles te abandonam. Saem da casa paterna, sonhando com uma liberdade que a tua Igreja não lhes pode dar.
No entanto, pouco depois, já estão escravizados a um rebanho imundo, apascentando as próprias paixões: vaidade, ambição, despeito, sensualidade. Senhor, bendigo a tua Igreja que me manda rezar, ut nosmetipsos in tuo sancto servitio confortare et conservare digneris [que vos digneis confortar-nos e conservar-nos em vosso santo serviço]. E porque sou capaz de tudo, se a tua graça não me ajudar; porque posso até trocar a casa de meu Pai por um rebanho de paixões, quero rezar sempre com tua Igreja, ut mentes nostras ad caelestia desideria erigas [que ergueis os nossos espíritos a desejar as coisas celestiais].
07 DE
AGOSTO
Sola
caelestia desiderare [desejar somente as coisas do Céu]
É o que a
Igreja pede para nós, neste dia de São Caetano, o santo da Providência: que
confiemos em Deus, para o desejarmos, porque é a nossa riqueza infinita.
Confiássemos mais na bondade do Pai que está nos céus, e o mundo não teria
tanta força de atração sobre nós. Confiássemos mais na Providência, e o pó da
terra não representaria tanto para o nosso apego.
Para São
Bernardo essa atração do mundo sobre nós, era um verdadeiro mistério: O
ambitio, ambientium crux! Quomodo omnes torquens, omnibus places? [ó
ambição, cruz do mundo, se atormentas a todos, como podes a todos agradar?].
O apego ao mundo é um verdadeiro suplício, ao qual infelizmente nos sujeitamos.
E São Jerônimo, já em seu tempo, viu o que hoje também vemos: ignominia
sacerdotum est propriis studere divitiis [a ignomínia dos
sacerdotes é buscar enriquecer-se]. Ignomínia sim, porque o interesse
exagerado pela riqueza, mata o zelo sacerdotal; a preocupação pelo bem estar e
conforto falsifica a vocação, escravizando o padre.
E os bens
do mundo, nas mãos daquele que é o distribuidor dos bens eternos, escandalizam
os fiéis que perdem toda estima ao sacerdote, porque vêem nele, não o Homo
Dei [homem de Deus], mas o homem dos próprios interesses. Saturitas
divitis non sinit eum dormire [a abundância do rico não o permite
dormir (Ecl 5,11)]. Se o não deixa dormir, muitos menos o deixará
sacrificar-se para Deus e para as almas.
08 DE
AGOSTO
Vivit vero
in me Christus [é Cristo que vive em mim (Gl 2,20)]
'São Paulo
estabelece o seguinte preceito, como princípio fundamental da perfeição cristã:
Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo! (Rm 13,14). Este preceito, se vale para
todos os cristãos, de modo particular vale para os sacerdotes.
Mas,
revestir-se de Cristo, não é somente inspirar os próprios pensamentos na sua
doutrina, mas entrar numa nova vida, a qual, para brilhar com os esplendores do
Tabor, deve conformar-se com os sofrimentos de nosso Salvador no Calvário. Isto
implica um longo e árduo trabalho, que transforme a alma no estado de vítima,
para que participe intimamente do sacrifício de Cristo.
Este
trabalho, difícil e contínuo, não se realiza com veleidade, nem se consuma com
desejos e promessas; pelo contrário, deve ser um exercício corajoso e contínuo
que leve à renovação do espírito; deve ser exercício de piedade que tudo refira
à glória de Deus; deve ser exercício de penitência que refreie e governe os
movimentos da natureza; deve ser ato de caridade que inflame o ânimo de amor a
Deus e ao próximo, e estimule as práticas de caridade. Seja, enfim, uma vontade
de luta e de fadiga, para fazer todo bem possível' (Pio XII).
09 DE
AGOSTO
Hoc enim
sentite in vobis... [(tende) em vós este mesmo
sentimento... (tal como o teve Jesus) ]
'É bem
verdade que Jesus é sacerdote; não o é, porém, para si, mas para nós,
apresentando ao Pai os votos e sentimentos religiosos de toda a humanidade; e
Ele é também vítima, por nós, substituindo-se ao homem pecador.
A palavra
do Apóstolo - 'Tende em vós os sentimentos de Jesus Cristo'- exige de todo
cristão que reproduza em si, quanto está nas possibilidades humanas, o mesmo estado
de alma que tinha o Divino Redentor, quando realizava o sacrifício de si mesmo;
a humilde submissão do espírito e a adoração, a honra, o louvor e ação de
graças à Majestade suprema de Deus; mais, que reproduza em si mesmo a condição
de vítima, a abnegação segundo os preceitos do Evangelho, o voluntário
exercício da penitência, a dor e expiação dos próprios pecados; numa palavra
que todos morramos espiritualmente com Cristo na cruz, de modo a dizer com São
Paulo: Christo confixus sum cruci [estou pregado à Cruz de
Cristo (Gl 2,19)].
Só depois
que nos tornarmos uma só coisa com Cristo, pela sua e nossa oração e
fortalecidos pela virtude do Salvador, poderemos com segurança descer da
montanha da santidade que houvermos galgado, para levarmos a todos os homens a
vida e a luz de Deus pelo ministério sacerdotal' (Pio XII).
10 DE
AGOSTO
Si oculus
tuus scandalisat te [se o teu olho te escandaliza (Mt 18,9)]
Se o teu pé,
a tua mão ou o teu olho estão prejudicando a tua alma, como ocasião de pecado,
arranca-os simplesmente — assim falou Nosso Senhor. E não poderia ter sido mais
claro, nem mais rigoroso. Com isso Ele me diz que, em se tratando de livrar a
minha alma do pecado, extrema sunt tentanda [recorra a
meios extremos].
Na oração
deste dia, a Igreja me faz pedir a Deus: Vitiorum nostrorum flammas
extinguere [(para) apagar as chamas dos nossos vícios].
Portanto, a própria Igreja não esconde a sua preocupação por esse incêndio de
más inclinações que ela sabe existir em mim. E a experiência me diz que eu
preciso viver preocupado com as minhas fraquezas; não será com um simples conta
gotas de boa vontade que irei apagar incêndios.
E, ao
redor, a situação não é das mais risonhas. Omne quod est in mundo,
concupiscentia carnis est [tudo que há no mundo é concupiscência da
carne]. Com meias medidas, não poderei defender a minha alma. Se o Reino de
Deus sofre violências, tenho que me sujeitar a isso, para não o perder. Sempre
será melhor, quam duas manus, vel duo pedes habentem, mitti in ignem
aeternum... [do que, tendo dois pés e duas mãos, ser lançado no
fogo eterno...]. Preciso agradecer a Nosso Senhor a franqueza com que me
falou a esse respeito, para despertar a minha indiferença.
11 DE
AGOSTO
Anathema
esse a Christo [estar separado de Cristo (Rm 9,3)]
Um desejo
absurdo — dizemos nós. Mas, em seu zelo, o Apóstolo chegou a pensar nisso.
Teria aceito a condenação — se possível — para que fossem salvos os seus irmãos
judeus. Ao lado de tanta generosidade, como nos sentimos pequenos na nossa
mesquinhez!
É que costumamos medir o nosso esforço e zelo pela covardia e comodismo. Enquanto Nosso Senhor dá o seu Sangue pelas almas, nós achamos bastante oferecer uma parte apenas do nosso tempo ou de nossas forças. Um meio, não muito raro, de se fugir ao trabalho direto pelas almas, restringindo bastante o nosso zelo, são os cargos e posições. Quando alguém os deseja, poderá dizer que o faz por espírito de sacrifício? Não haverá nisso, um pouco ou muito, de vaidade e comodismo?
Há cargos
na Diocese; há cargos na Congregação; e há também os cargos oficiais. Muita
coragem, e não pouca generosidade, para os aceitar, quando a obediência os
impuser. Mas, para não os procurar, é necessária uma coragem toda especial — a
coragem da humildade. Milites Christi Jesu [como soldados
de Cristo], não podemos fugir à luta. Nem nos fica bem vestir a covardia
com aparências de zelo. Comodismo e vaidade foram sempre péssimos conselheiros.
12 DE
AGOSTO
Omnes quae
sua sunt quaerunt [todos, com efeito, buscam os próprios interesses (Fl
2,21)]
A nossa
vida sacerdotal é, toda ela, uma preocupação divina. Omnium divinorum
divinissimum est cooperari Deo in salutem animarum [dentre todas as
coisas divinas, a mais divina é cooperar com Deus pela salvação das almas].
Neste
mundo, em que todos procuram os próprios interesses, o sacerdote é o homem
diferente, porque se preocupa apenas com os interesses de Nosso Senhor nas
almas. Num mundo, vítima de ambições e egoísmos, compreendemos que cada qual
procure a si mesmo. O sacerdote, porém, existe para as almas. Ele é o
Procurador de Deus, que não pensa em si mesmo, porque deve preocupar-se
exclusivamente dos interesses de Nosso Senhor.
Se outras
preocupações entrarem em nossa vida, não poderemos servir a dois senhores ao mesmo
tempo. Acontece então, que o padre, não podendo passar meia hora no
confessionário, nem fazer uma simples prática para o povo, aceita os maiores
sacrifícios: viagens, aborrecimentos, lutas políticas, preocupações sem conta —
por causa de outros interesses. Com isso, Nosso Senhor e as almas ficam
esquecidos, porque para eles não sobra tempo. Que não seja para nós aquela
palavra de Santo Ambrósio: quam rarus qui possit dicere: Portio mea
Dominus — verus minister altaris, non sibi natus! [quão raros são os
que podem dizer: sou todo do Senhor — verdadeiro ministro dos
altares, e não filho da minha vontade!].
13 DE
AGOSTO
Multi
discipulorum abierunt retro [muitos dos seus discípulos se
retiraram (Jo 6,67)]
Bastou que
não entendessem algumas palavras do Mestre e o abandonaram. A Verdade era
apenas o que eles já sabiam; mais não lhes interessava et iam non cum
illo ambulabant [e já com Ele não mais andavam].
Meu Deus, eu
também pertenço a essa classe de discípulos. O meu orgulho me faz pensar que eu
já não tenho o que aprender, nem nos livros, nem no exemplo de outros. Quero um
Mestre que me fale apenas; mas que não me ensine, para não magoar o meu
orgulho. Que ele me explique e me dê satisfação de tudo; que me ofereça, mas
não me imponha uma doutrina. Um Mestre que não me fale de coisas muito altas e
sublimes, porque eu só me interesso pelas coisas deste mundo.
É por isso que meu egoísmo fica todo magoado, se me falas da caridade que tudo esquece e perdoa. Meu orgulho se ofende se me falas de humilhações. E meu comodismo grita, quando me ensinas a renúncia, a sacrifício e a imolação. Meu Deus, eu sei que a tua palavra guarda a vida eterna; quero segui-la, ainda que meu amor próprio se apavore e se melindre a minha covardia. Se me parecem duras as tuas palavras, há uma que me atrai e anima: jugum meum suave est [o meu jugo é suave (Mt 11, 30)].
14 DE
AGOSTO
Durus est
hic sermo [esta palavra é dura (Jo 6,61)]
Nosso
Senhor conhecia muito bem os meus ouvintes: sciebat enim ab initio
Jesus qui essent non credentes [pois, desde o princípio, Jesus
sabia quais os que não iriam crer (Jo, 6, 65)]. Percebeu que muitos o
iriam abandonar, como de fato o abandonaram, porque a sua doutrina lhes parecia
dura demais; queriam idéias novas, mas cômodos e agradáveis. Nem por isso o
Mestre se comoveu, mudando o que ensinava e o modo de ensinar.
Sabemos
como a Verdade, muitas vezes, é dura e desagradável. E se nos é difícil ouvi-la,
não nos é tão fácil dizê-la. Às vezes, gostaríamos que ela fosse menos pesada,
para nós e para os outros. Dura, porém, e desagradável, não a podemos diminuir
ou modificar. Temos que apresentá-la com a sua cor própria, embora suaviter
in modo [com suavidade nos modos], mas não a vestindo de uma
roupagem que não lhe fica bem.
Não somos donos da Verdade, para que a possamos apresentar atenuada e até falsificada. No púlpito, ou no confessionário, o que devemos dar às almas é uma espécie de verdade ou uma simples imitação, mas a verdade, tal qual Nosso Senhor a daria. Caridade e prudência no apresentá-la com lealdade e firmeza. As almas querem ver Nosso Senhor na Verdade que lhes apresentamos.
15 DE
AGOSTO
Assumpta
est Maria in Caelum! [Maria é levada ao Céu!]
Assim canta
a Igreja hoje, num êxtase de alegria. E essa Assunção gloriosa de Nossa Senhora
me faz pensar numa outra assunção, cheia de mistérios, que Deus realiza, todos
os dias, em minha vida. Diariamente eu subo no altar de Deus: Introibo
ad altare Dei [Entrarei no altar de Deus (Sl 42,4)] — e
vou até as alturas da sua glória, cum angelis et archangelis [com
os anjos e os arcanjos], para lhe cantar, com todos os que lhe
cantam, sine fine dicentes: Sanctus, Sanctus... [repetindo
sem fim: Santo, Santo...].
Pouco
depois, mais do que nunca, sou um Outro Cristo dizendo: Hoc est Corpus
meum [isto é o Meu Corpo] — no mesmo instante se
fazem presentes, sobre o altar, o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor. Seguem-se
uns momentos de eternidade, cum Ipso et in Ipso [(por
Cristo), com Ele e nEle], até que na Comunhão eu o recebo, e Ele me
recebe também. É o início de uma união eterna entre nós dois, porque qui
manducat meam carnem habet vitam aeternam [quem come a minha carne
tem a vida eterna (Jo 6,54)].
Que eu
saiba viver, todos os dias, essa meia hora de assunção que é a minha Missa.
Que, ao me retirar do altar de Deus, possa eu levá-lo comigo, para subirmos
juntos um outro altar, à minha espera no meu dia de trabalho. Assim a minha
vida será essa Elevação, a que a Igreja me convida: Sursum corda! [Corações
ao alto!].
16 DE
AGOSTO
Si quis
vult... [se quiser seguir... (Mc 8,34)]
Estranhamos
esse modo de falar: se alguém me quiser seguir... Parece haver nessa palavra
uma certa indiferença, inexplicável nAquele que tudo fez para salvar a todos.
No entanto, é assim mesmo. Nosso Senhor não obriga ninguém. Ele não arrasta,
nem força a nossa vontade; pelo contrário, Ele a respeita sempre.
Por isso, é
mesmo 'se alguém quiser'. Ele quer uma vontade livre, um coração generoso e
pronto. A condição não é fácil: negue-se a si próprio, tome a sua cruz. Mas, se
alguém quiser seguir a esse Mestre, o caminho não poderá ser outro. Por menos —
disse alguém — não se faz, de um filho do pecado, um filho de Deus.
Senhor, eu
te agradeço, porque não me quiseste enganar; bendigo a lealdade que tiveste
comigo. A tua palavra, clara e sincera, não me mostra um paraíso antecipado,
mas a renúncia e a cruz. Só tenho que agradecer a tua bondade que me avisou e a
tua mão que não me ocultou as pedras que enchem o teu caminho. Quando me
chamaste, eu sabia que íamos para o Calvário e, por isso, não tenho do que me
queixar. Aquele moço rico que não te quis seguir, não te ofendeu tanto como
aquele teu apóstolo que te seguiu de má vontade, porque te queria entregar.
Sim, antes não te seguir, que seguir-te para te trair...
17 DE
AGOSTO
Domine,
aperi nobis! [Senhor, abre-nos! (a porta) (Mt 25,11)]
Assim
gritaram as virgens imprudentes, colhidas de surpresa. E a resposta foi: Nescio
vos [Não vos conheço!]. Não se tratava de um simples descuido,
em noite de festa. Aquelas virgines fatuae [virgens
tolas (imprudentes)] foram realmente culpadas de uma desatenção
bastante leviana.
Não sendo
crianças, podiam saber que era imprudente e arriscado deixar a obrigação para a
última hora. A paciência de Deus é infinita. Mas ela me espera somente até a
hora da morte. Depois, será tarde para reclamações e remorsos, que nada poderão
alcançar. Às virgens imprudentes não faltou tempo, nem faltaram meios, para que
elas evitassem aquela surpresa. O que faltou, porém, foi prudência.
Nada
igualmente me falta, para que minha vida seja uma preparação, que me ponha a
salvo de qualquer surpresa, no último dia. Mas, se me faltar a prudência que me
faça preparar agora a minha eternidade... a tristeza e o pecado poderão
desfigurar tanto a minha alma que, ao vê-la, tenha Nosso Senhor que dizer: Nescio
vos [Não vos conheço!]. E Ele me conhece desde toda a
eternidade porque me colocou na sua casa. Mais do que ninguém, Ele deseja que o
último dia não me traga surpresas; por isso é que me avisa: Vigilate...
nescitis diem neque horam [Vigiai... não sabeis nem o dia nem a
hora].
18 DE
AGOSTO
Docens
quotidie in templo [ensinava no templo todos os dias (Lc 19,47)]
É certo
que, pela palavra, o padre não poderá estar pregando, todos os dias, na igreja.
Mas poderá fazê-lo, e muito bem, pelo bom exemplo. Diante de Nosso Senhor, diz
o Evangelista, omnis populus suspensus erat, audiens illum [todo
o povo ficava admirado ao ouvi-lo].
A sua
palavra não era como a dos fariseus, que ensinavam, mas não praticavam. E o
povo não quer somente a pregação da palavra; quer, principalmente, a pregação
do exemplo, porque aquilo que se vê sempre impressiona mais do que aquilo que
se ouve. Uma pregação, de muito efeito, será o padre saber estar na
igreja.
Procure pôr
o máximo respeito na administração dos sacramentos; tenha sempre todo cuidado
em não falar alto, sem motivo; a máxima piedade, ao estar ou passar diante do
Santíssimo; conserve o maior recolhimento ao rezar; enfim, mostre-se
compenetrado de que a igreja não é apenas um lugar onde se pode estar, mas é a
própria casa de Nosso Senhor. Que sermão eloquente não seria esse! Um verdadeiro
espetáculo de fé, calando profundamente em todos os presentes. Se o padre
souber ser, na igreja, essa pregação viva, omnis populus suspensus
erit, videns illum [todo o povo ficaria admirado ao vê-lo].
19 DE
AGOSTO
Deus est
ordo [Deus é ordem]
A vida do
meu Mestre e Modelo foi uma ordem perfeita, absoluta. E nem podia ter sido de
outra forma. E a minha vida? Posso dizer que esteja de acordo com o Modelo que
escolhi? A princípio, ela estaria mais ou menos em ordem. Mas depois... à custa
de ver desordens ao meu redor, fui me acostumando com certas coisas que, antes,
meu fervor não teria aprovado.
Pode ser
que hoje a minha alma não esteja sendo objeto daquele cuidado e vigilância dos
primeiros anos. O mundo talvez esteja, para mim, um pouco acima de Deus. E pode
ser que os interesses das almas não estejam em primeiro lugar nas minhas
preocupações. Preciso examinar se, com o tempo, a desordem não penetrou na
minha vida.
E para
reformá-la, tenho que começar pelo meu interior: conhecer-me; dominar-me; pôr,
no devido lugar, os meus sentimentos, idéias e afeições. Depois, tenho que
cuidar da ordem na minha vida exterior: zelo, trabalhos, atividade. Numa casa,
a boa ordem exige um cuidado de todos os dias. É, por isso, que não posso
descuidar o meu exame diário de consciência. Ele me irá mostrar sempre as
desordens que forem penetrando na minha vida.
20 DE
AGOSTO
Aquae et
vini mysterium [mistério da água e do vinho]
Sim, quanto
mistério nessa gotinha d’água, misturada ao vinho da Consagração! É o mistério
da minha vida. Deus quer que a minha miséria humana coopere em sua glória
divina; e isso per Ipsum, et cum Ipso [por Ele e com Ele],
porque, sem Ele, eu seria muito menos que a insignificância de uma gotinha
d’água. Mas, com Ele, posso chegar até Deus.
Revestido
com os méritos de Nosso Senhor, eles me envolvem como o vinho envolve a água;
posso então apresentar-me diante do Pai e Ele me recebe, reconhecendo-me como
seu filho e dando valor às minhas orações, aos meus trabalhos e sacrifícios.
Embora eu nada seja, por mim, posso pensar, por Ele, na minha grandeza e
dignidade; a minha miséria, apoiada em Cristo, eleva-se até a presença de Deus.
É assim que
eu chego a chamar a Deus com o nome de Pai já que, em seu Filho divino, Ele me
recebeu como filho adotivo. E sou um membro dessa Família divina: Deus Pai, ao
qual estão unidos in Christo Jesu [em Jesus Cristo], os
filhos adotivos, per Spiritum Sanctum qui datus est nobis [pelo
Espírito Santo, que nos foi dado]. Essa é a minha grandeza, tão
desconhecida e ignorada; grandeza que eu preciso viver para poder sentir.
21 DE
AGOSTO
Quae sua
sunt quaerunt [ buscam os próprios interesses (Fl 2,21)]
São Paulo
já se queixava daqueles que não se interessam por Nosso Senhor. E que tristeza,
quando isso acontece com aqueles que um dia prometeram: Dominus pars
haereditatis meae! [O Senhor é a parte da minha herança!].
'Nós vos
exortamos, com todo empenho a que, estreitamente unidos ao Redentor, vos
esforceis com toda solicitude, pela salvação daqueles que a Divina Providência
confiou aos vossos cuidados, à imitação dos santos que, em tempos passados,
demonstraram com suas obras grandiosas o quanto pode a graça divina.
Que todos e
cada um, com humildade e sinceridade, possais sempre atribuir-vos — que o digam
vossos fiéis — a expressão do Apóstolo: De bom grado darei o que é meu e me
darei a mim mesmo, pelas vossas almas. Iluminai os espíritos, dirigi as consciências,
confortai e sustentai as almas que se debatem na dúvida e gemem na dor. A esta
forma de apostolado, acrescentai também todas as demais que as necessidades do
tempo exigem. Que em tudo, porém, fique patente, que o sacerdote, em todas as
suas atividades, nada mais procure senão o bem das almas e a nada mais vise
senão a Cristo, a quem deve consagrar todas as suas forças e a si mesmo
inteiramente' (Pio XII).
22 DE AGOSTO
In spiritu
humilitatis... [com espírito de humildade...]
Humilhado e
arrependido, à lembrança das minhas faltas — é assim que, todos os dias, eu me
apresento diante de Deus, no altar. E é assim que eu devo passar os meus dias;
na penitência e contrição, quia peccavi nimis in vita mea [porque
pequei muitas vezes em minha vida].
Isto quer dizer que Deus já me perdoou demais. E poderei dizer que já deixei de pecar? Tenho que me lembrar sempre disto, para não pensar que minha vida está sendo uma perfeição de fidelidade à graça e de fervor. Só Deus pode avaliar as dimensões da minha culpa: delicta mea te non latent [minhas faltas não vos são escondidas]. Se até aqui muita coisa esteve errada em minha vida, não posso garantir que, de agora em diante, nenhuma falta irá aumentar o peso da minha culpa.
Spiritus quidem promptus est [O espírito na verdade está pronto] — boa vontade não me falta, mas eu sei que a minha fraqueza é grande. Por ter recebido tanto, minhas infidelidades à graça estão marcadas por uma malícia especial. Não posso dizer que já me arrependi bastante. Todos os dias, tenho diante de meus olhos, tanta coisa que eu devo fazer. E não me lembro daquela palavra de Nosso Senhor: poenitentiam age! [arrepende-te!]. Sim, isso também eu preciso fazer; e principalmente isso.
23 DE AGOSTO
Lux sum
mundi [sou a Luz do mundo (Jo 9,5)]
Dizendo
isto, Nosso Senhor curou aquele cego de nascimento. E os fariseus, despeitados,
fizeram tudo para negar o milagre. Mais cegos que o pobre cego, não queriam
aceitar a Luz do mundo, simplesmente porque ela os incomodava.
Quantas
vezes um exame de consciência me poderia mostrar esta ou aquela falta!... mas
eu prefiro não molestar minha consciência. A meditação poderia abrir meus olhos
para verem certos defeitos; mas eu acho mais cômodo não ver, nem me preocupar.
Um momento de calma e reflexão poderia me alertar a respeito de certos costumes
e ideias que vou adquirindo; mas eu não me resolvo a sair da minha dissipação.
Não é
somente o despeito e a inveja farisaica que podem cegar uma alma. O orgulho
também: non serviam! [não servirei!]. A impureza
também: impudicitia mater est impoenitentiae [a impudicícia
é a mãe da impenitência]. E o apego também: qui non renuntiat
omnibus, non potest meus esse discipulus [quem não renuncia a tudo,
não pode ser meu discípulo (Lc 14,33)]. Para que eu não venha a sofrer
dessa triste cegueira, tenho que expor a minha alma à luz da graça e essa luz
está no recolhimento e na oração. Preciso ser mais fiel à meditação de todos os
dias. Preciso enfrentar com mais coragem o exame de consciência: ejice
primum trabem de oculo tuo! [tira primeiro a trave do teu olho! (Mt
7, 5)].
24 DE
AGOSTO
Quae
superaverunt fragmenta [os pedaços que sobraram (Jo
6,12)]
Naquele
dia, no deserto, Ele alimentou a mais de cinco mil pessoas. E não se descuidou
das migalhas de pão, espalhadas pela relva. Mandou que as recolhessem, porque
eram lembranças do seu milagre, migalhas do seu amor.
A grandeza
infinita de Deus nunca desprezou as coisas pequenas. E, para realizar a
Redenção, Ele quis usar daquilo que, aos olhos do homem, é humilde e
desprezível. Um estábulo foi o berço do Redentor. Seu primeiro milagre público,
Ele o realizou com umas vasilhas de água, numa casa de família humilde. Seus
Apóstolos, uns pescadores ignorantes. Suas escolas, a beira dos lagos e as
estradas poeirentas. E, para finalizar a Redenção, usou de dois pedaços de
madeira, em forma de cruz. Ele foi simples em tudo.
Preciso me
convencer de que uma jaculatória ou um pequeno sacrifício com Deus realizam
muito mais pelas almas que todo o aparato que eu possa aprontar com a minha
vaidade. A salvação das almas é assunto de que o mundo não entende; porque,
então, irei consultar o seu espírito de vaidade e exibição? Sem a graça, todos
os meios de apostolado são falhas: sine me nihil potestis facere [sem
mim nada podeis fazer].
25 DE
AGOSTO
Ipse nihil
respondit [Ele nada respondeu (Lc 23,9)]
Aos pobres
e aos humildes, Nosso Senhor nunca negou a sua palavra divina. A Herodes,
porém, Ele nada quis dizer, porque estava diante do orgulho e da leviandade.
Embora provocado com multis sermonibus [muitas perguntas],
o Mestre se calou.
Senhor, que
eu te saiba ouvir e compreender no teu Evangelho, como na tua Igreja e no
exemplo de teus santos. Que eu te deseje com a sinceridade das crianças que te
procuravam. E que a minha indiferença, fria e desinteressada, não mate a
semente da tua palavra, que deve produzir, em minha vida, frutos de vida
eterna.
Quero
receber o teu reino com a humildade dos simples e com a inocência das crianças,
ouvindo-te na voz da minha consciência. Ela me fala tantas vezes e não se cansa
de me chamar a atenção. Que meu orgulho não me ponha diante de Ti como um
Herodes, fútil e leviano, digno tão somente do teu silêncio que já é uma
condenação. A mentira que vive em mim, não se sente bem diante da tua palavra
que me traz a Verdade eterna. Mas eu a preciso ouvir, pois, estaria perdido no
dia em que minha consciência não me falasse mais. Para mim, seria esse o
silêncio do teu desprezo e condenação.
26 DE
AGOSTO
Pater
orphanorum [Pai dos órfãos (Sl 68,6)]
O salmista
não deixou de admirar a carinhosa solicitude dAquele que, sendo o Pater
orphanorum, domum parat derelictis, et educit captivos ad prosperitatem [Pai
dos órfãos, prepara um lar para os abandonados e traz os cativos à segurança].
E só a Encarnação do Verbo bastaria para nos mostrar como Deus sabe descer da
sua grandeza, para chegar até a nossa miséria.
Se Deus me
elevou acima dos fiéis não foi para que eu me conservasse mais alto pelo
orgulho, mas pela humildade. Não será porque estudei um pouco mais que irei
desprezar aqueles que estudaram menos. Não será porque fiz este ou aquele curso
superior que irei adotar sempre ares de superior. Não será porque me diplomei
nesta ou naquela faculdade que irei me interessar apenas por um grupo de almas
privilegiadas.
Embora minha atividade possa ser limitada a este ou a aquele grupo, meu zelo não deve conhecer limites nem restrições. Sou de todos e para todos. Se não posso evitar os mais cultos e letrados, também não posso ignorar os mais pobres e ignorantes. Para todos, eu não preciso ser o sábio, nem o mestre, nem o doutor da lei; que eu seja simplesmente o sacerdote de Nosso Senhor. Se eu for o Homo Dei [homem de Deus], cheio do sobrenatural, serei tudo para todos, sem fazer exceções. Nosso Senhor não as fez.
27 DE
AGOSTO
Diliges
Dominum Deum tuum [amarás o Senhor, teu Deus (Dt
6,5)]
Ele é o
Amor eterno e infinito: Deus caritas est [Deus é amor].
E Ele me amou desde toda a eternidade prior dilexit nos [nos
amou primeiro (I Jo 4,19)]. Mesmo assim, Ele teve que me dar um
mandamento, lembrando-me a obrigação que tenho de o amar.
Qual o pai que precisa exigir o amor de seus filhos? Mas Ele não quer um amor forçado. Se eu o amasse, somente porque Ele o quer e manda, eu não o estaria amando como devo. O meu amor deve ser alguma coisa de muito grande e sublime, para que Deus o queira tanto, sem restrições. Parece que Ele não se sente feliz se eu o não amar. Tanto questão Ele faz do meu amor que me deu uma ordem expressa nesse sentido: Ele não quer ser esquecido por mim.
Devo
amá-lo, no entanto, como a criança que ama ao seu Pai: com toda naturalidade e
candura. Ao mandar que eu o amasse, Deus não me quis submeter a nenhum
suplício. Amar o Pai que está nos céus não deve ser coisa difícil e complicada,
como dizem certos livros. Não posso fazer, do meu amor a Deus uma matemática de
cálculos, pesos e medidas. A criança não pensa nem estuda para amar. E o faz
tão bem! Quisquis non receperit regnum Dei velut parvulus, non intrabit
in illud [qualquer um que não receber o Reino de Deus como uma
criança [com a naturalidade de uma criança], não entrará nele (Mc
10,15)].
28 DE
AGOSTO
Ex omni
genere piscium [peixes de todas as espécies (Mt 13,47)]
Inteiramente
dominado pelo erro, aquele filósofo de Hipona entregou-se à Verdade, no dia em
que encontrou a virtude e a ciência compendiadas em Santo Ambrósio. Porque não
conheço o trabalho de Deus, nas almas, eu as não posso julgar.
Aqueles que hoje me parecem pecadores, amanhã poderão conhecer a Deus e talvez cheguem a amá-lo mais do que eu. E talvez cheguem a servir à Verdade com mais dedicação do que eu mesmo, que fui chamado às primeiras horas para a vinha do Senhor. O erro de outros e a ignorância alheia não pedem o meu desprezo, mas o meu interesse e compreensão.
Se eles ainda não se achegaram a Deus, não terá sido por culpa minha? Poderei dizer que fui para eles a ciência e a virtude que os poderia iluminar? Tenho que me preocupar mais com aqueles que não conhecem a Verdade, dando-lhes, ao menos, minhas orações e sacrifícios ut facerem salvos [de modo que sejam salvos]. O Bom Pastor procura as suas ovelhas, sem esperar que elas o procurem. É com Ele que eu devo sair; com a ciência e virtude que Ele me ensinou. Tanto zelo devo ter para não deixar no erro aqueles que poderiam estar mais perto da Verdade compelle intrare [no empenho de (os fazer) entrar (Lc 14, 23)].
29 DE AGOSTO
Quo
abeam?... [aonde irei?... (Sl 138,7)]
Deus está
em toda parte e em toda parte eu tenho que contar com a sua presença. Ele não
está somente na igreja, à hora da minha meditação ou da Santa Missa. Ele não é
Senhor apenas desse grupo de almas que eu conheço e pelas quais eu trabalho.
O seu reino certamente não se restringe somente às minhas obras de apostolado. Ele está em todas as horas do meu dia, como também no trabalho que outros realizam. E Ele está principalmente em mim mesmo. Se eu não me compenetrar disso, não o verei em parte alguma e não serei o homem religione plenum [religioso por inteiro] que as almas querem ver em mim.
Como
poderão as almas ver Deus na minha palavra e no meu exemplo, se eu não o vejo,
se não sei viver com Ele? Não será de um turíbulo vazio que as almas irão
receber o bonus odor Christi [o bom odor de Cristo].
Elas querem ver em mim uma fé ardente, um profundo espírito de oração, uma
caridade sem limites, para poderem dizer que Deus vive em mim e eu nEle.
Falando de si mesmo, disse Nosso Senhor: qui videt me, videt et Patrem [quem
me viu, viu também o Pai (Jo 14,9)]. Se eu também pudesse falar assim!
E não é a esse ponto que eu devo chegar?
30 DE
AGOSTO
Imitatores
mei estote [sejais os meus imitadores (1Cor 4,16)]
'Lembre-se
o sacerdote que o seu ministério será tanto mais fecundo quanto mais
estreitamente estiver ele unido a Cristo. Quando for assim inspirado e
organizado o apostolado, não poderá deixar de suceder que o sacerdote atraía a
si, com força quase divina, o espírito de todos.
Reproduzindo
nos seus costumes e na sua vida como que uma imagem viva de Cristo, todos
aqueles que o buscam, como a um mestre, reconhecerão, movidos por íntima
persuasão, que ele não pronuncia palavras suas, mas palavras de Deus. Se alguém
fala, sejam palavras de Deus; se alguém exerce o ministério, seja conforme à
força que Deus der (1Pd 4,11).
No tender à
santidade e no desempenhar-se, com suma diligência, do seu ministério, deve o
sacerdote esforçar-se por representar Cristo tão perfeitamente que possa, com
toda modéstia, repetir a palavra do Apóstolo das gentes: 'sede meus imitadores
como eu também o sou de Cristo'. A sua atividade não se reduzirá, então, a um
movimento ou agitação puramente naturais que afadiguem o corpo e o espírito,
expondo o sacerdote a extravios ruidosos para si mesmo e para a Igreja' (Pio
XII).
31 DE
AGOSTO
Vidua
pauper [uma pobre viúva (Mc 12,42)]
Senhor, mil
vezes bendita seja a tua sabedoria, que me apontou, numa pobre viúva, uma
admirável mestra de humildade. Sem alarde foi que ela se dirigiu ao templo e
ali deixou uma oferta insignificante aos olhos de todos. Mas os teus olhos
viram a grandeza daquela pequena esmola.
Aceito a
lição de humildade que ela me dá e não posso recusar o consolo que esta lição
me oferece. É certo que meu orgulho gostaria de se apresentar aos olhos de
todos, com arroubos de eloquência ou com volumes de sabedoria ou com uma folha
imensa de realizações. Mas, como a saúde, as qualidades ou o templo não me
ajudam nisso; preciso me apresentar diante de Ti, sem que ninguém me veja, com
a insignificância da minha oferta.
Consolo-me,
porém, pensando que, aos teus olhos, a minha miséria vale muito e a minha
oferta é muito grande. Eu sei, e Tu sabes também, quanto me custa renunciar aos
desejos e aspirações do meu orgulho. Eu sei, e Tu sabes, quanto me dói o
sacrifício da minha liberdade e independência. Não ignoras que estou dando o
que me faz falta e que eu gostaria de me reservar. Quando a minha vaidade
quiser expor, aos olhos do mundo, alguma coisa que eu tenha feito por teu amor,
faze que o meu orgulho esbarre com essa minha mestra de humildade! Que, ao seu
exemplo, eu não me preocupe com outra coisa a não ser com a tua admiração e com
o teu amor!
SETEMBRO
10 DE
SETEMBRO
Nunquam
minus solus, quam cum solus [nunca (se está) menos só do que
quando (se está) só]
Assim
escreveu um homem de extraordinária atividade, como foi São Bernardo. Em meio a
todas as suas preocupações exteriores, ele soube ser sempre o monge, o homem do
silêncio e da união com Deus.
Se hoje,
principalmente, o ministério sacerdotal está exigindo uma atividade contínua,
não é por isso que poderei dispensar o recolhimento e a oração. Justamente por
isso é que eu preciso de uma intensa atividade interior. Não é o silêncio do
pessimismo ou do desânimo que me unirá a Deus, na oração. Pelo contrário, a
desconfiança, a timidez e o temperamento fechado podem me afastar de Nosso
Senhor e das almas, deixando-me a sós, com o meu orgulho, meu ressentimento e
comodismo.
Se minha
vida está cheia de cuidados e preocupações, a minha alma também deverá estar
cheia de vida e atividade. A presença de Deus em mim e a minha vida em Deus não
devem ser o silêncio de uma água estagnada, mas o silêncio de uma raiz, em
contínua atividade para alimentar uma árvore. Esse silêncio ativo de minha alma
unida a Deus deverá alimentar a árvore de toda a minha atividade exterior,
pondo a vida sobrenatural em tudo: ita ut volucres caeli veniant, et
habitent in ramis eius [de modo que os pássaros venham aninhar-se
nos seus ramos (Mt 13,32)].
02 DE
SETEMBRO
Angelica
immo divina dignitas [dignidade (sacerdotal): mais divina que a angélica]
Essa é a
nossa dignidade sacerdotal. Mais do que angélica; de certo modo, divina. Se São
Paulo insistia: videte vocationem vestram [vede vossa
vocação] — referindo-se à vocação batismal, quanto mais não devemos
considerar, ver a nossa dignidade sacerdotal em Nosso Senhor cujo sacerdócio
eterno todos participamos!
Dignum et
congruum est, ut dignitas sacerdotalis prius cognoscatur a nobis, ut deinde
servetur a nobis [É oportuno e adequado que a dignidade sacerdotal seja
primeiro reconhecida por nós, para depois ser por nós resguardada]. Vale
aqui o velho princípio: nihil volitum, nisi praecognitum [nada
pode ser amado sem ser conhecido (ninguém ama o que não conhece)].
Temos que meditar para conhecer, conhecer para amar e amar para viver uma
vocação que nos eleva à semelhança de Nosso Senhor. Aqueles que renunciaram a
própria grandeza, traindo a vocação, certamente chegaram a esse ponto por não
terem considerado bastante a própria dignidade.
Ninguém atira fora uma joia cujo valor conhece. Não meditando a própria grandeza e não reconhecendo a altura em que se foi colocado — super candelabrum [(como luz) sobre o candelabro] — compreende-se que alguém não faça diferença entre ser elevado por Deus ou rebaixado pelos homens. E acaba sub modio [debaixo do alqueire (móvel)] pelo pecado e até pela deserção.
03 DE
SETEMBRO
Quemadmodum
ego feci [como eu fiz (Jo 13,15)]
Atirado à
terra, o grão de trigo deve morrer, para produzir o fruto que dele se espera. O
sacerdote é esse trigo que deve alimentar as almas, com a sua doutrina, seu
exemplo e sua virtude. Para isso, é preciso que ele morra, isto é, que se
entregue a Nosso Senhor dando-se inteiramente às almas.
E, como a
vinha não lhe pertence, mas é de Nosso Senhor, o sacerdote não poderá trabalhar
nessa vinha das almas senão colocando-se inteiramente nas mãos da Santa Igreja.
Quanto fruto amargo já não produziu, na Igreja de Deus, o espírito de
independência! No dia em que o Mestre mandou aos discípulos lançassem as redes,
a pescar, aquela ordem parecia absurda: per totam noctem laborantes,
nihil coepimus [por toda a noite trabalhamos e não apanhamos nada (Lc
5,5)].
Mas Ele queria ser obedecido. E a obediência fez o milagre. Somente as redes lançadas por obediência operam maravilhas. Mandatum accepi a Patre meo [Ordem recebida de meu Pai (Jo 10,18)] — Nosso Senhor realizou a redenção debaixo de ordens, aceitando em tudo a Vontade do Pai. E mesmo quando essa obediência lhe custou um suor de sangue, não deixou de obedecer. Ita et vos faciatis [Assim também façais vós (Jo 13,15)] — é assim que devemos continuar a sua Redenção: per Ipsum et cum Ipso [por Ele e com Ele].
04 DE
SETEMBRO
Quid petis
ab Ecclesia Dei? [o que pedes à Igreja de Deus?]
Foi esta a
primeira palavra que ouvi da Santa Igreja. E eu respondi, dizendo que desejava
receber a Fé. Assim foi que aceitei a luta e o sacrifício, numa guerra contínua
com vetus homo [o homem velho]. Por isso, a última
palavra da Igreja, para mim, será pronunciada sobre o cadáver de um soldado que
cai em pleno campo de batalha: requiescat in pace [descanse
em paz]. Será essa a minha recompensa.
A Igreja
pede para mim o descanso eterno, naquela paz que nada poderá turbar, porque ela
supõe que vivi lutando sempre — qui certat in agone, non coronatur,
nisi legitime certaverit [quem luta não será coroado se não lutar
pelas (regras) legítimas (2Tm 2,5)]. Legitime [(regras) legítimas]:
sem desfalecimento e nem covardias, de acordo com o que Nosso Senhor espera de
mim.
Não posso renunciar a luta, nem fugir ao combate, para não perder a paz eterna que me foi prometida. E nem posso pensar em recompensa, se a minha vida não for uma dedicação contínua e conscienciosa a essa luta que aceitei, quando pedi e aceitei a Fé: certa bonum certamen fidei [lutar pelo bom combate da fé]. Porque eu lutei, porque não me poupei no combate pela Fé, um dia, rezará a Igreja por mim: pie Jesu, dona ei requiem sempiternam! [misericordioso Jesus, concedei-lhe o descanso eterno!].
05 DE
SETEMBRO
Amore
amoris tui [pelo amor do vosso amor]
Era assim
que rezava São Francisco de Assis. E assim eu devo rezar, muitas vezes, porque
tanto o batismo como o sacerdócio exigem que eu morra: consepulti enim
sumus cum Illo, per baptismum, in mortem [fomos, pois, pelo
batismo, sepultados com Ele na sua morte (Rm 6,4)].
Quando o
meu orgulho se revoltar — e isto acontece muitas vezes — quando o meu amor
próprio não quiser ceder, quando a minha vaidade não se conformar, preciso
ressuscitar minha boa intenção: amore tui [pelo vosso amor].
Se eu não fizer a Vontade de Deus, a minha é que não me poderá salvar. Quando o
meu comodismo reclamar, quando a incompreensão surgir no meu caminho, quando me
assaltar o desânimo ou o pessimismo, tenho que voltar ao meu ponto de partida,
lá onde eu comecei a viver com Deus, entregando-lhe tudo in mortem [à morte].
Preciso
compreender que somente essa morte poderá me dar a vida. Vivo tão preso a mim
mesmo, defendendo com todas as forças esse nada que eu sou e não me lembro de
que, um dia, o Mestre já me avisou: qui perdet animam suam propter me
et Evangelium, salvam faciet eam [quem perder a sua vida por
amor de mim e do Evangelho, irá salvá-la (Mc 8,35)]. Embora a minha
natureza nunca chegue a se conformar com essa morte, preciso encher a minha
vida com a morte de Nosso Senhor. Tudo o mais só poderá deixar os meus dias vazios.
06 DE
SETEMBRO
Usque ad
mortem [até a morte (Ap 2,10)]
Meu Deus,
tantas vezes ouvi falar da doçura que o teu amor põe no caminho daqueles que te
seguem! Não duvido, pois me disseste que o teu jugo é suave. Mas, no meu
caminho, que já tem muitos anos de distância, eu só tenho encontrado pedras e
espinhos.
Não quero
reclamar da tua bondade, pois, um bonus miles Christi [bom
soldado de Cristo] não pode viver sonhando com doçuras e consolos. Não me
chamaste para ser mimado em teu serviço, nem para ser um privilegiado em tua
casa. Eu sei que fui chamado para carregar uma cruz. Quero, por isso, o
sacrifício de todos os dias, quero a luta e o trabalho.
Não te peço
que ofereças a minha cruz a outros. Basta que a tua mão não me abandone e eu te
seguirei, muito feliz, pois a minha eternidade há de ser construída com as
pedras que quiseste no meu caminho. Possa eu, todos os dias, ter o consolo de
te entregar um dia cheio, ganho com as mãos ao arado, sem olhar para trás, no
trabalho duro de tua vinha, que tanto é a minha alma como as almas. E, enquanto
a tua cruz me pesa sobre os ombros, que eu não desanime, ouvindo sempre aquela
tua promessa divina: dabo tibi coronam vitae [te darei a
coroa da vida (Ap 2,10)].
07 DE
SETEMBRO
Intra in
cubiculum tuum [entra no teu aposento (quarto) (Mt 6,6)]
Não posso
viver enclausurado em mim mesmo, pensando apenas em me santificar. Não sou
sacerdote para mim, mas para as almas que me foram confiadas. E o trabalho é
tanto! Em toda parte, a todo momento, ele está à minha espera, exigindo todo o
meu tempo e todas as minhas forças.
Mas não
posso esquecer que um trabalho contínuo deve ser uma contínua oração. Se não
for assim, nenhum valor terá toda a atividade com que eu encher os meus dias.
Por isso tenho que estabelecer em minha alma esse cubiculum [aposento],
onde eu viva enclausurado com o meu Deus, em meio a todas as preocupações que
me cercam. Enquanto elas gritam, exigindo minhas atenções, querendo transformar
a minha vida numa agitação desordenada, Deus irá orientar o meu trabalho e dele
receberei a paciência, a coragem e a reta intenção.
Mesmo assim, eu sei que, com o tempo, vão se afrouxando os laços
que me prendem a Deus. Preciso apertá-los, de vez em quando; e a meditação, o
Breviário e a leitura espiritual muito me irão ajudar nesse trabalho. Não
seria, porém, demais, se mensalmente eu pudesse passar um dia menos ocupado com
o trabalho exterior, para estar mais a sós com a minha consciência. Com um
pouco de esforço e boa vontade, isso não será tão difícil. E o resultado
será dos melhores.
08 DE
SETEMBRO
Nativitas
est hodie Sanctae Mariae Virginis [É hoje o Nascimento da
Virgem Santa Maria]
Com quanta
alegria a Igreja canta essas palavras! E contempla Nossa Senhora nos planos
divinos: nondum erant abyssi, et ego jam concepta eram... [ainda
não havia abismo quando foi concebida... (Pv 8, 24)].
A Igreja
também se alegrou, no dia em que nasci para Deus, pelo batismo; e cantou
agradecida, quando me viu nascer para as almas, pelo sacerdócio. O meu batismo
e a minha ordenação: dois dias que eu não posso esquecer, pois resumem os
planos divinos a meu respeito, e significam tudo para mim. Nondum erant
abyssi [Ainda não era abismo] — e Deus já me havia escolhido;
tanto assim que, ao me receber, a Igreja rezou por mim: hunc electum
tuum perpetua virtute custodi... [guardai sob a vossa perpétua
proteção este vosso eleito...].
E se fui
escolhido para a graça, fui também chamado a distribuí-la às almas: Ego
elegi vos [Eu escolhi a vós]. Minha missão continua sendo a
missão que Nossa Senhora realizou: dar o Redentor ao mundo. Para realizar o que
Deus idealizou a meu respeito, não me basta crescer sapientia et aetate [em
sabedoria e em idade]; preciso crescer et gratia [em
graça]. A virtude é que me fará chegar ao ponto que Deus me quer: in
virum perfectum, in mensuram aetatis plenitudinis Christi [ao homem
perfeito, na medida da plenitude de Cristo (Ef 4,13)].
09 DE
SETEMBRO
Laetemur ad
ascensum [regozijemo-nos com a (nossa) elevação]
O dia da
nossa ordenação foi certamente um dia de festa para a nossa alma. Com quanta
saudade não o lembramos! Nada mais natural que cantássemos então, de alegria e
reconhecimento, a Nosso Senhor que nos chamou e acolheu com aquele
inesquecível: jam non dicam vos servos, sed amicos [já não
vos chamo servos, mas amigos].
Subimos, ou melhor, fomos elevados a uma altura que os próprios anjos não podem desejar. Nós mesmos não a chegamos bem a compreender. Mas, nem por isso estamos fora da órbita terrestre. Todos os dias estamos vendo como o mundo continua exercendo sua atração sobre nós. Por isso, timeamus ad lapsum [temamos em cair]. Se o medo e o escrúpulo exagerado são extremos que precisamos fugir, a leviandade e o descuido são um outro extremo, e muito mais lamentável!
A altura é
muito grande para que a queda não seja fatal. Se a nossa dignidade é um
tesouro, o vaso em que a guardamos foi feito de limo terrae [pó
da terra]. E bem sabemos como esse barro é miserável... Para nos
conservarmos na altura em que Deus nos colocou, a graça está exigindo muito
mais do que simples desejos; um trabalho de todos os dias, um esforço contínuo,
é o que devemos dar. Grandis dignitas sacerdotis! [Grande é
a dignidade dos sacerdotes!]. Sed magna eius ruina, si peccet [mas
também grande ruína deles, quando pecam].
10 DE
SETEMBRO
Alius est
qui seminat [um é o que semeia (Jo 4,37)]
'Do mesmo
modo que para vos estimular à santificação pessoal vos exortamos a reproduzir
em vós mesmos a imagem viva de Cristo, assim agora, para a eficácia
santificadora do vosso ministério, vos incitamos a seguir sempre os exemplos do
Redentor.
Ele, repleto do Espírito Santo, ‘andou fazendo o bem, e curando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele’ (At 10,38). Fortificados pelo mesmo Espírito e impelidos por sua força, podereis exercer um ministério que, nutrido pela caridade cristã, será rico de virtude divina. Seja o vosso zelo vivificado por aquela caridade que não se deixa vencer pelas adversidades e a todos os homens abraça, pobres e ricos, amigos e inimigos, fiéis e infiéis.
Esta diuturna fadiga e cotidiana paciência, eis o que de vós reclamam as almas, para salvação das quais nosso Salvador sofreu dores e tormentos, para nos restituir a amizade divina. Este, bem o sabeis, é o maior dos bens. Não vos deixeis prender pelo imoderado desejo de sucesso, nem vos deixeis desanimar, se após assíduo trabalho não recolherdes os frutos desejados, porque alius est qui seminat, et alius est qui metit [um é o que semeia, outro é o que ceifa] (Pio XII).
11 DE
SETEMBRO
Vocavit nos
Deus in sanctificationem [Deus nos chamou para a
santidade (1Ts 4,7)]
Ele teve os
seus planos, quando me chamou, elevando-me às alturas do sacerdócio. E,
resumindo todos os seus desejos, posso dizer que Ele quer de mim apenas uma
coisa: a santificação de minha alma. Se eu não for santo como Ele quer, não
poderei realizar a minha vocação.
Para salvar
as almas, Deus quer o meu trabalho e a minha cooperação. Tenho que trabalhar
com Ele, na sua casa; e, por isso, não me poderei dispensar, ao menos, do
desejo da santidade. É ao lado do Santo dos Santos que eu devo passar a minha
vida. Se Ele não me pede êxtases nem milagres, também não se contenta com uma
virtude medíocre.
Ele quer,
ao menos, uma vontade firme e decidida, que não se acovarde ante as suas
exigências. E a primeira delas é que eu procure a virtude com sinceridade,
pois, o desejo firme e sincero de me santificar é a conditio sine qua
non [condição sem a qual não (é possível)] para eu viver e
trabalhar ao seu lado. Que eu seja sinceramente firme no meu desejo de
progredir sempre. Tanto quanto Ele me elevou em dignidade, preciso elevar-me
também, pela virtude. Somente em uma alma que a deseja sinceramente, com toda
boa vontade, é que a semente da graça poderá germinar para operar maravilhas.
12 DE
SETEMBRO
Ut fructum
afferatis [para que produzais fruto (Jo 15,16)]
Foi Nosso
Senhor que nos escolheu: Ego elegi vos [Eu escolhi a vós].
E foi Ele também quem nos mandou trabalhar, interessado em recolher conosco, o
fruto do nosso esforço: ut eatis et fructum afferatis [para
que vades e produzais fruto]. Portanto, Ele tem os seus planos.
Antes de
tudo, temos que trabalhar a nossa alma, para depois podermos trabalhar nas
almas. Não foi sem motivo que a Igreja insistiu conosco um dia: servate
in moribus vestris castae et sanctae vitae integritatem, quatenus mortificare
membra vestra a vitiis et concupiscentiis procuretis [conservai-vos
em conduta íntegra por uma vida de castidade e santidade, no propósito de
mortificar os vossos corpos de todo vício e concupiscência].
Santificando-nos, estaremos em condições de procurar a santificação de outros.
Para as almas é que fomos constituídos sacerdotes; a elas, em certo modo, devemos a nossa vocação. Como um pai vive para os seus filhos e a eles pertence, assim o sacerdote pertence às almas e por essa paternidade espiritual que lhe toma o tempo, a saúde e as forças. Como Nosso Senhor alimentou as almas com sua palavra e virtude, com seu suor e com sua vida, assim o Alter Christus [outro Cristo] deverá alimentar aqueles que a Providência lhe confiou, imolando por eles a vida no trabalho de cada dia: Ego veni ut vitam habeant, et abundantius habeant [Eu vi para que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10)].
13 DE
SETEMBRO
Ut offerat dona et sacrificia [para oferecer dons e sacrifícios (Hb 5,1)]
O nosso
ministério junto às almas não é apenas um trabalho de direção, pela palavra e
exemplo. É, principalmente, um ministério de salvação, a ser realizado pela
oração e sacrifício. A Lei antiga prescrevia: inter vestibulum et
altare plorabunt sacerdotes, et dicent: Parce, Domine, populo tuo [chorem
os sacerdotes, entre o pórtico e o altar, e digam: 'Tende piedade do vosso
povo, Senhor' (Jl 2,17)].
A salvação das almas deverá estar em nossas orações como uma preocupação, ideia fixa a nos perseguir sempre. Mas, em nossas mãos, está ainda um sacrifício de reparação, cujo valor infinito devemos fazer chegar às almas. Esse valor é das almas e para as almas, porque nessa intenção foi realizado o Sacrifício da cruz, pelo Sumo e eterno Sacerdote.
Sacrifício reparador que, por nosso intermédio, deve subir continuamente à presença de Deus, já que a provocação de nossas culpas é também contínua. Mas, como nos apresentarmos diante da Justiça divina como mediadores, se as nossas culpas forem mais graves e mais pesadas que as dos simples fiéis? Precisamos de muita humildade para rezar, todos os dias. Pro innumerabilibus peccatis et offensionibus meis [por meus inumeráveis pecados e ofensas]. Depois, e somente depois, é que podemos acrescentar: et pro omnibus fidelibus christianis, vivis atque defunctis [e por todos os fieis cristãos, vivos ou falecidos].
14 DE
SETEMBRO
In lege
tua, die ac nocte meditantes [meditando, dia e noite, na
Vossa Lei]
É assim que
a Igreja nos quer. E o resultado dessa união com Deus, mediante a oração, a
Igreja mesma no-lo mostra; vivermos mais intensamente as Verdades da Fé: quod
legerint credant [que creiam no que leem]. Haverá em nossa vida
maior zelo pela santificação das almas: quod docuerint imitentur [que
pratiquem o que ensinam].
Foi Santo
Afonso quem nos asseverou: meditatio et peccatum mortale una simul
consistere non possunt [meditação e pecado mortal não podem
subsistir ao mesmo tempo]. Temos, portanto, que defender, com todas as
forças, a nossa meditação diária. Ela é uma riqueza a que não podemos
renunciar. Sabemos muito bem que, desaparecendo a meditação do programa de
nossa vida, perderemos facilmente todo o fervor. Não há meio termo: ou a vida
de oração ou uma vida de pecados.
Um dia sem
meditação, na vida de um padre, é como um dia sem sol — assim escreveu alguém.
Como iremos dar Deus às almas, pelo nosso trabalho, se antes não o dermos à
nossa alma, pela oração? Uma alma vazia de Deus, não dará o que não tem. Illum
diem vixisse te computa, qui sanctae meditationis habuit lucem [contai
apenas ter vivido aqueles dias em que vossas meditações foram santificadas por
uma luz pura (ou seja, foram feitas com o único propósito de agradar a
Deus) (Santo Eusébio Emisseno)]
15 DE
SETEMBRO
In omnibus
gratias agite [dai graças em todas as circunstâncias (1Ts
5,18)]
Um conselho
do Apóstolo, que eu também preciso por em prática. Quantas vezes o trabalho, os
aborrecimentos e as contrariedades podem provocar o meu mau humor, tornando-me
pesado e até descaridoso para com os outros! Nada mais triste, que um santo
triste.
E se eu devo ser um santo, a serviço de Deus, em minha vida deve haver sempre uma santa alegria de reconhecimento, por tudo o que dEle recebi. Depois da Anunciação, Nossa Senhora cantou de alegria e gratidão, embora pudesse prever todos os sofrimentos que lhe reservava a dignidade que recebera. Deus me quer como a uma criança, que o serve na alegria da inocência e não, na tristeza do pecado.
Essa é a única tristeza que pode estragar a minha vida. Quero encher os meus dias com essa inocência alegre da criança que ama o seu pai e nele confia, porque obedece a ele de boa vontade. Se todos os dias posso estar com Nosso Senhor na meditação e na Santa Missa, se posso trabalhar com Ele e para Ele e se lhe posso oferecer os meus sacrifícios porque Ele os recebe, bendito seja Deus por tudo! Que eu fosse feliz no serviço de Deus — foi o que a Igreja um dia me desejou: ut laetus tibi in Ecclesia tua deserviat de die in diem [para vos servir com alegria na Vossa Igreja dia após dia].
16 DE
SETEMBRO
Et illi
sint mecum [também eles estejam comigo (Jo 17,24)]
Nunca o
Mestre Divino rezou assim, manifestando a sua vontade quase como uma exigência:
Meu Pai, onde eu estiver, quero também comigo aqueles que me deste! Volo [quero]
— por que? — quia tui sunt [porque são vossos] — o
mesmo que se dissesse: porque são meus, eles também te pertencem.
Meditando a
Oração sacerdotal de Nosso Senhor no Cenáculo (Jo 17), podemos fazer uma ideia
do quanto Ele nos quer, do quanto Ele se preocupa com os seus sacerdotes. Daí
também o carinho verdadeiramente maternal com que a Igreja nos olha. No dia em
que ela nos ungiu para o ministério, ela rezou por nós com estas palavras: Pai
onipotente, dai a estes vossos servos o espírito do sacerdócio!
Renovai em
seus corações o espírito de santidade, a fim de que sustentem com honra essa
dignidade que lhes confiais, e seus costumes sejam um modelo para o mundo.
Perguntemos à nossa consciência se estamos correspondendo à preocupação com que
Nosso Senhor rezou por nós. Saberemos corresponder, se conservarmos sempre vivo
esse 'espírito do sacerdócio' que a Igreja quis ver sempre em nossa vida.
17 DE
SETEMBRO
Sicut et
nos dimittimus [assim como nós perdoamos (Mt 6,12)]
'Resplandeça
o vosso zelo de caridade benigna, pois se é necessário — como dever de todos —
combater o erro e rechaçar o vício, o espírito do sacerdote deve estar sempre
aberto à compaixão. É imperioso combater com todas as forças o erro, mas amando
intensamente o irmão que erra e conduzindo-o à salvação.
Quanto bem
não fizeram, quão admiráveis obras não realizaram os santos com a sua
benignidade, mesmo em ambientes pervertidos pela mentira e degradados pelo
vício! Trairia certamente o seu ministério aquele que, para agradar aos homens,
lisonjeasse as suas inclinações malsãs ou se mostrasse indulgente com seu modo
incorreto de pensar e agir, com prejuízo para a doutrina cristã e integridade
dos costumes.
Quando
porém, são observados os ensinamentos do Evangelho e os que erram se mostram
movidos de um sincero desejo de retornar ao bom caminho, então deverá o
sacerdote recordar-se da resposta que o Senhor deu a Pedro, quando este lhe
perguntou quantas vezes se devia perdoar ao irmão: 'Não te digo sete vezes, mas
até setenta vezes sete' (Mt 18,22) (Pio XII).
18 DE
SETEMBRO
Dominus
bene fecit tibi [o Senhor foi bom para contigo (Sl 114,7)]
Porque o
Senhor não te fez mal algum; porque Ele somente se preocupou com teu bem, redi,
anima mea, ad tranquilitatem tuam![volta, minha alma, para a tua
serenidade!]. Assim exclamava o Salmista. A falta de confiança e o pessimismo,
nunca realizaram qualquer coisa para Deus. São péssimos conselheiros, que
costumam por a perder qualquer iniciativa.
Deus tem a sua hora, justamente quando tudo nos parece perdido. Foi assim no dia em que a tempestade, no lago, quase fez naufragar o barco dos Apóstolos. Deus permite as lutas e dificuldades no nosso ministério, porque, sem isso, não nos poderia recompensar. Ele não tem esse prazer, tão nosso, de ver alguém sofrer. Ele nunca nos apresenta uma dificuldade vazia; há em tudo um mérito à nossa espera.
Pai amoroso, Ele se compraz em quebrar conosco as nossas dificuldades, gozando, com seus filhos, a alegria de colherem um resultado, à custa de trabalho e de esforço. Por incrível que pareça, precisamos ser compreensivos para com Deus, não o interpretando segundo as normas da nossa maldade. Custodit simplices Dominus [guardai-vos íntegros no Senhor].
19 DE
SETEMBRO
Oblectamentum
Ecclesiae [regozijo da Igreja]
Para as
almas, nós somos os Mestres da Lei divina. É por isso que a nossa virtude deve
estar aos olhos de todos, e acima de todos: super candelabrum [(como
luz) sobre o candelabro (candeeiro)]. Foi Nosso Senhor mesmo quem
comparou a nossa vida a uma luz, que a todos deve lembrar a Luz da santidade
infinita: sic luceat lux vestra [assim brilhe a vossa luz].
Diz Santo
Ambrósio: singulare pondus sanctitatis sibi vindicat dignitas
sacerdotalis [a dignidade sacerdotal reivindica para si própria uma
relevância particular]. Onde poderão as almas encontrar a santidade, se a
não viverem naqueles que devem ser a luz do mundo? Podemos e devemos ser
humanos, simples e compreensivos, é certo; mas nem por isso iremos renunciar a
uma santidade superior, já que a nossa dignidade se eleva acima dos próprios
anjos.
Pensar, falar e agir como qualquer pessoa, não é certamente estar acima; é igualar-se e até inferiorizar-se diante dos outros. Tantum inter sacerdotem et quemlibet probum interesse debet, quantum inter caelum et terram discriminis est [tanto há de distar um sacerdote de qualquer bom leigo tanto quanto se distinguem o céu e a terra] — diz um santo [Santo Isidoro de Peluza]. E Nosso Senhor foi bem claro, quando nos disse: nisi abundaverit iustitia vestra plus quam scribarum et pharisaeorum... [se vossa justiça não exceder mais que a dos escribas e fariseus...]. Sim, para todos temos que ser os Mestres da Lei. Mas, para isso, precisamos antes aprender com Nosso Senhor.
20 DE
SETEMBRO
Momento
durat ira eius [a sua ira dura um só momento (Sl 30,5)]
Se assim
acontece com o rigor da sua cólera, com a sua bondade é diferente: benevolentia
autem eius per totam vitam [mas a sua complacência (dura) por
toda a vida] — acrescenta o próprio Salmista. Deus é mesmo assim: Deus
caritas est [Deus é amor] — e eu não o posso imaginar de outra
forma, nem o devo ensinar às almas como se Ele fosse outro, diferente.
Durante a
sua vida neste mundo, Nosso Senhor insistiu muito mais em nos mostrar a sua
misericórdia que a sua justiça. E eu não o posso apresentar, pela minha palavra
e pelo meu exemplo, a não ser com esse traço de misericórdia infinita com que
Ele mesmo se apresentou ao mundo. Foi assim que o Apóstolo o conheceu: Pater
misericordiarum — Deus totius consolationis [Pai de misericórdia -
Deus de toda consolação].
Se eu o
mostrar às almas, assim como Ele nos apareceu — apparuit benignitas
Salvatoris [apareceu a bondade do Salvador] — não estarei
fazendo mais que secundar os seus desejos. Antes de mostrar a justiça de Deus,
tenho que mostrar a sua misericórdia, pois o homem só merece a justiça divina
depois que conhecer e desprezar a bondade de Deus. Ut plures lucri
facerem [Para ganhar o maior número possível (de almas) (I
Cor 9,19)] , preciso ensinar o meu Mestre, tal qual Ele era e continua sendo. E
para o ensinar, preciso conhecê-lo, assim como Ele quis ser conhecido e amado
por todos: bonitate et amore plenum [cheio de bondade e
amor].
21 DE
SETEMBRO
Imitamini
quod tractatis [imitemos o que celebramos]
Foi essa a
recomendação que me fez a Igreja, no dia da minha ordenação. E o seu pensamento
é claro: tratando continuamente com a Vítima divina, eu também devo viver nesse
estado de vítima, pelas almas e para a glória do Pai.
Todos os
dias eu renovo, sobre o altar, o sacrifício do Calvário; sou representante e
ministro de um Crucificado; vivo ensinando ao mundo uma doutrina de Redenção,
pela Cruz; todos os dias, portanto, eu devo realizar o sacrifício de mim mesmo.
Essa a imitação de que me fala a Igreja. Minha vontade, entregue à
obediência: Ita, Pater [Sim, Pai]. Meu apego dominado
pelo desprendimento: Filius Hominis non habet ubi caput reclinet [o
Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça]. Meu comodismo, substituído
pelo espírito de sacrifício: maiorem caritatem nemo habet, ut animam
suam ponat quis pro amicis suis [ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a sua vida por seus amigos (Jo 15, 13)]. E minha
dissipação, dominada pela vigilância e recolhimento: vigilate et orate [vigiai
e orai].
É assim que
eu o devo imitar, para que Ele apareça como Vítima em minha vida. Meu orgulho e
minha vaidade terão que desaparecer, diante esse aniquilamento a que vejo
reduzido o meu Mestre, simples migalha eucarística em minhas mãos. E posso
dizer que minha vida tem sido essa morte?
22 DE
SETEMBRO
Sicut Dei
ministros [como ministros de Deus (2Cor 6,4)]
De que
maneira? É São Paulo mesmo quem no-lo explica: in laboritus, in
ieiuniis, in castitate, in scientia, in longanimitate, in suavitate, in Spiritu
Sancto, in caritate non ficta, in verbo veritatis [nos trabalhos,
nos jejuns, pela pureza, pela ciência, pela longanimidade, pela bondade, pelo
Espírito Santo, pelo amor não fingido, pela palavra da verdade].
Que
programa imenso a ser realizado para que o mundo nos possa ver como Ministros
de Deus! E quanta atividade interior não está exigindo de nós, cada ponto desse
programa que nos é proposto! Alguém observou que o trabalho das raízes, na
profundeza do solo, é lento, invisível e silencioso. Mas, se faltasse esse
trabalho, não haveria nem flores e nem frutos sobre a terra.
O mundo
somente nos terá como Ministros de Deus se a nossa vida exterior tiver raízes
profundas, trabalhando numa vida interior de intensa e sólida piedade. Como
poderá iluminar uma lâmpada que não recebe o óleo de que se alimenta? Aptate
lampades vestras [preparai as vossas lâmpadas] — Lembremos aqui
uma frase de Pio XII: 'Atingiremos a meta prefixada (pelo sacerdócio) somente
quando tivermos atingido a nossa santificação, de modo a podermos comunicar a
outros a vida que houvermos haurido de Cristo: noli negligere gratiam
quae in te est [não negligencies a graça que está em ti (1Tm
4,14)].
23 DE
SETEMBRO
Ut servum
redimeres [para redimir escravos]
A Igreja
explica toda a obra da Redenção, como uma consequência do amor infinito de Deus: inaestimabilis
dilectio caritatis: ut servum redimeres, Filium tradidisti [ó
incomparável predileção do amor: para redimir escravos, entregastes o (Vosso) Filho (canto
do Exultet)]. E o Apóstolo, referindo-se a esse amor, diz
simplesmente: in finem dilexit nos [amou-nos até o fim].
Isto quer dizer que Deus nos amou a mais não poder, embora o seu amor seja
infinito.
Se Ele é a
Verdade para a nossa inteligência, Ele é principalmente o Amor, que devemos
conhecer e amar com o coração. Sob esse prisma é que o devemos estudar, e nunca
chegaríamos a compreender a Redenção, a não ser recorrendo à palavra do
Apóstolo: Deus é amor. Era infinita a distância entre Verbum [Verbo
(palavra)] e caro [carne]; mas o amor infinito a
percorreu: Verbum caro factum est [E o Verbo se fez carne].
E, depois disso, tudo foi possível: o Presépio, o trabalho em Nazaré, aquela vida ao sol, à chuva, em absoluta pobreza, as perseguições, os horrores da Paixão e da morte. E a única explicação que encontramos para tudo, não pode ser outra: Ele é simplesmente o Amor: vivit amor excessibus [o amor que vive apenas de excessos]. Compreendemos que, para ensinar Nosso Senhor às almas, precisamos conhecê-lo com a inteligência e com o coração: noverim te, ut amem te [que eu vos conheça, para que vos ame].
24 DE
SETEMBRO
Qui
laetificat iuventutem meam [que alegra a minha juventude]
Todo o
fervor de nossa vida sacerdotal depende da nossa missa de cada dia. Não se
trata de um sacrifício que oferecemos e terminamos. Se as cerimônias terminam,
o espírito de imolação deverá ser contínuo em nossa vida. Terminado o
sacrifício de Nosso Senhor, o nosso deverá continuar pelo dia afora.
Não é sem
motivo que a Igreja nos prescreve: sacerdos celebraturus missam,
orationi aliquantulum vacet [o sacerdote para celebrar uma missa
deve dedicar algum tempo à oração]. Será demais? São João Eudes dizia que,
para celebrar dignamente a Santa Missa, o sacerdote precisaria de três
eternidades: uma para a preparação, outra para a celebração, e uma terceira
para a ação de graças.
O que a
Igreja estabelece é, portanto, o mínimo para que subamos ao altar digne,
attente ac devote [digna, atenta e devotamente]. Durante a missa,
mais que em qualquer outro momento de nossa vida: nihil nisi grave,
moderatum, ac religione plenum [nada exceto o que seja sério,
moderado e pleno de religiosidade]. Trata-se de renovar e oferecer o
Sacrifício da Redenção. E, terminada a missa, cum recubuisset supra
pectus Jesu [recostando-se sobre o peito de Jesus] — temos
muito para falar com Nosso Senhor e o tempo de nossa ação de graças é sagrado.
Que o nosso pondus diei [peso do dia] espere um pouco e
lhe daremos toda a atenção que merece, tomando com todo fervor o manipulum
fletus et doloris [o manípulo do pranto e da dor] do nosso
trabalho diário.
25 DE SETEMBRO
Osculo
filium hominis tradis? [com um beijo trais o Filho do Homem? (Lc
22, 48)]
Esta
dolorosa pergunta não comoveu o coração do traidor. Poderia comover o sacerdote
que se aproxima indignamente do altar? Quando a consciência não reage mais... A
Missa sacrílega é o pecado que os leigos não podem cometer. Triste privilégio
dos padres! O celebrante em guerra com Nosso Senhor aproximando-se do altar, como
Judas se aproximou do Mestre: amice, ad quid venisti? [amigo,
é para isso que vieste? (Mt 26, 50)].
Nosso
Senhor não estranhou o pecado daqueles que o foram prender. Ele mesmo explicou
que era a hora das trevas. Mas estranhou a traição daquele que sempre
distinguira como amigo. A que ponto pode chegar uma vida sacerdotal
falsificada! E há os que repetem o gesto de Judas muitas vezes. Não será também
para eles a palavra de Nosso Senhor: bonum erat ei si natus non fuisset
homo ille? [melhor seria para este homem nunca ter nascido (Mt
26,24)].
Que valha
para nós esta regra: nunca subir ao altar sem um fervoroso ato de contrição e
não dispensar uma confissão sincera, no caso de alguma falta grave. Abyssus
abyssum invocat [um abismo chama outro abismo (Sl 41, 8)]
— uma Missa celebrada sem muita pureza da alma poderá ser a beira de um
despenhadeiro. Erat autem nox... [era noite...] — em
plena noite do pecado, Judas foi à procura da sua Vítima. A sua traição, porém,
já vinha de longe, quia fur erat... et nemo repente fit malus [porque
era ladrão ... e ninguém se torna mal de repente].
26 DE
SETEMBRO
Si tecum
sum [se estou convosco (Sl 72, 23)]
A falta de
fervor e a exagerada preocupação com o trabalho levam, às vezes, o padre a
encarar a Santa Missa, como um malum necessarium [mal
necessário], uma ocupação a mais, entre as muitas que lhe enchem o dia.
Acontece então que padre procura se desvencilhar, o mais depressa possível,
desse ônus. Celebrar quanto antes, até sem preparação.
As
cerimônias apressadas não chegam a dar uma ideia do que deveriam ser. As
palavras, mutiladas, revelam indiferença, rotina e desejo de terminar quanto
antes. E alguns ainda se desculpam dizendo que não sabem fazer nada devagar...
Que valor terá esta desculpa diante de Nosso Senhor?
Precisamos,
no entanto, evitar a Missa que não termina mais, devido aos escrúpulos e à
devoção particular. A Santa Missa não é tanto para o celebrante, como para os
fiéis. A Igreja não confiou à devoção de cada um, introduzir ritos e cerimônias
estranhas. A prescrição do Código é clara: sacerdos celebrans, accurate
ac devote servet rubricas... caveatque ne alias caeremonias aut preces proprio
arbitrio adiungat (cânon 818) [o sacerdote celebrante observará
cuidadosa e devotamente as matérias (litúrgicas)... sem acrescentar por seu
próprio arbítrio outras orações e cerimônias (cânon 818, cânon
integrante do Código Canônico de 1927 (vigente à época do texto original),
revogado pelo novo Código Canônico de 1983, atualmente em vigor)]. Notemos
bem: accurate ac devote [cuidadosa e devotamente].
Mais, não é necessário.
27 DE
SETEMBRO
Littera
enim occidit [pois a letra mata (2Cor 3,6)]
Ao falar
com a samaritana, disse Nosso Senhor: veri adoratores adorabunt
Patrem in spiritu et veritate. Nam et Pater tales quaerit qui adorent eum [os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade e são esses os
adoradores que o Pai deseja (Jo 4,23)]. E São Paulo também lembrou aos
fiéis que a letra, sendo morta, não pode dar a vida: spiritus autem
vivificat [mas o espírito vivifica (dá a vida)].
Tratando-se
dos Ofícios divinos, principalmente da Santa Missa, não podemos esquecer que a
Liturgia não está na letra, mas no espírito. Todo o cerimonial exterior deverá
refletir a piedade interior que a Igreja supõe no sacerdote. Não basta que a
Santa Missa seja celebrada com perfeição exterior nas cerimônias e orações. Não
basta que tudo seja medido e calculado ao pé da letra. Pode a Missa ser
caprichada, perfeitamente exata em tudo; se lhe faltar a piedade interior do
celebrante, as cerimônias serão um mero artifício e não irão passar de um
simples espetáculo, frio e sem alma, que não eleva nem desperta o fervor.
A Missa
verdadeiramente litúrgica, viva, capaz de impressionar, é fruto e consequência
da piedade interior do celebrante; portanto, não pode ser improvisada: praecipuum
divini cultus elementum internum esse debet [o elemento essencial
do culto divino deve ser interno] (Encíclica Mediator Dei, Pio
XII).
28 DE
SETEMBRO
Crescamus
in illo [cresçamos em tudo (todos os sentidos) (Ef
4,15)]
A Santa
Missa, diariamente celebrada e vivida, será para o sacerdote a fonte principal
da sua piedade e do seu zelo pelas almas. É desse encontro diário com o seu
Mestre que o sacerdote irá receber aquele espírito de vítima, que o deve levar
ao sacrifício de si mesmo, pelas almas, para glória do Pai.
A este respeito, escreveu Pio XII: 'Estando tão estreitamente em contato com os divinos mistérios, o sacerdote não poderá deixar de sentir fome e sede de santidade ou deixar de sentir estímulo para adotar sua vida à própria dignidade, orientando-a para o sacrifício, porque deve imolar-se a si mesmo com Nosso Senhor'. Podemos dizer, portanto, que a vida do padre será aquilo que for a sua Missa de cada dia. Razão tinha, e bastante, quem observou: 'pela Missa que celebra se conhece o padre'.
Se tudo em
nossa vida pode e deve ser um meio de nos unirmos mais a Deus — diligentibus
Deum omnia cooperantur in bonum [todas as coisas concorrem para o
bem daqueles que amam a Deus (Rm 8, 28)] — que dizer da Santa Missa,
que nos eleva acima dos anjos, revestindo-nos, de certo modo, da pessoa mesma
de Nosso Senhor? Que a celebremos, todos os dias, in unione illius
divinae intentionis [em união com essa divina intenção] e essa
intenção divina irá penetrar toda a nossa atividade, transformando a nossa vida
na oblação que ela deve ser: suscipe hanc oblationem... [recebei
essa oblação...].
29 DE
SETEMBRO
Quis
ascendet in montem Domini? [quem subirá ao monte do Senhor? (Sl
23,3)]
Senhor, é o
teu Salmista mesmo quem me responde: qui non intendit mentem suam ad
vana [quem não se preocupa com coisas vãs]. E, pelo caminho da
minha vida, há tanta coisa inútil prendendo a minha atenção! No entanto, eu
deveria olhar somente para a tua morte, porque ela é a minha vida, a vida que
eu devo viver.
Todos os
dias tenho diante de mim o teu aniquilamento, a tua morte, sobre a cruz do meu
altar. E é com a tua morte que a minha vida de todos os dias deverá elevar-se
até a Justiça infinita. Diariamente és a minha vítima, colocada nas minhas
mãos; que eu seja também, continuamente, a tua vítima, em tuas mãos, para glória
do Pai!
Ensina-me a
respeitar a minha vida que, como a tua, deve ser uma imolação contínua. Que eu
não desvie meus olhos e a minha atenção para outra coisa que não seja a tua
morte porque, sendo ela a minha vida, eu não a estaria vivendo se a esquecesse.
É per Ipsum, et cum Ipso [é por Ele e com Ele] que eu
devo viver. Que eu saiba, em minha vida, aceitar todo trabalho e todo
sacrifício, com a mesma sede com que o teu amor aceitou aquele fel e vinagre,
para glória do Pai. Que eu me conforme em ir deixando, todos dias, a minha vida
em tuas mãos; sim, in manus tuas [em tuas mãos], até o
momento de poder cantar: Domine Jesu, accipe spiritum meum [Senhor
Jesus, recebe o meu espírito].
30 DE
SETEMBRO
Ut serves
mandatum sine macula [para que guardes o mandamento sem mácula (1Tm
6,14)]
'A época em
que vivemos sofre de uma grave perturbação em todos os terrenos: sistemas
filosóficos que nascem e morrem, sem nada melhorarem os costumes;
monstruosidades de certa arte que pretende apresentar-se como cristã; critérios
de governo que, em muitos lugares, se convertem antes na opressão dos povos que
em bem comum; métodos de vida e de relações econômicas ou sociais, em que
correm maior perigo os honestos que os sem consciência.
Daí deriva, quase naturalmente, que não faltem de todo em nossos tempos, sacerdotes infectados de alguma maneira de semelhante contágio; que manifestam opiniões e levam um teor de vida, até no modo de vestir-se e cuidar de si, inteiramente contrários tanto à sua dignidade como à sua missão; que se deixam empolgar pela mania de novidades, seja no pregar aos fiéis, seja no modo de combater os erros dos adversários; e que comprometem portanto, não somente a própria consciência, mas ainda a sua boa fama, e, por isso, a eficácia do seu ministério.
A novidade
nunca foi, por si mesmo, um critério de verdade, e só pode ser louvável quando
confirma a verdade e leva à virtude' (Pio XII).
OUTUBRO
10 DE
OUTUBRO
Quis
revolvit nobis lapidem? [quem removerá a pedra para nós? (Mc
16,3)]
Não era
pequena a pedra que fechava o sepulcro: erat quippe magnus valde [porque
era uma pedra muito grande]. Mesmo assim Ele ressuscitou e saiu do
sepulcro, ut quomodo Christus ressurrexit, et nos ressurgamus cum Illo [e
tal como Jesus ressuscitou, ressuscitamos com Ele].
Essa
ressurreição é a nossa esperança e a nossa garantia de uma ressurreição eterna
que nos espera. E enquanto ela não se realiza, temos que ressuscitar, cada dia,
das faltas para a virtude e da indiferença para o fervor. Diante de nós, como
junto ao sepulcro de Lázaro, Nosso Senhor está mandando: tollite
lapidem! [removei a pedra! (Jo 11, 39)]. E não podemos
esperar que outros o façam para nós. Ele quer o nosso esforço nesse sentido.
Mas nós ficamos duvidando...
Não
queremos renunciar a esta amizade e nem aceitamos aquele sacrifício. Não nos
conformamos em evitar esta ou aquela ocasião. Mas Ele insiste e continua
mandando: tollite lapidem! [removei a pedra!]. Temos
que remover a pedra que nos conserva encerrados na indiferença ou na tibieza.
Sem isso, Ele não realizará o milagre da nossa ressurreição. Se o nosso fervor
não está correspondendo e se não realizamos mais pelas almas, não será por
causa de alguma pedra que não queremos afastar do nosso caminho? Para a nossa
mesquinhez e covardia, a ordem de Nosso Senhor continua sendo a mesma: tollite
lapidem! [removei a pedra!]. Sem isso não se realizará a
ressurreição que esperamos.
02 DE OUTUBRO
Ego mittam
angelum meum [Eu envio um anjo meu (Ex 23,20)]
Verdade
consoladora, essa que hoje a Igreja me lembra: desde que nasci, tenho ao meu
lado um anjo de Deus. E Deus mesmo é quem lhe ordena que me guarde e
defenda: qui praecedat te, et custodiat [que vá adiante de
ti e te proteja]. Não o posso esquecer, nem posso ignorar a sua presença em
minha vida: observa eum, et audi vocem eius [atente-se para
ele e ouça a sua voz].
Deve ser
essa a missão preferida pelos anjos: guardar os sacerdotes de Nosso Senhor. Não
será para eles uma honra acompanhar os Ministros de Deus, no altar, no
confessionário, no púlpito, à cabeceira dos agonizantes? Se eu me lembrasse
mais vezes da presença do meu anjo, ele me lembraria mais da presença de Deus.
Eu não me veria tão sozinho nas dificuldades, diante dos sacrifícios, do
trabalho e nas tentações.
Se eu me lembrasse mais do meu anjo, se eu vivesse mais com ele, eu teria sempre comigo uma lembrança da eternidade e minha vida não seria tão terrena e dissipada. O respeito e a reverência com que me acompanha em toda parte poderiam levar-me a respeitar mais a minha grandeza e dignidade. Nos ergo affectuose diligamus angelos, tamquam futuros aliquando coheredes nostros, interim vero tutores a Patre positos et praepositos nobis [por isso, nós amamos ternamente os anjos, nossos futuros co-herdeiros, colocados desde agora junto a nós pelo Pai como nossos guias e guardiões (São Bernardo)].
03 DE
OUTUBRO
Amat
Christus infantiam [ Cristo amava a infância]
Assim me
diz São Leão Magno e eu o compreendo, depois que o Evangelista observou: et
complexans eos, et imponens manus super illos, benedicebat eos [(Jesus) as
abraçou (as crianças) e as abençoou, impondo-lhes as
mãos (Mc 10,16)]. Senhor, a tua Igreja me lembra hoje aquela inocência
infantil que quiseste ver, enfeitando sempre a minha vida. Acho que a infância
dos meus primeiros anos de sacerdócio há muito não me vem acompanhando.
Naquele tempo, havia mais inocência e docilidade, mais fervor e dedicação em minha vida. Hoje, o contato com os homens apagou, em parte, aquela simplicidade da minha vida e apareceram a malícia e a mentira ao longo do meu caminho. À medida que os anos foram passando, muita coisa mudou, e, às vezes, para pior.
A
experiência com os homens e com as coisas me ensinou o comodismo, o apego
inútil, a dissipação, a vaidade. Mais, em contato com o mundo, ele me
contagiou, às vezes, com seu espírito leviano e superficial. Nem sempre
consegui isolar-me da sua força de atração e meu modo de pensar ou de agir
muitas vezes esteve marcado com um espírito que não revela a inocência e a
simplicidade que me ensinaste. Senhor, reconheço que preciso voltar atrás, para
achar aquele que eu era: ametur humilitas [temperado
pela humildade].
04 DE
OUTUBRO
Qui
contempsit vitam mundi [que desprezou a vida terrena]
Justamente
por ter desprezado o espírito do mundo, São Francisco soube amar o mundo com o
espírito de Deus. Chamaram-no de poeta; mas a Igreja é quem lhe dá o título
acertado: Verus Dei cultor [um verdadeiro adorador de Deus]
— aquele que via Deus em tudo, extasiando-se para adorá-lo nas estrelas, nas
aves ou nas flores: Pater tales quaerit qui adorent eum [são
esses os adoradores que o Pai deseja (Jo 4,23)].
A humildade
e a penitência nunca o abateram, nem o puderam diminuir, porque a sua confiança
sempre o elevou, conservando-o naquele desapego perfeito de tudo; era a
despreocupação de quem tudo possuía, por haver desprezado o pó da terra. Seu
coração teve apenas um desejo: Deus meus et omnia [meu Deus
e meu tudo].
Por
humildade não chegou ao sacerdócio mas, assim mesmo, ficou sendo um modelo para
nós, como homem que vivia exclusivamente para Deus e para as almas. Ecce
homo sine querela [eis um homem contra quem não há queixas (de
conduta irrepreensível)] — é assim que a Igreja no-lo mostra, porque assim
deveríamos ser para que assim nos pudéssemos apresentar diante do mundo. Foi
assim que Nosso Senhor nos viu: lux mundi [luz do mundo]. Abstinens
se ab omni opere malo, permanens in innocentia sua, pervenit ad caelestia regna [abstraído
de toda obra má, manteve a sua inocência, alcançou o reino celestial] — é
toda a sua biografia. E nessas palavras deve estar também a nossa vida.
05 DE
OUTUBRO
Communicantes
christi passionibus [participantes
dos sofrimentos de Cristo (1Pd 4,13)]
É com
alegria que devemos olhar para a nossa vida, extinguindo-se aos poucos, num
sacrifício contínuo que oferecemos a Nosso Senhor. Graças a Deus, se podemos
trabalhar para Ele; e se não pudermos trabalhar, graças a Deus também, porque
poderemos sofrer mais por Ele. Como os mártires, temos que cantar durante o
sacrifício de nossa vida.
O nosso
ministério é todo marcado de lutas e renúncias. Mas nós sabemos bem para quem
estaremos sofrendo e diante de quem está se extinguindo a lâmpada dos nossos
dias. Se Ele nos chama para a imolação, se Ele nos deu uma cruz a carregar, a
sua bondade apressou-se a nos encorajar, mostrando-nos, após o sacrifício, a
ressurreição.
06 DE
OUTUBRO
Cavete a
fermento pharisaeorum! [tende cuidado com o fermento dos
fariseus! (Mt 16,6)]
Nosso
Senhor mesmo explicou que esse fermento outra coisa não é senão a hipocrisia e
a mentira. Se eu vivesse entre anjos, a prática da virtude certamente não me
seria muito difícil. Mas acontece que eu vivo num mundo positus in
maligno [sob o julgo do maligno]; se eu não me prevenir,
fugindo à sua mentalidade, ele acabará me contagiando.
Foi São
Gregório quem escreveu: neque enim valde laudabilis est, bonum esse cum
bonis, sed bonum esse cum malis [porque há grande louvor não em ser
bom entre os bons, mas ser bom entre os maus]. A vida de união com Deus,
pela oração, deverá me transformar no Homo Dei [homem de
Deus]; ao passo que, condescendendo com o mundo, serei um dos seus, vivendo
de acordo com a sua mentalidade.
E esta não é apenas a negação e a ausência do sobrenatural; é principalmente a presença da hipocrisia e da malícia. O mundo sempre se contenta com qualquer coisa, contanto que seja mentira. A verdade é que não lhe interessa. Unctionem quam accepistis ab eo maneat in vobis... sicut docuit vos, manete in eo [a unção que dele recebestes permanece em vós... permanecei nele, como Ele vos ensinou (1Jo 2,27)]. Somente permanecendo nEle poderei ficar livre da mentira. Cavete! [Tende cuidado!]. Se Nosso Senhor me avisou, Ele sabe o porquê. E, olhando para as minhas quedas, eu também deveria saber porque não devo facilitar.
07 DE
OUTUBRO
Sancta
Maria, Mater Dei, memento mei! [Santa Maria, Mãe de Deus,
lembrai-vos de mim!]
O Rosário
de Nossa Senhora: uma devoção tão antiga e sempre nova, porque não sai dos
lábios das almas simples e fervorosas. É uma devoção tão rica para alimentar a
nossa piedade porque nos coloca diante dos mistérios da Redenção e das Verdades
eternas.
Nossa
Senhora deve ter um amor todo especial a essa devoção que lhe recorda
continuamente a saudação que Deus lhe dirigiu, no momento mais sublime da sua
vida. Por isso compreendemos porque Ela tenha escolhido o Rosário, para, com
essa devoção, operar maravilhas na Igreja de Deus. A um vigário, já idoso, que
dirigia a paróquia mais fervorosa da diocese, alguém observou: 'o senhor tem
sorte porque a sua paróquia é mesmo um modelo'. Ao que respondeu o piedoso velhinho:
'A minha sorte é poder rezar, todos os dias na igreja, o meu Terço com os meus
paroquianos'. Era esse o segredo de todo o fervor daquela paróquia.
Coloquemos
o Terço em nossa vida de todos os dias; não tanto como uma oração vocal, mas
principalmente como oração mental. E a experiência nos irá mostrar como essa
devoção tem realmente uma força extraordinária. Quanto mais fervor e cuidado
pusermos na recitação do nosso Terço, tanto mais sacerdotal irá se tornando a
nossa vida.
08 DE
OUTUBRO
Volumus ut,
quodcumque petierimus facias nobis [queremos que nos concedas
tudo o que vos pedirmos (Mc 10,35)]
Nunca a
pretensão apareceu tão bem ao lado da simplicidade. Eu não estranho, Senhor a
pretensão dos teus discípulos, porque eles ignoravam os teus planos de Redenção
e nem conheciam a tua sede de sacrifício: potestis... baptismum quo ego
baptizor, baptizari? [podeis...ser batizados no batismo que sou
batizado? (Mc 10, 38)]
O que eu
admiro, sim, nos teus amigos, é a simplicidade com que eles não souberam
esconder uma ambição bem grande, que marcava cuidadosamente os primeiros
lugares do teu Reino. Admiro e invejo essa simplicidade infantil, porque,
ambicioso e convencido eu sou, muito mais do que eles. E, não tendo a mesma
simplicidade, minha malícia se encarrega de esconder as minhas pretensões.
Eu não te
peço, como eles te pediram, que faças tudo o que eu quero. Apenas uma coisa te
peço e quero pedi-la sempre: a simplicidade dos teus discípulos, para eu fazer
tudo o que queres de mim. Dar-me-ei por muito feliz se a minha dedicação me
levar a fazer, em tudo e sempre, a tua Vontade que só quer o meu bem. E quanto
ao meu lugar no teu Reino... Eu sei que não preciso me preocupar. Há muito que
o teu amor já pensou nisso: paratum vobis regnum a constitutione mundi [o
reino está preparado para vós desde a criação do mundo (Mt 25, 34)].
09 DE
OUTUBRO
Qui facit
opus Dei negligenter [quem faz com negligência a obra de Deus (Jr
48,10)]
A fim de
ganhar a todos para Nosso Senhor, devo por na minha vida aquela elevação e
dignidade que a Igreja exige de mim. Que impressão poderão ter as almas do
sacerdote que não procura aparecer sempre como um Alter Christus [outro
Cristo]?
Se, em toda
parte, devo ser o Homo Dei [homem de Deus], muito mais
no altar, quando me vejo, dispensator mysteriorum Dei [administrador
dos mistérios de Deus], colocado entre Deus e os homens. As linhas da minha
conduta somente poderão ser estas: digne, attente ac devote [digna,
atenta e devotamente]. Celebrando o Santo Sacrifício, administrando os
sacramentos, enfim, sempre que estiver tratando oficialmente com Deus, devo
ser, aos olhos de todos, um homem diferente, em contato com o
sobrenatural.
Então, mais do que nunca, tenho que ser para todos o Homem que vive de Deus. Certas observações e censuras, embora muito justas, nunca sejam feitas durante as cerimônias sagradas; se necessário, antes ou depois, e sempre com uma caridosa discrição sacerdotal. A leviandade ou a ignorância somente as poderei corrigir, com atitudes e palavras dignas de um homem diferente. Minha intenção não poderá ser outra senão ensinar e edificar os fiéis. E se eu não o fizer, inutilem servum ejicite in tenebras exteriores [jogai esse servo inútil nas trevas exteriores (Mt 25,30)].
10 DE
OUTUBRO
Ut digne
ambuletis [para que andeis dignamente (Ef 4,1)]
Em atenção
à Santa Igreja, ao estado sacerdotal e à missão que deve realizar, o sacerdote
não poderá expor o seu bom nome às intempéries da maledicência. Pelo contrário,
lembre-se que as más línguas andam por toda parte.
Conhecedor
da malícia do mundo, São Jerônimo escreveu: Duae res sunt conscientia
et fama: conscientia tibi; fama proximo tuo [são duas coisas a
consciência e a fama: a consciência para ti; a fama para o teu próximo].
Para o nosso apostolado, não basta que a nossa consciência esteja limpa; precisamos
apresentar ao povo um nome e uma fama acima de qualquer suspeita. Para diminuir
o sacerdote e manchar o seu nome, a hipocrisia do mundo costuma aprovar e até
recomendar certas imprudências, como coisa muito natural.
Basta que o padre consinta e o que antes era aprovado como natural e humano passa a ser condenado com o máximo rigor. E então, uma simples faísca de maledicência, que nunca falta nesses casos, estará logo transformada num incêndio. Nada restará do bom nome e da fama do sacerdote. Com ou sem culpa do padre, precisamos reconhecer que, muitas vezes, se aplica a palavra de São Gregório: quod per linguam praedicamus, per exempla destruimus [o que pregamos pela boca, destruímos pelo exemplo].
11 DE
OUTUBRO
Qui alium
doces, te ipsum non doces [o que ensinas a outros, não ensina a
si mesmo (Rm 2,21)]
Dirigindo-se
aos sacerdotes, Pio XII escreveu: 'Tende em sumo conceito a graça da vossa
vocação e vivei-a de modo que produza copiosos frutos, para a edificação da
Igreja e para a conversão dos seus inimigos'.
Viver a
nossa vocação — isto quer dizer: santificarmo-nos, para santificarmos aos
outros. Como pensar nas almas, se antes não pensarmos em nossa alma? Como
ensinar a outros o que não aprendemos ou não praticamos? São Paulo já nos
chamou a atenção para esse ponto: confidis te ipsum esse ducem caecorum,
lumen eorum qui in tenebris sunt. Eruditorem insipientium, magistrum infantium,
habentem formam scientiae et veritatis in lege [tu, que te ufanas
de ser guia dos cegos, luzeiro dos que estão em trevas, doutor dos ignorantes,
mestre dos simples, porque encontras na lei a regra da ciência e da
verdade (Rm 2, 19-20)].
Somos realmente os mestres, somos os guias. No entanto: qui in lege gloriaris, per praevaricationem legis Deum inhonoras [tu, que te glorias da lei, desonras a Deus pela transgressão da lei (Rm 2, 23)]. É o que acontece quando o mestre não se lembra que também precisa aprender, porque unus est Magister vester [um é o vosso Mestre]. Temos que aprender, no recolhimento e na meditação. Depois, poderemos ensinar pela pregação. E se assim não fizermos, o resultado será realmente lamentável: cuius vita despicitur, restat ut eius praedicatio contemnatur [quem tem vida desprezada, merecer ter suas palavras rejeitadas].
12 DE
OUTUBRO
Ego vici
mundum [Eu venci o mundo (Jo 16,33)]
'A mocidade
da Igreja é eterna. De acordo com o tempo, ela muda de idade na sua marcha para
a eternidade, mas não envelhece. Como os séculos que já se foram, os que lhe
estão diante não perfazem senão um dia.
A mocidade com a qual ela nos fala hoje é a mesma que possuía na época dos Césares. A Igreja primitiva teve na vitória uma confiança que recebia do seu ardor e força na sua inalterável segurança das palavras do Mestre: 'Eu venci o mundo'. A Igreja de hoje não pode simplesmente voltar às formas primitivas do pequeno rebanho inicial. Em sua maturidade, que não é velhice, ela ergue a cabeça e guarda em seus membros o inalterável vigor da mocidade.
Necessariamente se conserva a mesma, não mudando nem os seus dogmas e nem a sua força vital. Ela é inexpugnável, indestrutível e invencível. É imutável; pela própria carta de sua fundação, assinada com o sangue do Filho de Deus, não pode mudar, mas progredir, assumindo formas novas, que correspondem à época do seu progresso. Mas isto não lhe muda a natureza. Como São Vicente Lerins tão bem o notou, a vida religiosa das almas imita a vida dos corpos que, crescendo, à medida que avançam em idade, continuam sendo, no entanto, os mesmos corpos que eram' (Pio XII).
13 DE
OUTUBRO
Noli me
arguere in ira tua [não me repreendas com vossa ira (Sl 6,2)]
Se o
Salmista não queria, nós também não queremos ser julgados pela ira de Deus. É
que ninguém deseja ser tratado com rigor, com dureza e rispidez. Todos procuram
a bondade, a compreensão e a misericórdia.
Homem de
Deus, o sacerdote precisa ter sempre um perfeito domínio de si mesmo. Que seu
temperamento e os seus nervos não desequilibrem suas palavras, atitudes e decisões. In
qua mensura mensi fueritis, remetietur vobis [com a medida com que
tiverdes medido, vós sereis medidos (Mt 7,2)]. A experiência ensina
que ninguém permanece diante de um púlpito, onde costumam estrugir tempestades,
porque ninguém deseja ficar exposto aos raios e trovões.
E quando as
almas percebem que, no confessionário, não está um Pater
misericordiarum [pai de misericórdias], mas um judex
ultionis [juiz de vinganças], fogem do sacramento ou se
confessam mal. Sana me, quia infirmus sum [Curai-me porque
estou desvalido] — é o que pedimos a Deus, confiando na sua misericórdia e
é também o que as almas nos pedem, porque sabem que somos os dispensadores do
perdão divino. Non est opus valentibus medicus [não são os
sãos que precisam de médico (Mt 9, 12)] — se as almas nos procuram é
porque desejam encontrar em nós o médico e o mestre que Nosso Senhor lhes deu.
14 DE
OUTUBRO
Nisi per
orationem et ieiunium [somente pela oração e pelo jejum (Mt 17,20)]
Confiados
no poder que receberam, os discípulos tentaram a cura de um lunático, possesso
do demônio. E não a conseguiram. Quare nos non potuimus ejicere illum? [por
que nós não pudemos expulsá-lo? (Mt 17, 18)]. O Mestre
respondeu: propter incredulitatem vestram [por causa da
vossa incredulidade (falta de fé)].
Nosso Senhor nos mandou trabalhar em sua vinha e nos garantiu: Ego vobiscum sum [Eu estou convosco]. Mas, nem por isso podemos pensar que tudo irá correr às mil maravilhas. Vemos como as dificuldades, muitas vezes, estão plantadas à nossa frente, quantas montanhas que não conseguimos remover. Por que? Simplesmente porque a nossa fé não chega a ser sicut granum sinapis... [como um grão de mostarda...].
Contamos
com as nossas forças e não calculamos também a força de Deus. Preocupamo-nos
com todos os meios e esquecemos que todos eles dependem da graça. Não temos a
fé e a confiança que deveríamos ter. Porque costumamos dar grande importância
aos meios humanos, esquecendo que a oração e a penitência são os únicos meios
verdadeiramente eficazes para o nosso apostolado. A oração e o sacrifício
certamente não estão fora do nosso alcance. Realizaremos muito mais para Deus,
se nos resolvermos a trabalhar com todos os meios de que dispomos,
principalmente per orationem et ieiunium [pela oração e
pelo jejum].
15 DE
OUTUBRO
Vade ad
mare, et mitte hamum [vá ao mar e lança o anzol (Mt 17,27)]
Que pobreza
a de Nosso Senhor! Para poder pagar um imposto, precisou fazer um milagre. E
que delicadeza a sua! Pagando o imposto, à custa de um milagre, não quis
impressionar mal aos cobradores: ut non scandalisemus eos [para
que não os escandalizemos].
O que mais
estranhamos, porém, nesta passagem do Evangelho, é a complicação do
milagre: vade ad mare, et mitte hamum; et eum piscem, qui primus
ascenderit, tolle; et aperto ore eius, invenies staterem; illum sumens, da eis
pro me et te [vá ao mar e lança o anzol; apanha o primeiro peixe
que subir, abra-lhe a boca e encontrarás um estáter (moeda); toma-o e entrega a
eles (cobradores de impostos) por mim e por ti (Mt
17,27)]. Para o Mestre, não teria sido o mesmo fazer aparecer a moeda já na mão
do Apóstolo? Mais fácil e menos complicado.
É que, para
Deus, nada é difícil e tudo é muito simples. Não conhecendo os seus caminhos —
e não conhecemos nem os nossos — vemos tanto mistério nas disposições
divinas. Quis consiliarius eius fuit? [quem já se fez seu
conselheiro? (Rm 11,34)]. Justamente porque nada sabemos, deveríamos
ter a simplicidade do Apóstolo, que soube obedecer prontamente ao Mestre.
Quantas vezes uma aparente dificuldade nos faz desanimar! Achamos tudo tão
difícil e complicado! E não nos lembramos de que, em nosso favor, Deus poderá
também operar milagres; contanto que tenhamos fé e confiança, para nos
conformarmos inteiramente às suas disposições.
16 DE
OUTUBRO
Ego sum
Pastor bonus [Eu sou o Bom Pastor (Jo 10,11)]
Examinando
bem a minha vida, vejo que há em mim um Bom Pastor, cheio de zelo e caridade.
Conhece as suas ovelhas e vive à procura daquelas que se perderam. Dedica-se ao
trabalho com entusiasmo e boa vontade, estando pronto para todos os sacrifícios.
Mas, por
incrível que pareça, vive em mim também um mercenário. Embora procure ele
disfarçar a própria existência, eu o vejo, escondido como um ladrão, nas
profundezas de minha alma. Comodista, ele se queixa às vezes do trabalho e
procura restringir-se ao estritamente necessário, com o fim de se poupar as
forças. Vaidoso, cheio de si, o trabalho e o sacrifício não lhe agradam tanto
como os elogios fáceis.
Interesseiro,
muitas vezes quer pensar mais em si mesmo que nas próprias ovelhas, procurando desculpas
que justifiquem o seu modo de pensar e de agir. Falso como é, mostra-se em tudo
como um defensor sincero dos meus direitos, ainda que com prejuízo das ovelhas.
Preciso afastar de minha vida esse mercenário antes que ele me faça sua vítima.
17 DE
OUTUBRO
Si scires
donum Dei [se conhecesses o dom de Deus (Jo 4,10)]
Senhor, que
aquela samaritana ignorasse o Presente de Deus e que ela não te conhecesse...
compreendo. Ela era uma infeliz, cuja vida não passava de aventuras e misérias.
Uma pobre mulher, cuja leviandade se preocupava com mil coisas, sem pensar em
nada.
Ela não
podia mesmo imaginar que a infinita riqueza de Deus estivesse, assim de
repente, tão perto da sua imensa miséria. O que, porém, não entendo, e não
compreendes também, é que eu não te conheça bastante. Vivendo há tantos anos em
tua casa e ao teu serviço, até hoje eu não soube apreciar, como devia, o
presente que Deus me fez. Que eu viva sempre metido no poço deste mundo, à
procura de um apego, de uma amizade ou dissipação que possa encher a minha
vida... que eu viva procurando sempre meus interesses e minha vaidade, numa
cisterna sem fundo como é o meu orgulho... quem o poderá entender?
Muito perto
eu devo estar daqueles que desejaram tua ausência, porque sentiam ameaçados os
seus rebanhos... Et rogare coeperunt eum, ut discederet de finibus
eorum [e começaram a rogar-lhe que deixasse a região deles (Mc
5,17)]. Se neste mundo, alguém devia conhecer e estimar o donum Dei [dom
de Deus], esse alguém por tudo quanto eu recebi, sou eu mesmo.
18 DE
OUTUBRO
Et venerunt
ad eum [e eles foram até Ele (Mc 3,13)]
Foi do alto
de uma colina — ascendens in montem [no alto de um monte]
— que Ele chamou os seus escolhidos: Vocavit ad se quos volunt ipse [chamou
para si aqueles que Ele quis]. Ele chamou a quem Ele quis chamar.
Chamado
também por Ele, para as alturas do sacerdócio, a Igreja me disse: Accedant... [aproxime-se]
e eu me aproximei. Ouvindo meu nome, respondi: Adsum [aqui
estou!]. Era o eco daquele eterno: Ecce ego, mitte me [eis-me
aqui, envia-me]. Sim, naquele dia eu me apresentei. E para quê? Para o
sacrifício, pois eu sabia que estava sendo chamado para junto de um altar, e o
altar é a imolação. Tenho que manter minha palavra: Adsum [aqui
estou!]. Para tudo o que Deus exigir de mim, para todos os sacrifícios,
minha resposta não poderá ser outra; não posso voltar atrás.
Tenho que
prolongar, até o fim da minha vida, a generosidade daquele momento que marcou o
início de uma imolação. E esta deverá prolongar-se até a minha morte. Accedant [aproxime-se]
— com esta palavra, a Igreja continua sempre acossando a minha covardia — quoniam
dies mali sunt [pois os dias são maus (Ef 5,16)]. Não
poderei vencer o comodismo egoísta de nossos dias a não ser com esse
desprendimento dos Apóstolos. Para tudo, e sempre: Adsum [aqui
estou!].
19 DE
OUTUBRO
Remittuntur
ei peccata multa [seus numerosos pecados foram perdoados (Lc
7,47)]
Ela era uma
pecadora, publicamente conhecida como tal: mulier quae erat in civitate
peccatrix [uma mulher que era uma pecadora da cidade]. Os que
se diziam santos fremebant in eam... [vociferavam contra
ela...] e chegaram mesmo a duvidar do Mestre: si esset propheta,
sciret utique quae et qualis est mulier quae tangit eum [se esse
fosse profeta, saberia quem e qual é a mulher que o toca (Lc 7, 39)].
Mas Aquele
que era realmente santo a acolheu. Melhor que todos os presentes, Ele sabia que
mulher era aquela; foi perdoada, quoniam dilexit multum [porque
mostrou muito amor]. E quem teria acreditado nesta razão que o Mestre
apresentava? Quando olho para a minha vida, não posso enumerar as minhas
faltas; o que sei é apenas isto: peccavi nimis [pequei
muitas vezes]. E assim, não posso dizer também quantas vezes fui perdoado.
Somente sei que pecando muito, Deus me perdoou demais.
Qual o
motivo desse perdão? Acaso porque eu o tenha amado muito, como a pecadora? Não.
Sei muito bem que, até agora, não o tenho amado como devia. No caso da pecadora
valeu esta explicação: dilexit multum [muito amor];
mas, no meu caso, preciso confessar que essa explicação não vale. Tem que ser
outro o motivo. Só posso dizer, então, que Ele me perdoou muito, porque Ele me
amou demais. Somente assim posso explicar esse perdão que até hoje não se
esgotou: in finem dilexit [amou até o fim] — Ele me
amou a mais não poder.
20 DE
OUTUBRO
Ita ut
possent neque panem manducare [não tinham lugar sequer
para se alimentarem (Mc 3,20)]
Era essa a
vida de Nosso Senhor e dos Apóstolos. Não podiam pensar em si mesmos. Et
convenit multitudo [e reuniu-se uma multidão] — a multidão
de sempre não lhes deixava um momento de sossego. Essa também, muitas vezes, é
a vida do padre, em meio às lutas do seu ministério.
E, graças a Deus, que a sua vida seja realmente como a vida do seu Mestre, de tal maneira que o zelo não lhe deixe tempo para pensar em si mesmo. No entanto, o padre não pode ser uma máquina de trabalho, mas uma alma em oração constante. E é por isso que, durante o dia, ele precisa não só alimentar o corpo, mas também abastecer o espírito.
Saiba, portanto, fazer de tudo um degrau para se aproximar de Deus. Se lhe falta o tempo para a oração, o espírito de oração não conhece tempo nem lugar, podendo transformar um dia cheio de ocupações num dia cheio de Deus. Em cada minuto, deve estar a eternidade. Se nos fala de Deus a multidão que se comprime numa igreja, com a oração à flor dos lábios, também nos pode e deve falar de Deus a multidão que enche as ruas e praças, levando no olhar as preocupações deste mundo. Sempre, em toda parte, podemos juntar as mãos, em oração: semper et ubique gratias agere [dar graças em todo o tempo e lugar].
21 DE
OUTUBRO
Sacerdotes
multi nomine, pauci vero opere [muitos sacerdotes de
nome, poucos verdadeiramente de obras (São Gregório)]
Era assim
no tempo do grande Pontífice da antiguidade. E, diante de certos casos, somos
tentados a perguntar: será que hoje a situação mudou? É com tristeza que, às
vezes, vem à nossa lembrança a palavra do Livro do Apocalipse: nomen
habes quod vivas; et tamen mortuus es [és considerado vivo, mas
estás morto (Ap 3,1)].
Poderá dizer que vive realmente para Deus e para as almas o sacerdote cuja virtude se reduz a evitar as faltas mais graves e cuja atividade se contenta com trabalhar um pouco? Em nossos dias, fala-se tanto da falta de sacerdotes! É verdade, somos poucos. Mas, o Reino dos Céus não é semelhante a uma sementinha? Se Nosso Senhor não exige que cada um seja mais do que deve ser, Ele exige também que não seja menos.
Olhando
para a sua Igreja, o Mestre já previu que a messe iria ser muito grande e os
operários poucos. Mas, se cada um fosse tanto quanto deve ser! Uma colher de
fermento seria então suficiente para influir em toda a massa. Foi por isso que
Nosso Senhor escolheu, para a conquista do mundo, apenas doze homens. Mas...
eram apóstolos, isto é, fermento de alta qualidade. Ecce mundus
sacerdotibus plenus est; et tamen, in messe Domini, rarus invenitur operator [há
muitos sacerdotes no mundo mas, na messe do Senhor, são raros os obreiros de
fato].
22 DE
OUTUBRO
Et erat
pernoctans in oratione [e passou toda a noite em oração (Lc
6,12)]
Depois de
passar o dia todo ensinando ao povo e atendendo a uma multidão de doentes,
pobres e ignorantes, Ele ainda podia passar noites em oração. É o que nós não
podemos fazer, ao menos habitualmente, sem prejuízo do nosso repouso, e por
isso, sem sacrifício da nossa saúde.
Se passamos
também o nosso dia mergulhados no trabalho que não nos dá tréguas, não podemos,
no entanto, descuidar a oração. Embora possamos transformar o nosso trabalho em
união com Deus, o recolhimento e a reflexão nos fazem falta. E, nesse caso, o
grande problema é o tempo. Se não podemos sacrificar a nossa atividade e o
necessário descanso, procuremos diminuir o tempo dado aos jornais, às visitas e
às conversas inúteis.
Sejamos
avaros do nosso tempo e ele não nos será tão escasso. Afinal, não é somente
para nós que o dia tem vinte e quatro horas apenas. Diz o Tridentino [Concílio
de Trento]: Deus impossibilia non iubet, sed iubendo monet et facere
quod possis, et petere quod non possis [Deus não manda o
impossível; mas, quando manda, te adverte de fazer aquilo que podes e pedir aquilo
que não podes]. Temos que realizar muita coisa que está acima de nossas
forças, a começar pela nossa vida interior. Se rezarmos, Deus estará conosco;
sem oração, Ele somente poderá assistir aos nossos fracassos.
23 DE
OUTUBRO
Adveniat
regnum tuum [venha a nós o Vosso reino (Mt 6,10)]
Esta
palavra reflete bem o único desejo que Nosso Senhor alimentou em sua vida:
estabelecer o Reino de seu Pai neste mundo. Esse foi também o único desejo dos
Apóstolos e a única aspiração dos santos em todos os tempos.
Ao entrar
em Atenas, São Paulo ficou simplesmente fora de si, vendo a cidade mergulhada
na idolatria: incitabatur spiritus eius in ipso, videns idolatriae
deditam civitatem [seu espírito enchia-se de amargura à vista da
cidade tomada pela idolatria (At 17,16)]. Apaixonado por Nosso Senhor o
Apóstolo queria ver o Mestre em toda parte, em todos os tempos: Christus
heri, Christus hodie, Ipse et in saecula [Jesus Cristo, ontem e
hoje, o mesmo pelos séculos dos séculos].
Se eu não
posso realizar o mesmo apostolado que São Paulo realizou, eu posso e devo ter o
mesmo zelo que ele teve. Meu programa é o mesmo que ele soube viver: impendam
et superimpendar [gastar-se e se desgastar]. Aos outros,
imersos na leviandade e no paganismo de hoje, se minha vida sacerdotal for um
espetáculo de fé, como deve ser, já será um apostolado simplesmente admirável.
Tenho que tornar mais viva em minha vida essa aspiração que, todos os dias, a
Igreja me põe nos lábios: adveniat regnum tuum! [venha a
nós o Vosso reino]. Somente assim irei viver, como o Apóstolo, premido
sempre pelo amor a Deus e às almas: Caritas Christi urget nos [o
amor de Cristo nos impulsiona (IICor 5,14)].
24 DE
OUTUBRO
Desertus
est locus iste [esse lugar é deserto (Mc 6,35)]
Foi num
lugar deserto, sem meios nem recursos, que Ele multiplicou os pães para a
multidão que o acompanhava. As almas que eu devo alimentar não estão em
melhores condições. Elas querem a grandeza infinita de Deus; e no mundo em que
vivem, só encontram a aridez, o vazio de um deserto.
E eu não
devo estranhar que elas estejam nessa situação. Justamente por isso elas
precisam de mim. No púlpito ou no confessionário, eu devo alimentar com minha
palavra aqueles que me pedem Deus e a sua eternidade. Sempre, em toda parte,
minha vida, nas mãos de Nosso Senhor, deverá ser uma pregação viva, uma
contínua palavra de vida eterna, para aqueles que só conhecem o deserto em que
vivem.
Se eu, que
tanto recebi, não alimentar as almas, quem o poderá fazer? E não posso me
queixar das dificuldades. Num meio culto ou entre ignorantes, nos grandes
centros ou numa simples aldeia, em altos cargos ou mesmo esquecido pela
obediência, tenho que repartir com as almas todas as riquezas que Nosso Senhor
colocou em minhas mãos, ut vitam habeant, et abundantius habeant [para
que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10)].
25 DE
OUTUBRO
Nemo
lucernam accendens... [ninguém acende uma lâmpada... (Lc 8,16)]
Para que
fôssemos a Luz do mundo, Deus nos escolheu e nos colocou nas alturas do
sacerdócio. Conhecendo bem a nossa responsabilidade, a Igreja, mãe previdente,
nunca deixou de se preocupar com seus filhos sacerdotes. Ela sabe que a nossa
fraqueza é grande e que as nossas faltas poderiam velar, aos olhos do mundo, a
luz que Deus acendeu em nossa vida.
Por isso
ela insiste conosco, através do [Concílio] Tridentino: sic decet omnino
clericos, in sortem Domini vocatos, vitam moresque suos omnes componere, ut
habitu, gestu, incessu, sermone aliisque omnibus rebus nihil nisi grave,
moderatum, ac religione plenum prae se ferant; levia etiam delicta, quae ipsis
maxima essent, effugiant, ut eorum actiones cunctis afferant venerationem [por
isso, é conveniente aos clérigos, chamados à sua vocação no Senhor, ordenar de
tal forma suas vidas e costumes que não manifestem em seus trajes, gestos,
passos ou conversações, nada de gravidade à sua conduta religiosa e que,
afastando-se mesmo das faltas leves que neles seriam muito graves, possam
inspirar a todos um especial respeito pelas suas ações].
Que nos
afastemos de toda e qualquer mancha, pois, aos olhos de outros, as mínimas
faltas seriam suficientes para empanar o brilho de nossa vida. Por isso,
acrescenta o Concílio [de Trento, sessão XXXII]: quum enim a rebus
saeculi in altiorem sublati locum conspiciantur, in eos, tamquam in speculum
reliqui oculos conjiciunt, ex iisque sumunt quod imitentur [ao
considerar (os sacerdotes) colocados acima de todas as coisas
temporais, (os fieis) põem neles os olhos como vendo um espelho do
qual possam tirar exemplos a imitar].
26 DE
OUTUBRO
Deus
innocentiae restitutor et amator... [Deus, postulador e
restaurador da inocência... ]
Santo
Inácio Mártir recomendava aos fiéis: baptismus vester maneat velut
arma, fides ut galea, caritas ut hasta, patientia ut tota armatura [o
batismo deve ser seu escudo; a fé, o elmo; a caridade, uma lança e a paciência,
sua armadura inteira]. É da união com Deus, estabelecida pelo Batismo, que
devemos tirar toda a nossa virtude.
Por isso, lembrando a Deus que Ele ama a inocência e a restitui quando perdida pelo pecado, a Igreja reza: dirige ad te tuorum corda servorum [velai pelos corações dos vossos servos], isto é, que os chame a essa união pela graça, ut in fide inveniantur stabiles, et in opere efficaces [para que sejam firmes na fé e ativos em obras]. Se a nossa vida estiver colocada sobre as verdades de uma fé profunda, ela será certamente uma vida cheia da atividade de Deus. Não podendo imaginar uma vida cristã fora das verdades eternas, como pensar numa vida sacerdotal colocada sobre uma outra base?
Nosso Senhor já nos avisou que não podemos construir sobre a areia. As verdades da fé estão continuamente diante de nós, pela Santa Missa, pelos Sacramentos, pelas festas litúrgicas de todo o ano. Que as saibamos viver; que, com elas, alimentemos nossa piedade e faremos chegar às almas aquela torrente de água viva que Nosso Senhor já previu: flumina fluent aquae vivae [hão de jorrar torrentes de água viva (Jo 7,38)].
27 DE
OUTUBRO
Tu es
Sacerdos in aeternum [tu és sacerdote eternamente].
A minha
vocação é o sacerdócio. E este sacerdócio da nova Lei exige que eu ofereça, não
somente a Vítima divina, mas também que eu me ofereça com ela. Todos os dias
tenho que imolar a minha vida, em união com a morte de Nosso Senhor pelos
pecados do mundo. A ideia de sacrifício e imolação é inseparável da minha
vocação sacerdotal.
Algum tempo
antes de sua morte, escrevia o Cardeal Leme: nem a mitra, nem a púrpura
constituem para mim objeto de culto. Minha vocação foi uma só e uma só continua
a ser: o sacerdócio. E para mim o sacerdócio não pode ser outra coisa que a
imolação de minha vida, pelas almas, para a maior glória de Deus.
Poderei ter
muito gosto e inclinação para as ciências profanas; poderei ter sempre dotes
artísticos; mas o meu sacerdócio terá que ser sempre aquele que o Pontífice já
me indicou: offerre, benedicere, praeesse, praedicare et baptizare [oferecer,
bendizer, presidir, pregar e batizar]. A Igreja, principalmente em nossos
dias, não precisa tanto de sábios e artistas que sejam apóstolos data
occasione [numa dada ocasião] apenas; ela precisa, muito mais
de apóstolos que sejam sábios e artistas, quando o apostolado o exigir.
28 DE
OUTUBRO
Unus est
bonus, Deus [só Deus é bom (Mt 19,17)]
Somente
Deus é bom; Ele é a bondade porque é o Amor. Portanto, eu não me posso
considerar tão bom assim, a ponto de esquecer ou desprezar aqueles que me
parecem maus. Eu os chamo de pecadores. E pecador eu também o sou.
Acaso
poderei dizer que minhas faltas são menos graves que as dos outros? Eu não
posso, nem devo julgar a ninguém, pois a minha maldade não pode nem sabe julgar
com justiça e sabedoria. Por eu viver dentro da casa de Deus, não posso
desprezar aqueles que não têm coragem de entrar. Se Deus olhou para mim, nenhum
mérito eu tive nisso. Aqueles que eu julgo pecadores, são filhos de Deus, como
eu. E se receberam menos do que eu, foi para que recebessem mais de mim.
O meu papel não é permanecer junto ao altar, lembrando a Deus uma virtude que não possuo. Seria melhor que eu ficasse à porta do templo, rezando humildemente como aquele meu irmão: 'Senhor, tende piedade de mim, pobre pecador!'... Sacerdos, viscera indutus misericordiae Christi, qui non venit vocare iustos, sed peccatores, sciat studiose, patienter et mansuete cum ipsis agere [o sacerdote, revestido de entranhas de misericórdia como Cristo, que não veio chamar os justos mas os pecadores, saiba portar-se com zelo, paciência e mansidão para com eles]. É assim que eu costumo proceder com aqueles que eu julgo pecadores?
29 DE
OUTUBRO
Non in
humanae sapientiae verbis [não com palavras de sabedoria humana [1Cor
2,4)]
'Quando São
Paulo dizia não pregar com artifício e palavras rebuscadas, o que lhe parecia
desprezível eram os ornatos supérfluos, vãs sutilezas, ostentações, frases de
efeito e todo palavreado não condizente com a dignidade e majestade do
púlpito.
Mas a força do Espírito, que estava nele, que dava às suas palavras força e eficácia, valorizava os dons da sua opulenta personalidade. Deste concurso do Espírito com a natureza provinha a sua incomparável e inimitável eloquência. Quem está cheio de Cristo, não encontrará dificuldade em ganhar a outros para Cristo. Mas, que o nobre ardor de conquistar as almas para Nosso Senhor não nos leve a uma ilusão tão fácil quanto funesta.
Enorme
seria o erro do Pastor de almas que voltasse toda a sua atenção e todos os seus
esforços aos grandes discursos, para circunstâncias solenes, esquecendo as
práticas dominicais e os catecismos semanais; que se contentasse com entregar
aos seus cooperadores esta parte, a mais humilde mas nem sempre a mais fácil,
do seu ministério. Tomai como exemplo aqueles países em que o catecismo na
Igreja e na escola é reputado por um dos mais honrosos deveres do sacerdote,
onde o pároco a si mesmo reserva, após séria preparação, o privilégio de o
ensinar pessoalmente no domingo aos jovens e velhos, na igreja repleta de
fiéis' (Pio XII).
30 DE OUTUBRO
Domum tuam
decet sanctitas [a santidade molde a tua casa]
'Uma coisa
nos preocupa, e muito: ter, nas Ordens Sagradas, homens que estejam
perfeitamente à altura da missão que desempenham. É certo que muitos sacerdotes
fazem reviver e crescer em si mesmos a graça de Deus, recebida no dia da
Ordenação Sacerdotal.
Mas temos a lamentar que outros não procedam como devem, de modo a oferecer, ao povo cristão que os contempla, o modelo de vida a praticar, e o exemplo a seguir. Insistentemente vos pedimos: Renovamini spiritu mentis vestrae, et induite novum hominem, qui secundum Deum creatus est in iustitia et sanctitate veritatis [renovai o sentimento da vossa alma e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade (Ef 4, 23-24) ]. Ao padre, bem mais que aos edifícios de nossos templos, se aplica esta palavra: Domum tuam decet sanctitas' [a santidade molde a tua casa]. Assim escreveu São Pio X.
Certamente
o sacerdote de hoje não pode viver como se estivesse no mundo antigo, de
séculos atrás. Mas, uma coisa é o padre conhecer a mentalidade e os problemas
do mundo atual e outra, seria ele condescender com o espírito mundano. Certas
liberdades e certas atitudes, que poderiam parecer modernas, somente
comprometem o bom nome do sacerdote. O Homo Dei [homem de
Deus], revestido do espírito mundano, seria um absurdo e uma profanação. O
que as almas pedem não é um homem do mundo, mas um homem de Deus.
31 DE
OUTUBRO
Doce nos
orare! [ensina-nos a rezar! (Lc 11,1)]
Livra-me,
Senhor, dessa piedade estéril que, movida por uma secreta vaidade, vive à
procura de pensamentos profundos, de termos elevados e ideias novas! Piedade
falsa, vazia, ela me deixa sempre, mais ou menos, na situação do teu Salmista
que lamentava: infixus sum in limo profundi; non est ubi pedem figam... [estou
imerso em espessa lama e não há como firmar o pé ...].
Quero pisar
a terra firme das verdades tão antigas que me ensinaste. Para mim, elas são
sempre novas. Foi com elas que rezaram os teus santos e, com elas, continua a
rezar a tua Igreja. Ensina-me a penetrar o teu Evangelho, para descobrir o teu
espírito de piedade e religião para com o Pai. Com esse espírito é que eu devo
rezar.
Os teus
anacoretas não tinham mestres nem bibliotecas, mas tinham a tua Palavra,
simples como a Verdade; e se fizeram santos porque a souberam viver e amar.
Minha piedade não pode ser tanto da inteligência pois não preciso de muita
filosofia para saber que eu te devo amar e servir; para isso basta-me a tua
Lei. Este coração sui generis [único em seu gênero,
especial] que me deste, não quer submeter-se a fórmulas estudadas, quando
se trata de amar o Amor infinito, a Beleza sem limites. Ele te quer amar simplesmente
com sinceridade, com todas as forças. Ele te quer amar, livre de todas as
medidas; como criança inocente que, por não ter estudos, nem por isso deixa de
saber amar.
10 DE NOVEMBRO
NOVEMBRO
10 DE NOVEMBRO
Quae praeparavit Deus... [o que Deus tem preparado... (1Cor 2,9)]
O que Deus me preparou, na sua eternidade, como recompensa
desta minha vida, ultrapassa tudo o que eu possa imaginar: oculus non
vidit, nec auris audivit [os olhos não viram, nem os ouvidos
ouviram]. Mas um dia, talvez logo, eu irei ver; é isto o que me dizem todos
aqueles que já estão gozando essa recompensa.
Esse é o trabalho que eu devo realizar durante toda a minha vida; e ele não está dependendo tanto do meu esforço, como da graça com a qual sempre deverei contar. A todo momento, preciso estar em condições de poder digne eligi [merecer ter sido escolhido]. Continuamente devo estar sobre o candelabro para que, praedicatione atque exemplo [pela pregação e exemplo], possa atrair as almas para Deus. Minha missão é construir pela santidade. Por isso tenho que pôr todo o meu empenho em não destruir, pela tibieza, que sem a minha vigilância, poderá envolver a minha vida.
E somente vive a verdade aquele que priva, com Deus, por uma intensa vida interior. Sabemos bem o que seja essa agitação exterior do mundo. Cansadas dessa agitação, as almas procuram quem lhes ofereça uma vida diferente, fruto da união com Deus, com verbum, exemplum, oratio, tria haec; maior autem his oratio [três coisas: palavras, exemplo e oração, mas a maior delas é a oração (São Bernardo)]. No Getsêmani, quando tudo parecia perdido, o programa traçado pelo Mestre foi apenas este: Vigilate et orate! [Vigiai e orai!].
Para o Bom Pastor, teria sido certamente mais fácil cuidar das suas noventa e nove ovelhas e esquecer aquela que se perdeu. No entanto, Ele abandonou o rebanho no deserto e foi à procura da ovelha extraviada. Preferiu o mais difícil. A melhor prova do meu amor a Deus deve ser o meu zelo pelas almas. Se pouco faço por elas, é porque não vivo muito preocupado com Deus.
Sim, foi uma guerra santa a que eu sustentei para salvar a minha alma e as almas que me confiaste. Que maior consolo para mim? Então poderei pensar: in reliquo reposita est mihi corona iustitiae [resta-me agora receber a coroa da justiça]. Que alegria para mim, pensar que dei a minha vida pelas tuas ovelhas, no altar de tua glória! Que consolo não terei, sabendo que, enquanto eu arava no teu campo, vinhas atrás, recolhendo cuidadosamente as gotas do meu suor para, com elas, formar a minha eternidade! Irei saber então como trabalharam as tuas mãos, para tecerem a minha corona iustitiae [coroa da justiça].
Ad thronum gratiae [ao trono da graça (Hb 4,16)]
Esse trono da graça e da misericórdia divina é, sem dúvida o confessionário. E somente nós, sacerdotes, podemos operar esse milagre de ressuscitar as almas. É certo que, geralmente, o confessionário nos põe, sobre os ombros, um trabalho que nos sacrifica, uma responsabilidade que nos poderia desanimar e abater.
Quanta crise lamentável não começou no confessionário porque, em vez de ver as almas, o padre viu somente as pessoas! Que Deus nos livre de transformar em fonte de pecados, para nós e para as almas, o Sacramento da fonte da misericórdia e do perdão. O fervor das almas não depende tanto dos grandes pregadores, como dos confessores de doutrina segura e profunda piedade. Fortiter in re, suaviter in modo [firmeza no trato, suavidade nos modos].
Que Ele esteja nas minhas preocupações, em toda a minha atividade porque, sem Ele, minha vida sacerdotal será um fracasso: sine me nihil potestis facere [sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5)]. Ele é quem, todos os dias, sobe comigo ao altar, para dizer: Hoc est Corpus meum [Este é o Meu Corpo]. No confessionário, Ele quem está comigo, para dizer: Ego te absolvo [Eu te absolvo]. No púlpito, é Ele quem prega com as minhas palavras: qui vos audit, me audit [quem vos ouve, a mim ouve (Lc 10,16)].
Se a minha generosidade não chega a tanto, é porque continuo dominado pelo espírito de temor. Todos nós somos, mais ou menos, sensíveis a uma prova de amizade ou simpatia. Assim também as almas reconhecem logo no sacerdote ou o Bom Pastor, que a elas se dedica, ou o mercenário, que se poupa em tudo, preocupado sempre consigo mesmo. Entre um e outro, a diferença é muito grande...
Tua linguagem, com os Mestres da Lei, foi das mais duras e severas. Sei que os chamaste de sepulcros caiados, cheios de podridão. Naquele dia viste menos perigo no veneno das serpentes do que na hipocrisia daqueles que chamaste de víboras. Agora que estão consumando o crime há muito planejado; agora que estão gozando a tua agonia, conquistada a preço de dinheiro e traição, a tua misericórdia esquece tudo... e me diz que a Justiça não devia falar naquela hora do teu Amor.
Cheio de entusiasmo e boa intenção, o jovem padre atira-se ao trabalho dos seus primeiros anos de ministério. Preocupado com mil coisas, sem muita experiência, vai-se dedicando mais à vida exterior que à oração e recolhimento. Passam os primeiros anos de fervor. A dissipação vai tomando conta daquela alma, cada vez mais árida e menos apoiada em Deus. As primeiras faltas são os trovões que anunciam a tempestade.
A nossa imolação pelas almas só pode ter suas raízes na Santa Missa, da qual se alimenta, e toma a sua forma própria. Quanto menos unida ao Santo Sacrifício, tanto menos sentido terá a nossa imolação de todos os dias. Temos que levar, pelo dia afora, o fervor, a ideia do Sacrifício, pondo em toda a nossa atividade aquele ar de penitência e imolação, tom de Calvário que deve embalsamar toda a nossa existência. Que não haja nenhum vale do Cedron, separando o Cenáculo de nossa Missa e o Getsêmani de nossa atividade. No altar, e durante o dia, temos que ser a mesma vítima, em estado de imolação, pelas armas, para glória do Pai.
Ninguém poderá dizer-se sine labe originali conceptus [concebido sem pecado original], achando que não precisa ter cuidado. Esse é justamente o maior perigo: enganar-se alguém, pensando que o perigo não existe, ou existe somente para outros. Judas viveu com Nosso Senhor. E, no entanto, fracassou miseravelmente. E como ele, quantos outros! Aquele que não temia já caiu e aquele que não teme, está para cair, basta que se apresente a ocasião. Quanta leviandade a refletir-se nesse modo de pensar: não há perigo. E não será diabólica a malícia com que se procura negar o que o próprio Nosso Senhor afirmou?
Trabalhar, apenas, é próprio daqueles que não vivem sobrenaturalmente na caridade. Nós temos que trabalhar, rezando, pois oração e trabalho se confundem, se in caritate fiant [feitos na caridade]. Note-se que as almas de oração, os grandes místicos, foram também almas extraordinariamente ativas: São João da Cruz, Santa Teresa, São Paulo e tantos outros. E Nossa Senhora, a alma que mais de perto cooperou com o Redentor, não foi ela simplesmente uma alma de oração?
Com essa coragem é que o Apóstolo podia dizer: Verbum Dei non est alligatum [a palavra de Deus não está acorrentada (2Tm 2,9)]. Como iremos ensinar a Verdade se não a vivemos? E como poderemos vivê-la se não a conhecemos? Inabalável na sua fé, o sacerdote poderá pregar, alimentando o seu zelo pelas almas com seu amor à Verdade. Não irá conhecer crises nem desânimos porque, amando a Deus, saberá responder a todas as dificuldades: scio cui credidi [sei em quem acreditei (2Tm 1,12)].
E porque a tua bondade me diz que ainda te posso fazer pedidos, aqui estou para pedir: no momento em que o traidor te abandonou, erat autem nox... [e já era noite... (Jo 13,30)]. Mas, aquela noite teve o seu entardecer. Senhor, que a minha vida não conheça o entardecer da tibieza e da indiferença, porque ninguém se perde de um momento para outro. Que a minha fidelidade saiba, de agora em diante, corresponder ao teu amor: sic nos amantem, quis non redamaret? [quem não amaria quem tanto nos amou?].
Entre o luxo e ambição, entre a sensualidade e o orgulho, temos que abrir caminho para a penitência, para a caridade e o desapego, preparando os corações para a graça. E, nesse trabalho, sentimo-nos, muitas vezes, num deserto. Não encontramos boa vontade nem cooperação; a saúde e as qualidades não auxiliam, os meios e os recursos são escassos. Clama ne cesses! [Clama sem cessar!]. Não podemos desanimar, nem cruzar os braços porque as coisas não vão bem ou não correm de acordo com os nossos planos.
O Evangelho nos mostra bem a posição de Nosso Senhor perante o Pai celeste: reverência filial, aconchego e distância, confiança e respeito ao mesmo tempo. Há, em sua vida terrena, momentos de adoração, de agradecimento e de expiação. Essa terá que ser também a nossa vida sacerdotal de todos os dias, que o Apóstolo das Índias tão bem resumiu no seu lema. Seremos então os religiosos de Nosso Senhor. Per Ipsum, et cum Ipso [Por Ele e com Ele], iremos dar toda glória ao Pai, na imolação contínua de nossa vida pelas almas.
A única tristeza, a do pecado, não é o desespero, mas o arrependimento cheio de confiança e amor. Pudor sit ut diluculum* [tão puro quanto o arrebol]: o amanhecer é todo um hino ao Criador, em notas de maravilhosa grandeza, mas também de admirável discrição e misteriosa naturalidade. O nosso dia, feito de trabalhos e cuidados, deverá ser um hino de adoração, agradecimento e reparação.
* versos do hino 'Splendor Paternae Gloriae', de Santo Ambrósio.
Quatriduanus est enim [porque há quatro dias está aí (Jo 11,39)]
Quem vos nescitis [quem vós não conheceis (Jo 1, 26)]
Por isso a graça não o tocou de leve, nem pouco a pouco. Subito circumfulsit eum lux [subitamente envolto em luz] — ele compreendeu que era inútil perseguir a quem o podia dominar: Ego sum Jesus, quem tu persequeris [Eu sou Jesus, a quem persegues]. Começou a amar a Verdade que odiava e dela se fez o Apóstolo: abundantius illis omnibus laboravi [tenho trabalhado (por esta Verdade) mais do que todos].
O seu silêncio não era um comodismo egoísta; era um recolhimento ativo, de quem desejava tratar diretamente com o Pai; era o silêncio de um a sós com Deus. Eu, pelo contrário, tenho medo da solidão. Não aprecio muito ouvir minha consciência; tenho medo de me encontrar com aquele que realmente sou. Prefiro falar, e ouvir a outros, para me distrair de mim mesmo. E fora dessa teia de aranha que são os meus cuidados e ocupações exteriores, não me sinto bem.
Foi uma multidão que esperava a minha palavra e o meu exemplo. E ninguém voltou de mãos vazias?... Nosso Senhor sabe que eu não posso fazer milagres. Nem está exigindo isso de mim. Mas Ele sabe o quanto já me deu, avisando-me: sine me nihil potestis facere [sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5)]. Vendo a multidão que eu devo alimentar, não posso desanimar como os Apóstolos: sed haec quid sunt inter tantos? [o que é isso para tanta gente?].
Nestes dias a minha consciência deverá pensar nisso. Santo Afonso, que tanto fizera para a glória de Deus e a salvação das almas, rezava nos últimos dias de sua vida: 'Meu Deus, dai-me a graça de fazer alguma coisa por Vós!' Seja essa a minha jaculatória e esse o meu desejo de sempre. E no fim da minha vida, será esse o meu consolo também: poder pensar que fiz alguma coisa para Nosso Senhor e, por isso, poder esperar a corona iustitiae [coroa da justiça] que Ele me haverá de dar.
Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20,28)]
Isso foi tudo o que o Apóstolo São Tomé soube dizer ao Mestre, quando o viu, realmente ressuscitado. Não se negando a aceitar a verdade, queria apenas uma prova convincente. Houve, em sua atitude, uma prudente reserva em aceitar uma notícia que poderia ser precipitada, naqueles dias de agitação e comentários. Quod volumus, libenter credimus... [Cremos de bom grado no que queremos...].
E Nosso Senhor recompensou a sinceridade do seu Apóstolo, dando- lhe a prova que esperava. Tendo diante de si o seu Mestre ressuscitado, o Apóstolo admitiu prontamente a verdade e tirou logo a consequência: Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus!]. A ressurreição fê-lo compreender que seu Mestre era realmente Deus e Senhor.
Se eu pudesse falar com a mesma sinceridade do Apóstolo: Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus!]. Se, em minha vida, essas palavras refletissem a verdade! Se eu me julgo mais pronto que o Apóstolo em aceitar as verdades da Fé, posso dizer que sou consequente como ele, aceitando, em minha vida, as conclusões dessas verdades?
Sabendo que a nossa dignidade é um privilégio, o mundo não a suporta e tudo faz para diminuí-la. Não podemos condescender com esse espírito de leviandade, banalizando uma grandeza que ele desconhece. Tu Domine universorum, qui nullam habes indigentiam, voluisti templum tuum fieri in nobis. Conserva domum istam immaculatam in aeternum, Domine! [Ó vós, senhor do universo, que bastais a vós mesmos e que quisestes tornar-vos um santuário em nós, conservai imaculada esta morada para sempre, senhor! (Mc 14, 35 - 36)].
Por isso, antes de consumar seu aniquilamento e a imolação, Ele pôde rezar: Ous consummavi quod dedisti mihi ut faciam; nunc clarifica me, Tu Pater, claritate quam habui, priusquam mundus esset, apud Te [Terminei a obra que me destes para fazer; agora, Pai, glorifica-me junto de ti, concedendo-me a glória que tive junto de ti, antes que o mundo fosse criado (Jo 17, 4-5)]. Que a minha Missa de todos os dias ponha diante de meus olhos a missão de toda a minha vida: imolar-me per Ipsum, et cum Ipso [por Ele e com Ele]. Somente dessa imolação poderá nascer a minha glória eterna: quia dilexisti me, ante constitutionem mundi [porque me amou desde a criação do mundo].
O inaestimabilis dilectio caritatis! [Ó incomparável predileção do amor!]
Num simples rancho, destinado aos animais. Abandono, pobreza e miséria. Nem altar e nem genuflexório. Uma mulher, ajoelhada no chão, rezando. E uma deliciosa melodia gregoriana lembra aos meus ouvidos: Inviolata, integra et casta es, Maria!... [Intocada, casta e pura sois vós, Maria!...].
Compreendo: Ela é a Virgem anunciada pelo Profeta. Ecce Virgo concipiet [Eis que a Virgem conceberá]. Ela reza diante de um estábulo porque dentro dele, sobre palhas, está um Menino recém nascido. Compreendo: Verbum caro factum est... [E o Verbo se fez carne...]. Há, em todo esse ambiente, uma grandeza divina que eu não vejo, mas que eu sinto, porque me faz refletir, de joelhos: nihil nobis nasci profuit, nisi redimi profuisset [de nada nos serviria ter nascido, se não tivéssemos sido redimidos].
Quero rezar e não sei como. Qualquer palavra parece uma profanação, em meio ao silêncio que reza com Nossa Senhora. Mesmo assim, uno-me à Igreja extasiada, para rezar com ela: In illius inveniamur forma, in quo tecum est nostra substantia... Sicut homo genitus idem refulsit et Deus, sic nobis haec terrena substantia conferat, quod divinum est... ut cuius lucis mysteria in terra cognovimus, eius quoque gaudiis in caelo perfruamur... [podemos ser assemelhados a Ele, em quem a nossa substância [humana] está unida... tal como aquele que nasceu como homem e que também se fez resplandecer como Deus, assim também esta substância terrena [o pão e o vinho na eucaristia] consubstancia o que é divino... para que os que conhecemos os mistérios de sua luz na terra, também desfrutemos da sua alegria no céu...].
Et pannis eum involvit [e o envolveu em faixas (Lc 2,7)]
Com que carinho Nossa Senhora não o fez! O carinho de sua Mãe — essa a única riqueza que Nosso Senhor não dispensou; riqueza que Ele mesmo criara para si. De resto, o Presépio era para Ele o início da grande Imolação: tinha que ser um homem pobre, que não tivesse onde reclinar a cabeça; e tinha que ser um pobre homem, tido como louco, traído e condenado à cruz.
Com que cuidado Ele não me escolheu, um dia! Com que carinho não me revestiu do sacerdócio: Induit me vestimentis salutis, et indumento iustitiae circumdedit me, quasi sponsam ornatam monilibus suis! [Revestiu-me com vestes de salvação e cingiu-me com o manto de justiça, e como uma esposa que se enfeita com as suas jóias! (Is 61,10)]. Para início do seu Sacerdócio, no Presépio, Ele se fez homem; para início do meu sacerdócio, na ordenação, Ele me fez quase Deus. Era apenas o começo da minha imolação. Como Ele, tenho que ser um homem pobre, cuja única riqueza é a Vontade do Pai: Meus cibus... ut perficiam opus eius [meu alimento... e cumprir a sua obra (Jo 4,34)].
Dum inveniri potest [enquanto se pode encontrá-Lo (o Senhor) (Is 55,6)]
Um ano que passou — é um ano a menos em minha vida. Não seja essa uma tristeza pagã para mim. Se, em cada minuto que passa, eu ganho um pouco da minha eternidade, nada estou perdendo certamente. Chegando agora ao fim deste ano, eu olho para o ponto de partida... já ficou tão longe!
Tenho agora que juntar as mãos e agradecer a Nosso Senhor porque, apesar de tudo, Ele aceitou os meus trabalhos; realmente eram seus. E, com o mesmo fervor dos primeiros dias, quero continuar ganhando a minha eternidade em cada dia que passa: Quaerite primum regnum Dei [Buscai primeiro o Reino de Deus]. Em cada minuto de minha vida posso ganhar alguma coisa a mais de Nosso Senhor para minha alma e para as almas. Quaerite Dominum, dum inveniri potest [Buscai o Senhor, enquanto se pode encontrá-Lo].
Devorador das coisas, durante este ano, quanta riqueza não malbaratou, quantos sonhos não desfez, quanto plano não destruiu! Edax rerum mearum! [Meu devorador de tudo!]. Como um vendaval, o tempo passou também junto a mim. E levou consigo vidas que cresciam junto à minha, amizades que eu prezava, planos que eu construía. Em tudo, em todos, deixou suas impressões digitais, que ninguém consegue disfarçar. Ele passou, marcando bem a sua passagem.
E Deus foi tão bom que, desde toda a eternidade, já pensou
no prêmio que me quer dar; Ele não deixou esse assunto para a última hora: possidete
vobis paratum regnum o constitutione mundi [tomai posse do Reino
que vos está preparado desde a criação do mundo (Mt 25,34)]. É que
Deus, Pai amoroso como é, não vê a hora de poder gozar a alegria com os seus
filhos. Parece que, sem essa alegria, Ele não seria inteiramente feliz.
Este mundo é tão pequeno e, no entanto, é tão grande para
atrair o meu interesse e para desviar a minha atenção da eternidade! Mas não
posso esquecer que, in domo Patris mei mansiones multae sunt [na
casa do meu Pai, há muitas moradas (Jo 14,2)] — e um desses lugares
está à minha espera; é o meu lugar, e será meu eternamente. Nolite
diligere mundum, neque ea quae in mundo sunt! [Não ameis o mundo
nem as coisas do mundo! (I Jo 2, 15)] — Como apegar-me ao mundo, se
Deus me acena com a sua eternidade? Dissoluta huius incolatus domo,
aeterna in caelis habitatio comparatur [enquanto nossa pousada aqui
se deteriora, nos espera a morada eterna no Céu].
02 DE NOVEMBRO
Qui non praecesserunt cum signo fidei [os que nos precederam com o sinal da fé...].
Eles já partiram porque Deus os chamou. Eu ainda continuo
neste mundo e por quanto tempo? Não sei. O que sei é que preciso preparar a
minha eternidade, enquanto Deus me dá o tempo. Ainda posso fazer merecer para a
vida eterna.
A devoção às almas lembra-me a hora da morte, a malícia do
pecado, a bondade e a justiça de Deus. Além disso, a experiência mostra como as
almas são agradecidas aos nossos sufrágios. Elas saberão fazer por nós, movidas
pela caridade e pelo reconhecimento. A Igreja quase não sabe rezar sem se
lembrar das benditas Almas do Purgatório. Com quanto carinho e insistência ela
não repete, a cada passo, essa jaculatória predileta: Et fidelium
animae, per misericordiam Dei, requiescant in pace! [Que as almas
dos fieis (defuntos), pela misericórdia de Deus, descansem em
paz!].
Todos os dias eu peço, com a Igreja: Memento,
Domine... [Lembrai-vos, Senhor...]. Sim, que Nosso Senhor se
lembre e que eu também não me esqueça daqueles que já partiram, e esperam
minhas orações e meus sacrifícios, ut indulgentia quam semper
optaverunt, piis suplicationibus consequantur [para que possam
alcançar o perdão que sempre desejaram, por meio de súplicas piedosas].
Hoje sou eu quem rezo pelas almas; amanhã, na glória, elas irão pedir a Deus
por mim: hodie mihi, cras tibi [hoje (para mim) sou
eu, amanhã (para ti) vós].
03 DE NOVEMBRO
Scis illos dignos esse? [Sabeis
se eles são dignos?]
Tinha razão a Igreja, naquele dia, manifestando a sua
preocupação, pois, quem poderia se dizer digno de participar do sacerdócio
eterno de Cristo? No entanto, ela, me chamou, e ela me recebeu: Accedant! [Aproxime-se!].
Preocupada, a Igreja rezou por mim, dizendo: Eluceat
in eis totius forma iustitiae [brilhe neles o modelo de toda
justiça (virtude)]. E ainda me advertiu: tales esse
studeatis, ut digne, per gratiam Dei, eligi valeatis [se esforce de
tal forma que possa ser digno, pela graça de Deus, de merecer ter sido
escolhido]. Se ela me achou digno, Deus, no entanto, me devia receber e
elevar à dignidade que Ele não quis confiar aos seus anjos. A Igreja sabia bem
a responsabilidade que eu estava recebendo, ao aceitar a sacra molles
sacerdotii [sagrada suavidade do sacerdócio]: ut
praedicatione atque exemplo aedificetis domum, id est, familiam Dei [para
que, pela pregação e exemplo, edifiqueis a casa, isto é, a família (Igreja) de
Deus].
Esse é o trabalho que eu devo realizar durante toda a minha vida; e ele não está dependendo tanto do meu esforço, como da graça com a qual sempre deverei contar. A todo momento, preciso estar em condições de poder digne eligi [merecer ter sido escolhido]. Continuamente devo estar sobre o candelabro para que, praedicatione atque exemplo [pela pregação e exemplo], possa atrair as almas para Deus. Minha missão é construir pela santidade. Por isso tenho que pôr todo o meu empenho em não destruir, pela tibieza, que sem a minha vigilância, poderá envolver a minha vida.
04 DE NOVEMBRO
Innova in visceribus eorum spiritum sanctitatis! [Renova no coração deles o espírito de santidade!]
Foi assim que, um dia, a Igreja rezou por nós. Preocupada
com a santidade que nos deve distinguir, ela sabe que não seremos a luz do
mundo e nem o sal da terra, a não ser pelo exemplo de uma vida realmente
sacerdotal. Ministros de Deus, temos que estar acima dos fiéis, não somente
pela dignidade, mas principalmente pela virtude.
Para todos, o sacerdote há de ser o bonus odor
Christi [o bom odor de Cristo], que embalsama as almas,
elevando-as sempre mais. E dessa forma, a sua vida será uma advertência contínua
para os que não prezam a virtude: censuram morum exemplo suae
conversationis insinuent [suas vidas sejam tomadas como modelos de
conduta]. Foi o que ouvimos no dia de nossa ordenação. Para combatermos o
erro, devemos, sim, pregar a verdade; mas faremos muito mais se a soubermos
praticar e viver.
E somente vive a verdade aquele que priva, com Deus, por uma intensa vida interior. Sabemos bem o que seja essa agitação exterior do mundo. Cansadas dessa agitação, as almas procuram quem lhes ofereça uma vida diferente, fruto da união com Deus, com verbum, exemplum, oratio, tria haec; maior autem his oratio [três coisas: palavras, exemplo e oração, mas a maior delas é a oração (São Bernardo)]. No Getsêmani, quando tudo parecia perdido, o programa traçado pelo Mestre foi apenas este: Vigilate et orate! [Vigiai e orai!].
05 DE NOVEMBRO
Quaerens me sedisti lassus [a
buscar-me Vos cansastes (Oração Dies Irae)]
Foi à procura das almas que Nosso Senhor se cansou,
percorrendo aquelas estradas cobertas de pó, ao sol e à chuva, sem ter onde
reclinar a cabeça. Alter Christus [(como) Outro Cristo],
devo ter o mesmo zelo e o mesmo interesse para procurar as almas, e não esperar
que elas me procurem.
Para o Bom Pastor, teria sido certamente mais fácil cuidar das suas noventa e nove ovelhas e esquecer aquela que se perdeu. No entanto, Ele abandonou o rebanho no deserto e foi à procura da ovelha extraviada. Preferiu o mais difícil. A melhor prova do meu amor a Deus deve ser o meu zelo pelas almas. Se pouco faço por elas, é porque não vivo muito preocupado com Deus.
Deve haver outros cuidados em minha vida, ocupando o lugar
daquela que devia ser a minha única preocupação: Ex hominibus
assumptus, pro hominibus constituitur [escolhido entre os homens e
constituído a favor dos homens (Hb 5,1)]. Posso dizer que minhas
orações e as minhas atividades vivem preocupadas com as almas? Não será, entre
queixas e reclamações, que aceito, por não ter outro remédio, certos
sacrifícios que o ministério pastoral me impõe? Quantas vezes o meu zelo não se
atemoriza diante de uma obrigação que vem exigir ou prejudicar o meu descanso,
meu gosto e minha distrações! Com mais amor às almas, eu poderei realizar um
pouco mais para Deus. Vivit amor excessibus [o amor vive de
excessos].
06 DE NOVEMBRO
Qui condolere possit [o
que sabe compadecer-se (Hb 5,2)]
Este é o zelo que as almas esperam de nós: zelo cheio de
caridade e compaixão. E o motivo, São Paulo no-lo dá: quoniam et ipse
circundatus est infirmitate [porque se está também rodeado de
fragilidades]. Reconhecendo-se pecador, e desejando ser tratado com
misericórdia, o sacerdote irá compreender que as almas esperam ser tratadas por
ele com a mesma caridade, com a mansidão de Nosso Senhor.
Misereor super turbam [Tenho compaixão dessa gente]— era com olhos de
misericórdia que Ele via a todos, inocentes ou pecadores. E junto ao sepulcro
de Lázaro, Ele nos deixou perceber como sabe sentir e chorar com os que sofrem.
Como dizer-se um outro Cristo o sacerdote que não tivesse um coração aberto a
todos, cheio daquela mansidão e misericórdia com que o Mestre chamava: Venite
ad me omnes qui laboratis et onerati estis? [Vinde a mim, todos
vós que estais cansados e atribulados (Mt 11,28)].
Quanto nos comove São Paulo, na sua carta ad
Philemonem! [para Filêmon]. Paulus senex, vinctus Jesu
Christi, obsecro te pro meo filio Onesimo. Tu illum, pro mea viscera, suscipe [Paulo,
já idoso e preso a Jesus Cristo, venho suplicar-te em favor deste meu filho
Onesimo; recebei-o como a meu próprio coração]. Nem a velhice e nem os
sofrimentos do cárcere puderam impedir que o Apóstolo se preocupasse com a
sorte de um simples escravo, ao qual chama de filho! Imitatores mei
estote! [sejais os meus imitadores (1Cor 4,16)].
07 DE NOVEMBRO
Si dimisero eos... [se
os despedir... (Mc 8,3)]
E, no meio daquela multidão, haveria muitos indiferentes,
curiosos e até muitos inimigos do Mestre, à cata de acusações que o pudessem
condenar. No entanto, Nosso Senhor viu diante de si apenas uma multidão que
precisava do seu milagre. E Ele não o recusou. Tendo multiplicado os pães,
todos aproveitaram da sua misericórdia infinita.
São Paulo diz que nós devemos: condolere iis qui
ignorant et errant [compadecer dos que estão na ignorância e no
erro (Hb 5,2)]. Na multidão que está sempre diante de nós, encontraremos
almas de boa vontade, é certo; mas não faltam os indiferentes e os inimigos do
bem e da virtude. Somos de todos, e a todos, igualmente, precisamos facilitar o
caminho que os leve à Verdade. Por aqueles qui ignorant et errant [que
estão na ignorância e no erro], Nosso Senhor já rezou um dia: Pater,
dimitte illis! [Pai, perdoai-os!]. Se o Mestre pediu o perdão
para eles, não seremos nós que os iremos condenar com a nossa indiferença e com
o nosso desprezo.
Muitas vezes, essa atenção para com os que ignoram a Verdade
e mesmo para com os que erram, irá exigir verdadeiros sacrifícios ao nosso
comodismo e amor próprio. Pensemos então que, por nós, e por eles, Nosso Senhor
fez muito mais: In principio erat Verbum, et Verbum caro factum est;
descendit de caelis, ... et circuibat civitates et castella, docens et
praedicans Evangelium regni [No princípio era o Verbo e o Verbo se
fez carne, desceu dos céus... e percorria todas as cidades e
aldeias, e ensinava e pregava o Evangelho do Reino (Mt 9,35)].
08 DE NOVEMBRO
Pasce oves meas [apascenta
as minhas ovelhas (Jo 21,17)]
Se a obediência não me coloca em contato direto com a cura
de almas, nem por isso estou dispensado de me interessar pela salvação de meus
irmãos. Interessar-se pelas almas, na oração e no sacrifício, já é certamente
apascentar as ovelhas de Nosso Senhor. E, dessa forma, posso interessar-me por
todos, ut omnes Christo lucri faciam [para que todos possam
ganhar Cristo (Fp 3,8)].
Pio XII escreveu: 'É certo que os fiéis necessitam do
auxílio de Nosso Senhor pois, Ele mesmo disse: Sem mim nada podeis fazer. No
entanto, ainda que pareça estranho, temos que dizer que Cristo também precisa dos
seus membros. Não porque os seus méritos sejam insuficientes, mas porque Ele
assim o quis, para maior honra de sua Esposa imaculada'.
Ao morrer na cruz, Ele pôs nas mãos da
sua Igreja o imenso tesouro da Redenção, sem que ela cooperasse nisso; mas, para
distribuir e comunicar esse tesouro, não só entrega à Igreja a obra da
santificação, mas também quer que, de algum modo, que esse trabalho seja seu.
Mistério tremendo que nunca será bastante meditado: a salvação de muitos está
dependendo da oração e do sacrifício de muitos outros. E posso dizer quantas
almas Deus confiou às minhas orações, aos meus sacrifícios?
09 DE NOVEMBRO
Cursum consummavi [terminei
a minha carreira (2Tm 4,7)]
Um dia, será meu último dia e, com ele, chegará a minha
última hora neste mundo. Serei feliz então, meu Deus, se puder lançar um último
olhar sobre a minha vida, para dizer, com toda pureza de consciência: Bonum
certamen certavi [combati o bom combate].
Sim, foi uma guerra santa a que eu sustentei para salvar a minha alma e as almas que me confiaste. Que maior consolo para mim? Então poderei pensar: in reliquo reposita est mihi corona iustitiae [resta-me agora receber a coroa da justiça]. Que alegria para mim, pensar que dei a minha vida pelas tuas ovelhas, no altar de tua glória! Que consolo não terei, sabendo que, enquanto eu arava no teu campo, vinhas atrás, recolhendo cuidadosamente as gotas do meu suor para, com elas, formar a minha eternidade! Irei saber então como trabalharam as tuas mãos, para tecerem a minha corona iustitiae [coroa da justiça].
Mas, enquanto esse dia não chega, quero continuar no meu
trabalho, procurando e atendendo as almas, sedula cura et effusa caritate [com
esmerado cuidado e profunda caridade], como quer a tua Igreja. Que eu não
tenha de lamentar a perda de uma alma, cuja salvação me confiaste. Por isso
quero rezar nestes dias que me restam, como rezaste em tuas últimas horas neste
mundo: Pater sancte, serva in nomine tuo quos dedisti mihi! [Pai
Santo, guardai em Vosso Nome os que me destes a Vos conhecer! (Jo 17,
11)].
10 DE NOVEMBRO
Ad thronum gratiae [ao trono da graça (Hb 4,16)]
Esse trono da graça e da misericórdia divina é, sem dúvida o confessionário. E somente nós, sacerdotes, podemos operar esse milagre de ressuscitar as almas. É certo que, geralmente, o confessionário nos põe, sobre os ombros, um trabalho que nos sacrifica, uma responsabilidade que nos poderia desanimar e abater.
Temos que pensar, no entanto, que pesam, muito mais,
sobre Nosso Senhor os pecados que estão diante de nós, à espera do
perdão. Não seja o confessionário uma sala de visitas, para conversas
inúteis, para assuntos que nada têm a ver com o Sacramento. Não seja
consultório médico, para casos de histeria e semelhantes. Nem seja
delegacia de queixas e reclamações. Seja tão somente o tribunal da
penitência e do perdão.
Quanta crise lamentável não começou no confessionário porque, em vez de ver as almas, o padre viu somente as pessoas! Que Deus nos livre de transformar em fonte de pecados, para nós e para as almas, o Sacramento da fonte da misericórdia e do perdão. O fervor das almas não depende tanto dos grandes pregadores, como dos confessores de doutrina segura e profunda piedade. Fortiter in re, suaviter in modo [firmeza no trato, suavidade nos modos].
11 DE NOVEMBRO
Psallite Deo nostro [cantai
ao Nosso Deus (Sl 146, 7)]
O Breviário é, por excelência, a oração da Igreja em nossos
lábios: nos autem orationi instantes erimus [nós
atenderemos sem cessar à oração (At 6,4)]. Fomos escolhidos para rezar
oficialmente, em nome de todos aqueles que são o Corpo místico de Nosso Senhor.
De certo modo somos os intercessores das almas junto a Deus.
Velho ou novo, bonito ou feio, o nosso Breviário deverá ter
sempre, para nós, a beleza de uma oração perene, que remonta aos Patriarcas e
aos Profetas, cheia sempre de vida e de frescor, reanimando nossa fé e
confiança em Deus. Amigo de todas as horas, deverá lembrar-nos que, sem oração,
a nossa alma será como a terra sem a bênção das chuvas. E ela devia estar
vestida sempre com as virtudes, trescalando o bonus odor
Christi! [bom odor de
Cristo].
Seja o nosso Breviário rezado durante o dia; deixá-lo para a
noite será o mesmo que condená-lo à imolação, pelo cansaço e falta de fervor.
Se possível, na igreja, diante do Santíssimo; rezá-lo distraidamente, em
qualquer lugar, atendendo a pessoas ou a trabalhos, dando uma palavrinha aqui,
outra ali, será apenas ler o Breviário e muito mal. Não sendo possível na
igreja, intra in cubiculum tuum, et clauso ostio, ora Patrem [entra
no teu aposento (quarto), fecha a porta e ora ao Pai (Mt
6,6)].
12 DE NOVEMBRO
Projecisti verba mea post te? [tens distribuído minhas palavras ao teu redor? (Sl
49,17)]
A leitura espiritual — este é um ponto que o nosso horário
de cada dia não pode esquecer. Ela é necessária para alimentar o nosso fervor,
assim como a lenha, para alimentar uma fogueira. Quanto bem a leitura
espiritual não fará à nossa alma, e às almas, se a fizermos sempre com o
necessário recolhimento e fervor!
Para que ela produza resultado, temos que ler, meditando.
Precisamos penetrar os pensamentos, porque uma simples leitura não chegaria a
alimentar a nossa piedade. Escolhamos os livros. Alguns há, prurientes
auribus [pruridos nos ouvidos] que, pretendendo preencher
lacunas, acabam deixando vazio o nosso coração. Desorientam a nossa piedade
porque, tendo tudo, esses livros não têm o necessário sabor espiritual.
Haec mea sublimior interiorque philosophia: scire Jesum, et
hunc crucifixum [esta é a minha filosofia mais
elevada e profunda: conhecer senão Jesus e este Crucificado (I Cor
2,2)] — dizia São Bernardo. Para nos tornar sempre mais conhecido o Crucificado
que devemos viver e ensinar, não há nenhum livro como o Evangelho.
Acrescentemos as Epístolas, principalmente ad Timotheum, ad Titum, ad
Hebraeos [a Timóteo, a Tito, aos Hebreus]. Escolhamos, enfim,
livros escritos não somente com inteligência, mas também e principalmente, com
piedade.
13 DE NOVEMBRO
Dominus vobiscum [o
Senhor esteja convosco].
Tantas vezes repito esta palavra, porque eu o desejo para os
fiéis. E a Igreja o deseja muito mais para mim. Que Ele esteja comigo, para que
as almas o vejam na minha vida de oração e sacrifício. Que Ele esteja em mim,
pela sua graça, para que eu o possa dar a todos que não o conhecem.
Que Ele esteja nas minhas preocupações, em toda a minha atividade porque, sem Ele, minha vida sacerdotal será um fracasso: sine me nihil potestis facere [sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5)]. Ele é quem, todos os dias, sobe comigo ao altar, para dizer: Hoc est Corpus meum [Este é o Meu Corpo]. No confessionário, Ele quem está comigo, para dizer: Ego te absolvo [Eu te absolvo]. No púlpito, é Ele quem prega com as minhas palavras: qui vos audit, me audit [quem vos ouve, a mim ouve (Lc 10,16)].
Sempre, em toda parte, Ele não me abandona porque tem uma
promessa a cumprir: Ego vobiscum sum [Eu estou convosco].
Isto me deve lembrar que eu também tenho uma palavra a cumprir: Dominus
pars hereditatis meae [Senhor, vós sois a minha parte de herança (Sl
15,5)]. Esta foi a condição com a qual Ele me aceitou no seu serviço: que eu me
interessasse por Ele e por ninguém mais; que eu lhe fosse absolutamente sincero
no meu amor. Se Ele não me interessa, se eu não o desejo sicut servus
desiderat ad fontes aquarum [como o cervo anseia a fonte das águas (Sl
41,2)], com que consciência vivo repetindo a todos: Dominus vobiscum [o
Senhor esteja convosco]?
14 DE NOVEMBRO
Pater noster... [Pai
nosso...]
Foi assim que Ele me ensinou a tratar com o meu Deus:
chamando-o de Pai, como Ele mesmo o chamava. Mais de cem vezes, no Evangelho de
São João, Nosso Senhor repete o termo Pater [Pai]. E,
para ganhar a minha confiança, Ele fez questão de mostrar a confiança que
sempre pusera no Pai.
Há uma secreta alegria em seu coração, ao dizer: Ego
Patris mei praecepta servavi, et maneo in eius dilectione [Eu
guardei os mandamentos do meu Pai e persevero no seu amor (Jo 15,
10)]. Sente-se feliz, podendo reparar o desprezo do mundo para com Deus: Pater
iuste, mundus te non cognovit; ego autem te cognovi [Pai justo, o
mundo não te conheceu, mas eu te conheci (Jo 17, 25)]. Porque confia
inteiramente na Providência do Pai que veste as flores do campo, Filius
hominis non habet ubi caput reclinet [o Filho do Homem não tem onde
repousar a cabeça (Mt 8,20; Lc 9,58)].
Dirigindo-se para a agonia do Horto, diz não estar sozinho,
porque o Pai o acompanha. E é nas mãos de seu Pai que entrega o seu último
suspiro. Meu Deus, embora culpado, o filho pródigo sabia que seu pai não se
transformara num inimigo seu. Apesar de toda a minha miséria, quero continuar
guardando esse espírito de confiança e docilidade, in quo clamamus:
Pater [pelo qual clamamos: Pai].
15 DE NOVEMBRO
Es bonus et clemens [(o
Senhor) é bom e clemente (Sl 85,5)]
Se toda a vida de Nosso Senhor é uma pregação sobre a
misericórdia divina, um convite à confiança em Deus, não nos passa despercebido
o prazer com que o Mestre coloriu, com tanta vida, as parábolas que nos falam
da bondade do Pai.
Tratando-se da ovelha perdida, o Pastor relinquit
nonaginta novem in deserto, et vadit ad illam quae perierat donec inveniat
illam [deixa as noventa e nove (ovelhas) no
deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la (Lc 15,4-5)]
— nenhum mau trato, nenhum ressentimento; inponit in umeros suos
gaudens [a coloca sobre o ombros em júbilo] — quanto
carinho e atenção! No caso da moeda perdida, quase estamos a ver aquela mulher
aflita que accendit lucernam, et everrit domum, et quaerit diligenter,
donec inveniat [acende a lâmpada, varre a casa e a busca
diligentemente, até encontrá-la (Lc 15,8)]. Et cum invenerit [e
depois de encontrá-la] — é aquela festa — convocat amicas et
vicinas, dicens: Congratulamini mihi! [reúne os amigos e vizinhos,
dizendo-lhes: regozijai-vos comigo! (Lc 15,9)].
Quando o filho pródigo volta para a sua casa, o pai manda
que se lhe faça a maior festa possível. Não poderia haver mágoa nem tristeza,
naquela hora da misericórdia e do perdão. Quanto empenho em nos mostrar uma
bondade infinita, que nós insistimos em não reconhecer! Quantas preocupação em
nos abrir os infinitos dilectionis thesauros [tesouros de
amor], que nós, infelizmente, não queremos aproveitar!
16 DE NOVEMBRO
Sobrii estote, et vigilate [sede
sóbrios e vigiai (1Pd 5,8)]
'Esta fuga e vigilância, para não nos expormos às ocasiões
de pecado, parece que não são hoje compreendidas por todos, embora os santos as
tenham considerado sempre o melhor meio de luta nesta matéria (da castidade).
Pensam de fato alguns que os cristãos, especialmente os
sacerdotes, já não devem ser uns separados do mundo, como outrora, mas devem,
pelo contrário, estar presente ao mundo e, por conseguinte, arrostar o perigo e
pôr à prova a sua castidade, para assim se patentear se têm ou não suficiente
força para resistir. Que os jovens clérigos vejam tudo... para se habituarem a
encarar tudo sem perturbação, e para se imunizarem contra toda espécie de
tentação...
Facilmente se vê a falsidade e perigo de tal maneira se
formar o clero e de o preparar para a santidade da sua missão; pois, quem ama o
perigo nele perecerá. A recomendação de Santo Agostinho não perdeu nada da sua
oportunidade: ‘Não digais que tendes almas puras, se tendes olhos impuros,
porque os olhos impuros são mensageiros de um coração impuro’. Qual o
jardineiro que expõe às intempéries plantas escolhidas, mas ainda tenras, sob o
pretexto de as experimentar?' (Pio XII)
17 DE NOVEMBRO
Speramus in Deum vivum [temos
esperança em Deus vivo (1Tm 4,10)]
O sacerdote não é somente o homem da fé, mas é também o
homem da esperança. Conta com a glória final, como prêmio e recompensa do seu
apostolado; confia na infinita liberalidade dAquele ao qual serviu: ut
heredes simus secundum spem vitae aeternae [para que sejamos, pela
esperança, herdeiros da vida eterna (Tt 3,7)].
Ele não se prende ao mundo porque a eternidade o atrai; e
para alcançá-la, não mede sacrifícios, nem desanima: laboro usque ad
vincula [se afatiga (por Cristo) até na prisão (2
Tm 2,9)]. É que o sacerdote não deseja o Reino de Deus realizado somente em si
mesmo. Quer ver as almas todas formando esse Reino, onde ele, praedicator
et apostolus [pregador e apóstolo], terá um lugar de
destaque: judicantes duodecim tribus Israel [julgando as
doze tribos de Israel (Mt 19,28)].
Homem da esperança, ele não se deixa abater ante à cruz que,
todos os dias, o espera; sabe que a imolação é apenas o caminho, a conditio
sine qua non [condição sem a qual não (é possível)] para a
glória. Nesse desejo e nessa certeza de uma recompensa eterna, para si e para
as almas, o sacerdote encontra o segredo da sua tenacidade no trabalho e da sua
perseverança no sacrifício. Laboramus et maledicimur, quia speramus in
Deum vivum [afatigamos e nos dispomos aos ultrajes porque temos
esperança em Deus (1 Tm 4,10)]. E compreenderá então porque o Apóstolo
afirmava: Non enim dedit nobis Deus spiritum timoris, sed virtutis [Deus
não nos deu um espírito de tibieza, mas de fortaleza (2Tm 1,7)].
18 DE NOVEMBRO
Tradidit semetipsum pro me [entregou
a si mesmo por mim (Gl 2,20)]
São Paulo não esquecia o quanto recebera de Nosso
Senhor: dilexit me [me amou] — Ele me amou, e tão
apaixonadamente, que chegou a morrer por mim. O que o Apóstolo sabia, eu também
não ignoro. No entanto, ele vivia no espírito de amor que recebera, amando sem
medida a Deus e as almas, ao passo que eu... vivo no espírito de temor e
covardia, poupando-me em tudo.
Essa mesquinhez é que me torna, às vezes, indiferente aos
interesses de Nosso Senhor, não permitindo que me preocupe demasiado com a
glória de Deus e a salvação das almas. Donum Dei [Dom de
Deus] — Nosso Senhor não se poupou, mas tradidit semetipsum [entregou
a si mesmo]; sendo um outro Cristo, tenho que perpetuar essa dádiva de Deus
ao mundo, entregando-me também às almas, no trabalho de cada dia.
Se a minha generosidade não chega a tanto, é porque continuo dominado pelo espírito de temor. Todos nós somos, mais ou menos, sensíveis a uma prova de amizade ou simpatia. Assim também as almas reconhecem logo no sacerdote ou o Bom Pastor, que a elas se dedica, ou o mercenário, que se poupa em tudo, preocupado sempre consigo mesmo. Entre um e outro, a diferença é muito grande...
19 DE NOVEMBRO
Pater, dimitte illis! [Pai,
perdoa-lhes! (Lc 23,34)]
Senhor, confesso que não entendo bem esta palavra, que só a
tua misericórdia infinita me pode explicar.. Eu te ouvi, condenando os
fariseus, num longo discurso cujos termos não primavam pela mansidão nem pela
doçura.
Tua linguagem, com os Mestres da Lei, foi das mais duras e severas. Sei que os chamaste de sepulcros caiados, cheios de podridão. Naquele dia viste menos perigo no veneno das serpentes do que na hipocrisia daqueles que chamaste de víboras. Agora que estão consumando o crime há muito planejado; agora que estão gozando a tua agonia, conquistada a preço de dinheiro e traição, a tua misericórdia esquece tudo... e me diz que a Justiça não devia falar naquela hora do teu Amor.
Pater dimitte illis! [Pai,
perdoa-lhes!]. Por que?... Seria possível desculpá-los? Non enim
sciunt quid faciunt [porque não sabem o que fazem (Lc
23,34)] — só mesmo o teu Amor infinito podia achar este motivo, melhor esta
desculpa, que só o Pai poderia compreender. Francamente, Senhor, não entendo a
tua palavra. Mas, se a não entendo, eu a bendigo e adoro, porque amo a tua
misericórdia que, em meu favor, já terá pronunciado a mesma desculpa, muitas e
muitas vezes...
20 DE NOVEMBRO
Caritatem tuam primam reliquisti [arrefeceste o teu primeiro amor (Ap 2,4)]
Nosso Senhor não deixa de reconhecer a nossa boa vontade, o
nosso trabalho e sacrifício: scio opera tua, et laborem et patientiam
tuam [conheço tuas obras, e teu trabalho e paciência (Ap
2,2)]. O seu amor não esquece nada.
Assim mesmo, ele tem uma queixa a nos fazer, e isso é bem triste,
certamente: habeo adversum te quod caritatem tuam primam reliquisti [tenho
contra ti que arrefeceste o teu primeiro amor (Ap 2,4)]. Nosso Senhor
nos acompanhou sempre, e sabe, por isso, que houve uma mudança em nossa vida.
Com o correr dos anos, facilmente aumentamos o nosso zelo e atividade; mas
também, facilmente diminuímos nosso fervor.
No dia da nossa ordenação, recebemos da Santa Igreja um
programa: imitamini quod tractatis [imita o que celebras].
Sabíamos que era esse um programa de todos os dias, para toda a nossa vida. A
princípio nosso entusiasmo não conheceu dificuldades, ou, se as houve, nosso
fervor as venceu. Sequar te, quocumque ieris [eu te
seguirei para onde quer que fores] — era assim que rezava a nossa boa
vontade. Mas, com o tempo, o entusiasmo foi diminuindo. De tão longo, e de tão
monótono, o caminho foi se tornando penoso demais. Descendit procella
venti [desceu uma tempestade de vento (Lc 8,23)] — à
medida que caiu sobre nós o peso da idade e do trabalho, talvez tenham cedido
os alicerces do fervor. Prima opera fac!... [Volve às (tuas) primeiras
obras!... (Ap 2,5)].
21 DE NOVEMBRO
Age poenitentiam, sin autem... [arrepende-te, pois, senão... (Ap 2,5)]
Aqueles que perderam o caminho do fervor e acabaram
abandonando a Vocação, certamente nunca meditaram essa palavra: age
poenitentiam; sin autem movebo candelabrum tuum [arrepende-te,
pois, senão será removido o teu candelabro]. Com que alegria Nosso Senhor
não acendeu a luz do caráter sacerdotal na alma do seu eleito, colocando-o super
candelabrum, in medio Ecclesiae! [(como luz) sobre o
candelabro (candeeiro), no meio (coração) da
Igreja].
Entre pompas e solenidades, a Igreja recebeu de braços
abertos o seu novo ministro, no qual via uma força e uma esperança. Passados,
porém, os primeiros anos de fervor, as primeiras faltas anunciaram outras que
se foram se repetindo. A dissipação não deu lugar ao arrependimento nem à
penitência. Pouco a pouco aquela pobre alma foi chegando à beira do
despenhadeiro.
Com que amargura, então, Nosso Senhor viu chegar o momento
de movere candelabrum [remover o candelabro (Ap
2,5)], permitindo que o seu sacerdote mergulhasse, de uma vez, na escuridão da
própria impenitência! Quomodo cecidisti! [Como caíste!].
É que uma luz apagada, in medio Ecclesiae [no meio (coração) da
Igreja] ou o sal que se deixou corromper, ad nihilum valet ultra [para
nada mais servem]. A nossa Missa de cada dia está entre dois gritos de
penitência: Kyrie, eleison!... [Senhor, tende piedade!...]
e Agnus Dei, miserere nobis! [Cordeiro de Deus, tende
piedade de nós!]. Seja assim também toda a nossa vida; sin
autem... [senão ...].
22 DE NOVEMBRO
Amice, ad quid venisti? [amigo,
é para isso que vieste? (Mt 26, 50)]
Até a última hora, Nosso Senhor tentou salvar o seu Apóstolo
infiel, tratando-o com toda a mansidão e caridade. Mas a sua graça não pôde
mais penetrar o gelo daquela alma infeliz.
Cheio de entusiasmo e boa intenção, o jovem padre atira-se ao trabalho dos seus primeiros anos de ministério. Preocupado com mil coisas, sem muita experiência, vai-se dedicando mais à vida exterior que à oração e recolhimento. Passam os primeiros anos de fervor. A dissipação vai tomando conta daquela alma, cada vez mais árida e menos apoiada em Deus. As primeiras faltas são os trovões que anunciam a tempestade.
A duras penas o padre vai-se arrastando, até que a crise
arrebenta: um choque com a autoridade, uma imprudência grave, uma falta mais
pesada. É a hora em que deve encontrar um Bom Samaritano, um colega, um
confessor que lhe dê a mão da caridade e da experiência. Um falso respeito ou
uma reverência que não se justifica nos levam, às vezes, a omitir uma
palavrinha cheia de caridade que poderia alertar a consciência de um colega
necessitado. Não adianta? Mesmo assim a caridade nos obriga. Com razão dizia
Santo Afonso: 'se raros são os bons confessores para os fiéis, mais raros são
eles para os sacerdotes'.
23 DE NOVEMBRO
Et hymno dicto... [e
terminado o canto (dos Salmos)... (Mc 14,26)]
Terminada a Última Ceia, os discípulos recitaram, com o
Mestre, o cântico final, prescrito e saíram, in montem Olivarum [para
o Monte das Oliveiras]. Do Cenáculo ao Getsêmani, a diferença era muito
grande e mal pensavam eles o que estava para acontecer naquela noite: percutiam
pastorem, et dispergentur oves [ferirei o pastor e as ovelhas serão
dispersas (Mc 14, 27)].
A Santa Missa é o nosso Cenáculo de cada dia. Recitadas as
preces finais, retiramo-nos do altar, com aquela impressão de que o sacrifício
terminou. Não nos lembramos que um outro altar está à nossa espera: o altar de
nossas obrigações diárias, que reclamam a sua vítima. De modo algum poderemos
separar a Santa Missa do nosso dia de trabalho. O sacrifício é o sentido de
toda a nossa vida sacerdotal.
A nossa imolação pelas almas só pode ter suas raízes na Santa Missa, da qual se alimenta, e toma a sua forma própria. Quanto menos unida ao Santo Sacrifício, tanto menos sentido terá a nossa imolação de todos os dias. Temos que levar, pelo dia afora, o fervor, a ideia do Sacrifício, pondo em toda a nossa atividade aquele ar de penitência e imolação, tom de Calvário que deve embalsamar toda a nossa existência. Que não haja nenhum vale do Cedron, separando o Cenáculo de nossa Missa e o Getsêmani de nossa atividade. No altar, e durante o dia, temos que ser a mesma vítima, em estado de imolação, pelas armas, para glória do Pai.
24 DE NOVEMBRO
Ambulate in dilectione [progredi
na caridade (Ef 5,2)]
Na oração de hoje, pede a Igreja a Deus, imitemos a São João
da Cruz, crucis amatorem eximium [exímio amante da Cruz].
Esse título dado ao grande Místico deveria ser a característica de toda vida
sacerdotal. Se a nossa vocação é o sacrifício, amar a cruz é, para nós, viver a
nossa vocação.
Sicut et Christus dilexit nos, et tradidit semetipsum pro
nobis [como (o exemplo
de) Cristo, que nos amou e se entregou a si mesmo por nós (Ef
5,2)], assim também, diz o Apóstolo, ambulate in dilectione [progredi
na caridade]. Viver na caridade, pela entrega de si mesmo ao sacrifício e à
imolação de cada dia — esse é o pensamento de São Paulo. Portanto, amar as
almas como Cristo as amou é, para nós, reviver os sofrimentos e a imolação de
Nosso Senhor. Por isso reza a Igreja: Tuam sacratissimam passionem
cordibus nostris impressam, moribus et vita teneamus [conservemos,
pela nossa vida e conduta, a vossa santíssima Paixão impressa nos nossos corações].
O mesmo pensamento inspirou Santo Afonso quando determinou,
para os seus missionários, a meditação diária sobre a Paixão e Morte do
Redentor. Como levar às almas uma Redenção que não conhecemos, porque a não
sabemos viver? Que o mundo possa ver em nós o Redentor sacrificado pelas almas:
esta a graça que a Igreja nos pede, como consequência do Santo
Sacrifício, imensae caritatis tuae memoriale perpetuum [memorial
perpétuo de vossa infinita caridade].
25 DE NOVEMBRO
Vigilate et orate [Vigiai
e orai (Mc 14,38)]
Não é conselho de um santo; é a palavra mesma de Nosso
Senhor aos seus discípulos, no Jardim das Oliveiras. E se eles tivessem
permanecido vigilantes, a traição não os teria colhido de surpresa, provocando
aquela fuga pelo medo e covardia.
Vigilate [Vigiai]
— é uma ordem; estamos cansados de saber como é volúvel a nossa vontade e fraca
a nossa natureza. Se ainda não nos convencemos disso é porque, nem sempre, o
nosso orgulho se resolve a reconhecer a realidade, ainda mais quando esta nos
humilha e nos obriga a certos sacrifícios. Vigiar, evitando as ocasiões,
mantendo um domínio perfeito de nossas tendências, de nossos sentimentos e
desejos.
Ninguém poderá dizer-se sine labe originali conceptus [concebido sem pecado original], achando que não precisa ter cuidado. Esse é justamente o maior perigo: enganar-se alguém, pensando que o perigo não existe, ou existe somente para outros. Judas viveu com Nosso Senhor. E, no entanto, fracassou miseravelmente. E como ele, quantos outros! Aquele que não temia já caiu e aquele que não teme, está para cair, basta que se apresente a ocasião. Quanta leviandade a refletir-se nesse modo de pensar: não há perigo. E não será diabólica a malícia com que se procura negar o que o próprio Nosso Senhor afirmou?
26 DE NOVEMBRO
Spiritus quidem promptus [o
espírito está pronto (Mc 14,38)]
Nosso Senhor é o primeiro a reconhecer a nossa boa vontade.
Não fosse assim, e se Ele não pudesse contar com nosso esforço, nem nos precisaria
avisar: caro autem infirma [mas a carne é fraca]. Todos
os dias estamos constatando que a nossa natureza não foi tomada de nenhum anjo;
na expressão do Apóstolo, temos uma natureza de morte: quis me
liberabit de corpore mortis huius? Gratia Dei, per Jesum Christum [Quem
me livrará desse corpo mortal? Graças a Deus, por (meio de) Jesus
Cristo].
Mas a graça não nos será dada se a não pedirmos. Por isso
devíamos pensar que, se diariamente, recomendamos aos fiéis: orate,
fratres [orai, irmãos] — somos nós os mais necessitados de
seguir esse conselho da Santa Igreja. Omnia vestra in caritate fiant [Tudo
o que fazeis, fazei-o na caridade (I Cor 16,14)] — não podemos separar
o trabalho da oração; Marta e Maria eram irmãs e viviam juntas muito bem.
Trabalhar, apenas, é próprio daqueles que não vivem sobrenaturalmente na caridade. Nós temos que trabalhar, rezando, pois oração e trabalho se confundem, se in caritate fiant [feitos na caridade]. Note-se que as almas de oração, os grandes místicos, foram também almas extraordinariamente ativas: São João da Cruz, Santa Teresa, São Paulo e tantos outros. E Nossa Senhora, a alma que mais de perto cooperou com o Redentor, não foi ela simplesmente uma alma de oração?
27 DE NOVEMBRO
Intra in gaudium Domini tui! [vem regozijar-te com o teu Senhor! (Mt
25,21)]
'Numa grande solidariedade pessoal e social, todos deviam
estar prontos a trabalhar, a consagrar-se, a imolar-se ao bem dos outros. Quem
poderia encontrar alegria e repouso, quem não sentiria, pelo contrário, mal
estar e vergonha, vivendo comodamente em meio a uma quase geral tribulação?
Os preceitos são os mesmos para todos porque não há duas
verdades e nem duas leis. Ricos e pobres, grandes e pequenos, importantes e
humildes, todos são igualmente obrigados a submeter, pela fé, a inteligência ao
mesmo dogma e, pela obediência e vontade, à mesma moral. Contudo o justo juízo
de Deus será muito mais severo para com aqueles que mais receberam e que têm
mais capacidade para conhecer a única doutrina, e de a pôr em prática na vida
cotidiana; que, com a própria autoridade e com o próprio exemplo, podem mais
facilmente dirigir outros no caminho da justiça e da salvação, ou, então,
perdê-los pelos desvios funestos da incredulidade e do pecado.
Fortificai, pois, no fundo de vossos corações, a resolução
de corresponder plenamente ao que Cristo, a Igreja e a sociedade esperam,
confiantes em vós, a fim de que, no dia da grande retribuição, possais ouvir a
palavra beatífica do Juiz Supremo: euge, serve bone... intra in gaudium
Domini tui!' [muito bem, servo bom... vem regozijar-te com o teu Senhor!]
(Pio XII).
28 DE NOVEMBRO
Credimus, propter quod et loquimur [cremos e, por isso, testemunhamos (2Cor
4,13)]
Chamado a penetrar os mistérios divinos e a transmitir a
Verdade às almas, o sacerdote é, por excelência, o homem que crê. Alimentando a
sua inteligência, as verdades da Fé penetram e iluminam toda a sua vida.
A primeira consequência, então, para ele, é um grande e
apaixonado amor à Verdade. Justamente porque vive na Verdade, ele a ama e
procura difundi-la, insiste em defendê-la e dedica-se a afastar das almas toda
doutrina que discorde do Evangelho: tradidi vobis quod et accepi [transmiti
a vós o que eu recebi]. Quanto mais conhecer a Verdade, tanto mais a saberá
amar; e, nesse amor que nada teme, encontrará aquela firmeza de que necessita,
para levar a Fé aos que a não possuem.
Com essa coragem é que o Apóstolo podia dizer: Verbum Dei non est alligatum [a palavra de Deus não está acorrentada (2Tm 2,9)]. Como iremos ensinar a Verdade se não a vivemos? E como poderemos vivê-la se não a conhecemos? Inabalável na sua fé, o sacerdote poderá pregar, alimentando o seu zelo pelas almas com seu amor à Verdade. Não irá conhecer crises nem desânimos porque, amando a Deus, saberá responder a todas as dificuldades: scio cui credidi [sei em quem acreditei (2Tm 1,12)].
29 DE NOVEMBRO
Non veni vocare justos, sed peccatores [não vim chamar os justos, mas os pecadores (Mc
2,17)]
Senhor, quanto consolo para mim nesta palavra! Quando me
dizes que tuas atenções estão voltadas para os pecadores, eu sei que te lembras
daqueles que te amam, sem esquecer, no entanto, a ovelha que se perdeu. Apesar
de toda a minha miséria, posso ainda pensar que mereço os teus cuidados.
Eu sei que a tua misericórdia foi capaz de abandonar noventa
e nove ovelhas no deserto, arriscando perder todo o rebanho por causa de uma
ovelha apenas, que o teu amor não queria perder. Não fosse esse teu gesto... e
eu não estaria no teu rebanho, merecendo as tuas atenções. Bendito seja o teu
amor de Pai, fazendo festa ao filho pródigo que volta!
E porque a tua bondade me diz que ainda te posso fazer pedidos, aqui estou para pedir: no momento em que o traidor te abandonou, erat autem nox... [e já era noite... (Jo 13,30)]. Mas, aquela noite teve o seu entardecer. Senhor, que a minha vida não conheça o entardecer da tibieza e da indiferença, porque ninguém se perde de um momento para outro. Que a minha fidelidade saiba, de agora em diante, corresponder ao teu amor: sic nos amantem, quis non redamaret? [quem não amaria quem tanto nos amou?].
30 DE NOVEMBRO
Bonus eris minister Christi [sereis bom ministro de Cristo (1Tm 4,6)]
'Desejamos fazer um paternal e afetuosíssimo apelo aos
sacerdotes... Queremos dizer-lhes que, certamente, podem lançar mão de todos os
meios de apostolado moderno. Mas seria engano grave fundar as verdadeiras
esperanças do ministério sacerdotal em certas novidades que não constituem a
solução essencial que devemos dar aos problemas de hoje.
Não será, pois, o feitio mais moderno do traje e nem certos
desembaraços de atitudes e modos, nem certas tendências por se acomodar ao
espírito do século, que hão de promover os suspirados êxitos do apostolado; mas
sim, e sempre, um imenso amor a Jesus Cristo, modelo sacerdotal ontem, hoje e
amanhã, unido a uma grande compreensão e caridade para com o próximo.
Como São Paulo, será preciso fazer-se tudo para todos; fé e
pureza, fortaleza e sacrifício, dignidade e doutrina, é o que se requer no
padre. O espírito profano destoa no sacerdote, e, aos poucos, o torna penoso
para si e para os demais... No meio aos leigos, não como leigo, mas como mestre
de espírito, deve o padre ser como o raio de sol que desce luminoso do alto sobre a terra, sem se tornar terra, sem deixar de ser luz' (Pio XII).
DEZEMBRO
10 DE DEZEMBRO
Nunc proprior est nostra salus [a nossa salvação está mais próxima (Rm
13,12)]
O Natal vem de perto e a Igreja insiste conosco, para que
nos preparemos. Colocando-se mais perto de nós, pela Encarnação, Deus nos quer
mais perto da sua grandeza, para que a nossa vida se ilumine com a luz de um
sol que não conhece ocaso: dies appropinquavit; abjiciamus opera
tenebrarum [o dia se aproxima; despojemo-nos das obras das trevas].
Mais fervor na oração, mais dedicação no trabalho e mais
pureza de consciência, porque precisamos viver em pleno dia, riscando de nosso
programa as opera tenebrarum [obras das trevas].
Não seja letra morta para nós toda a insistência que a Igreja põe nas orações
da Santa Missa e do Ofício Divino. Como iremos preparar as almas, se não nos
preocupamos com a nossa alma?
Certamente merecem a nossa atenção o Natal dos pobres, o
Natal das crianças ou da paróquia. Mas... e o nosso Natal? Esse deverá ser
celebrado em nossa alma, é exclusivamente nosso. No entanto, já começamos a
preparação? Veni, ut ab imminentibus peccatorum nostrorum periculis
mereamur, te liberante, salvari [Vinde (Senhor), para
que, por vossa proteção, sejamos preservados dos perigos iminentes dos nossos
pecados e sejamos livres e salvos]. Assim reza a Igreja durante toda uma
semana do Advento. Rezemos com a Igreja, e trabalhemos com a graça. Dominus
prope est [o senhor está próximo (Fp 4,5)] — Ele sempre
estará perto da nossa miséria; que não fiquemos longe dele pela indiferença.
02 DE DEZEMBRO
Vox clamantis in deserto [uma
voz clama no deserto (Mt 3,3)]
Uma voz clamando no deserto — era o Precursor, preparando as
almas para a chegada do Messias. Somos também precursores de Nosso Senhor e a
nossa missão é preparar os seus caminhos nas almas.
Entre o luxo e ambição, entre a sensualidade e o orgulho, temos que abrir caminho para a penitência, para a caridade e o desapego, preparando os corações para a graça. E, nesse trabalho, sentimo-nos, muitas vezes, num deserto. Não encontramos boa vontade nem cooperação; a saúde e as qualidades não auxiliam, os meios e os recursos são escassos. Clama ne cesses! [Clama sem cessar!]. Não podemos desanimar, nem cruzar os braços porque as coisas não vão bem ou não correm de acordo com os nossos planos.
Dominus vobiscum [o
Senhor esteja convosco] — Ele estará conosco, basta que estejamos com Ele.
Nosso Senhor somente abandona quando se vê abandonado. Aquela vox
clamantis in deserto [voz que clama no deserto] penetrou as
cidades e movimentou regiões inteiras porque era a voz de um homem que vivia para
Deus. Conhecendo a nossa incapacidade, rezemos com a Igreja que também
reconhece a nossa miséria: ad praeparandas Unigeniti tui vias, ubi
nulla suppetunt suffragia meritorum, tuis nobis succurre praesidiis [para
que se preparem os caminhos do vosso Filho Unigênito; já que os nossos
sufrágios não possuem quaisquer méritos, assisti-nos com o vosso auxílio].
03 DE DEZEMBRO
Soli Deo honor et gloria [honra
e glória somente a Deus (1Tm 1,17)]
São Francisco Xavier tinha, como lema, estas palavras: para
Deus, todo o meu amor; para o próximo, todo o meu zelo e, para mim, todos os
sacrifícios. Antes do grande Missionário, Nosso Senhor já havia realizado este
programa, com absoluta perfeição. Esse é bem o lema de toda uma vida
sacerdotal.
Ao Cardeal Mercier disseram, certo dia,
alguns padres: 'a vida de oração e de recolhimento não é tanto para nós porque
não somos monges nem religiosos'. 'Realmente' — respondeu o Cardeal — 'não sois
religiosos, mas sois os religiosos, por excelência'. Como Nosso Senhor foi o
Religioso de seu Pai, assim temos que ser os religiosos de Nosso Senhor.
O Evangelho nos mostra bem a posição de Nosso Senhor perante o Pai celeste: reverência filial, aconchego e distância, confiança e respeito ao mesmo tempo. Há, em sua vida terrena, momentos de adoração, de agradecimento e de expiação. Essa terá que ser também a nossa vida sacerdotal de todos os dias, que o Apóstolo das Índias tão bem resumiu no seu lema. Seremos então os religiosos de Nosso Senhor. Per Ipsum, et cum Ipso [Por Ele e com Ele], iremos dar toda glória ao Pai, na imolação contínua de nossa vida pelas almas.
04 DE DEZEMBRO
Sub peccati iugo deprimimur [oprimidos sob o jugo do pecado]
A Igreja reza para que o Natal nos livre dessa escravidão do
pecado: expectata Unigeniti tui nova nativitate libemur [livrai-nos
(desse mal) pelo novo nascimento, tão aguardado, do vosso Filho Unigênito]
— uma alma escravizada não conhece a paz que o Redentor veio trazer ao mundo; o
pecado é a guerra.
Se o Natal não despertar em nós um aumento de fervor, se ele
não transformar a nossa vida, poderá ser um dia de muita agitação e trabalho,
mas não será o Natal de Nosso Senhor. A Igreja nos lembra que, se agora
recebemos um Redentor, um dia nós o iremos receber como Juiz. Entregando-nos
agora, com alegria e reconhecimento, ao domínio daquele que nos vem libertar,
poderemos depois estar diante dele, com toda confiança: quem
Redemptorem laeti suscipimus, venientem quoque Judicem securi videamus [como
recebemos com alegria o Redentor, possamos também contemplá-lo com confiança como
Juiz].
Durante o Advento, a Igreja permanece como numa contínua
vigília de orações, à espera do Redentor. Rezando, e sentindo com ela, é que
iremos passar estes dias: Christus sit nobis cibus, potusque noster sit
fides [Cristo seja o nosso alimento, a fé seja a nossa bebida].
Façamos nossa a insistência da sua oração: festina, ne tardaveris, ut
adventus tui consolationibus subleventur, qui in tua pietate confidunt [apressai-vos,
não tardeis, para que as consolações do vosso Advento confortem os que confiam
em vossa compaixão] — com a Santa Igreja, podemos antegozar o consolo
da sua vinda.
05 DE DEZEMBRO
Ad nullum declinemus peccatum [que não nos prostremos pelo pecado].
O programa que a Igreja nos dá para um dia é o programa que
ela deseja ver realizado em todos os nossos dias. Laetus dies hic
transeat* [alegre passe este dia]: somos filhos de Deus,
vivemos e trabalhamos para Ele; sua Providência nos acompanha e a caridade é o
laço que nos une a todos, sob a vista solícita do Pai que está nos céus.
A única tristeza, a do pecado, não é o desespero, mas o arrependimento cheio de confiança e amor. Pudor sit ut diluculum* [tão puro quanto o arrebol]: o amanhecer é todo um hino ao Criador, em notas de maravilhosa grandeza, mas também de admirável discrição e misteriosa naturalidade. O nosso dia, feito de trabalhos e cuidados, deverá ser um hino de adoração, agradecimento e reparação.
Fides velut meridies* [a
fé como luz do meio dia]: o meio dia é a plenitude do sol e do calor.
Durante o nosso dia, a fé deverá ser o calor ardente e penetrante, pondo a vida
sobrenatural em tudo. Crepusculum mens nesciat* [não deixe
o espírito conhecer as sombras]: um dia cheio de fé e confiança em Deus não
conhecerá certamente o entardecer de um abatimento ou o crepúsculo da
indiferença ou tibieza. Mesmo que as nossas forças se recolham para o
indispensável repouso, na casa de nossa vida estará sempre acesa a lâmpada de
nosso amor a Deus e às almas.
* versos do hino 'Splendor Paternae Gloriae', de Santo Ambrósio.
06 DE DEZEMBRO
Diligite inimicos vestros [amai
vossos inimigos (Mt 5,44)]
Aí está um mandamento difícil para o nosso orgulho: amar os
nossos inimigos; querer bem aos que nos querem mal; rezar pelos que nos
perseguem e caluniam. No entanto, sem esse zelo cheio de caridade e mansidão, o
sacerdote não poderá ganhar para Nosso Senhor aqueles que vivem in
umbra mortis [na sombra da morte].
Por motivos naturais é que os do mundo procuram a delicadeza
no trato e as maneiras finas que o bom tom exige. O mesmo terá que fazer o
sacerdote, embora por motivos sobrenaturais. São Paulo não era homem que
primasse pela mansidão; pelo contrário, muitas vezes deixou aparecer seu gênio
forte e arrebatado. No entanto, deixou a Timóteo uma regra de apostolado que
não podemos ignorar: seniorem me increpaveris, sed obsecra ut patrem;
iuvenes ut frates iuvenculas ut sorores, in omni castitate [ao
ancião não repreendas com aspereza, mas adverte-o como a um pai; aos moços como
aos irmãos, às jovens como às irmãs, com toda a pureza (1Tm 5,1)].
Os grandes apóstolos não primaram pela rispidez, mas pela
paciência e compreensão. É certo que, muitas vezes, o sacerdote terá que ser
enérgico e até intransigente. Ele não pode trair a sua missão. No entanto, que
a sua energia não seja dura ou precipitada, mas prudente; e que a sua
intransigência não seja ríspida, mas maneirosa: sempre in
aedificationem [para edificar].
07 DE DEZEMBRO
Quatriduanus est enim [porque há quatro dias está aí (Jo 11,39)]
Senhor, eu compreendo a delicadeza de Marta, não querendo
que abrissem aquele sepulcro. Jam foetet [já cheira mal]
— aquele cadáver, com vários dias de sepultura, não era mais alguma coisa para
se ver e suportar.
O que eu não compreendo é tua delicadeza, suportando este
cadáver que sou, encerrado na indiferença e tibieza, há quantos anos! O que eu
não compreendo é a paciência infinita com que esperas o dia em que eu deseje a
tua vida, para que me possas ressuscitar. Quanto tempo o teu amor não ficou à espera
daquele filósofo de Hipona, que Santo Ambrósio converteu! Realmente, a tua
paciência não tem limites.
As resoluções que tomei nos primeiros anos de sacerdócio...
os propósitos que fiz ao iniciar este ano... já ficaram tão longe! Deles talvez
não reste sequer uma lembrança. Mesmo assim a tua paciência continua a me
esperar. Senhor, preciso compreender que minha vida não pode continuar nessa
morte. De profundis clamavi ad te, Domine [das profundezas,
clamo a vós, Senhor (Sl 129,1)] — sempre, especialmente nestes dias,
quero rezar com tua Igreja: Festina, ne tardaveris! Sim, veni Domine
Jesu! [Apressai-vos, não tardeis; sim, vem Senhor Jesus!].
08 DE DEZEMBRO
Serpentis caput virgineo pede contrivit [o pé virginal esmagou a cabeça da serpente]
Compreendemos o ódio que o demônio tem a Nossa Senhora. Ele
é a contínua revolta contra Deus; seu elemento é o pecado: Non serviam [Não
servirei] — e, nesta revolta, ele viverá eternamente. Fora do pecado, ele
sente-se mal... não pode viver.
Nossa Senhora é a contínua expressão da vitória de Deus que,
para salvar as almas, usou de uma simples criatura sua: Virgo Dei
Genitrix, quem totus non capit orbis, in tua se clausit viscera, factus homo [Virgem,
Mãe de Deus, aquele que o mundo todo não pode conter, encerrou-se em vosso
ventre para fazer-se homem]. Ela é a inocência imaculada, a permanente
ausência do pecado. E por isso, perto dela, não há ambiente para o demônio.
Imaculada, porque destinada a ser Mãe de Deus. Tinha que
viver ao lado da perfeita e infinita inocência, tinha que dar Nosso Senhor ao
mundo. E nós... temos que dar a Nosso Senhor sua vida eucarística; temos que
tratar com Ele, temos que manter a sua vida nas almas, contra todos os esforços
do demônio. A inocência e a pureza de vida serão a nossa melhor arma de
apostolado. Quanto menos faltas em nossa vida, tanto menos coragem terá o
demônio para se aproximar de nós. Ele sabe que a ausência do pecado não é
ambiente onde ele possa viver: Erat autem grex porcorum... et rogabant
eum ut permitteret eis in illos ingredi... [era uma manada de
porcos... e rogavam (os demônios) que os permitissem entrar
neles... (Mt 8, 30-31)]. A inocência e a pureza são o ambiente de
Deus.
09 DE DEZEMBRO
Introibo ad altare Dei [Irei
até ao altar de Deus].
Não fosse a infinita misericórdia de Deus e isso nunca teria
acontecido. No entanto, Ele me escolheu; quis precisar de mim. E um dia, pela
primeira vez, eu disse, aos pés do altar: Introibo!... [Subirei!].
Com que fervor e com que emoção não pisei aquele primeiro degrau!...
Depois desse dia, muitas vezes já tenho feito o mesmo,
colocando-me entre a Justiça eterna e as culpas do mundo. Mas... com que
preparação? Com que consciência? Toda a minha vida sacerdotal é um altar. E,
sobre ele, em contínua imolação, deve estar uma vítima, que sou eu mesmo. Confiteor
Deo omnipotenti [Confesso a Deus todo-poderoso] — reconheço que
não tenho colocado a minha Missa como centro de minha vida: eu não vivo como
uma vítima, em contínua imolação, para glória de Deus.
Reconheço que, em vez de fazer o espírito do Santo
Sacrifício penetrar a minha vida, permiti que a dissipação de minha vida
profanasse até a minha Missa. Mea culpa... [Por minha
culpa...]. Apesar de tudo, a Igreja continua a me mostrar a misericórdia
infinita de Nosso Senhor. Ela não me nega o seu estímulo e o seu perdão: Misereatur
tui omnipotens Deus... et demissis peccatis tuis, perducat te in vitam
aeternam... [Compadeça de vós o Deus onipotente... vos perdoe os
pecados e vos conduza à vida eterna...].
10 DE DEZEMBRO
Aufer a nobis iniquitates nostras! [afastai de nós as nossas iniquidades!]
Com o meu arrependimento, o perdão divino possa purificar-me
de todas as minhas culpas, ut ad Sancta Sanctorum puris mereamur
mentibus introire [para que mereçamos entrar com a alma purificada
no Santuário]. Quanta inocência e quanta pureza de vida a Igreja não
exige de mim, para que eu me possa colocar dignamente entre Deus e os
homens! Esto ergo talis, ut sacrificiis divinis digne servire valeas [Sejas
assim, portanto, para que possas servir dignamente o sacrifício divino].
Reconhecendo que minha vida não está correspondendo à minha
dignidade, eu tenho que rezar e repetir com a Igreja: Kyrie, eleison,
Christe eleison! [Senhor, tende piedade; Cristo, tende piedade!].
Não é para menos — peccavi nimis [pequei muitas vezes]. Quaesivi
de eis virum [Tenho procurado dentre eles (os pecadores) um
homem de Deus] — Deus pôs as suas esperanças em mim, quando me procurou,
para ser um traço de união entre o céu e a terra.
E poderei dizer que sempre correspondi a essa confiança que
em mim Ele depositou? In amaritudine animae [Com amargura
na alma (Is 38,15)], preciso reconhecer que, muitas vezes, eu não
estive em condições de aplacar a sua Justiça, mas, sim, de provocá-la com a
minha vida pouco fervorosa. Qui abominaris idola sacrilegium facis [(tu) que
abominas os ídolos, cometes sacrilégio? (Rm 2,22)]. Preciso pôr a
minha vida no seu lugar. E o lugar da minha vida é o altar do sacrifício, na
presença de Deus.
11 DE DEZEMBRO
Ut sanctum Evangelium tuum digne nuntiare [que eu anuncie dignamente o vosso Santo Evangelho].
Ensinar a doutrina do Evangelho — este é um dos encargos da
minha vocação. Pregar como simples orador não é certamente o que a Igreja
espera de mim. Tenho que ensinar, e ensinar como um Mestre. A pregação que não
ensina pode agradar, pode arrebatar aplausos; mas não deixa de ser uma pregação
inútil. Foi de ensinar que Nosso Senhor me falou: Ite, docete! [Ide,
ensinai!].
Para ensinar o Evangelho como um Mestre, não basta que eu
leia simplesmente o Evangelho. Ele não é, para mim, um simples livro de
leitura; é o Livro; e contém a Doutrina que eu devo meditar e viver, antes de
querer ensiná-la. E como irei viver a vida de Cristo se não a conheço? Ignoratio
Scripturarum ignoratio Christi est [a ignorância das Escrituras é a
ignorância de Cristo (São Jerônimo)].
Vivendo o Evangelho é que poderei ensinar Nosso Senhor às
almas, não somente pela palavra mas, principalmente, pelo exemplo: veluti
viva et spirans imago eius [nelas (nas Escrituras) se
vê viva e palpitante sua imagem (de Cristo) (Leão XIII)]. Ut
digne et competenter anuntiem Evangelium tuum [Para que possa
anunciar digna e devidamente o vosso Evangelho] — isto supõe esforço; por
menos não poderei penetrar e nem viver o Evangelho: quare tu enarras
praecepta mea, et habes in ore tuo foedus meum? Tu, qui odisti disciplinam, et
projecisti verba mea post te? [Por que falais dos meus preceitos e
tendes o meu testamento em vossa boca? Vós, que odiais a disciplina e
rejeitastes as minhas palavras? (Sl 49)].
12 DE DEZEMBRO
Quem vos nescitis [quem vós não conheceis (Jo 1, 26)]
Aquela pobre gente não podia mesmo conhecer o Messias, que
ainda não se havia dado a conhecer. Infelizmente a palavra do Precursor
continua valendo para nós. Medius vestrum stetit [Está no
meio de vós] — Ele está em toda a nossa vida; e podemos dizer que, até
agora, Ele tem sido uma realidade para nós?
Ele está na meditação que tantas vezes dispensamos. Ele está
na Santa Missa que nem sempre celebramos com a necessária piedade. Ele está na
leitura e no exame de consciência que descuidamos com tanta facilidade. Ele
está nos doentes do corpo e da alma, para os quais, nem sempre damos a caridade
do Bom Samaritano. Ele está no trabalho que nos preocupa continuamente.
Ele está em nós mesmos, e nós não nos lembramos disso porque,
se nos lembrássemos, seria muito diferente o nosso modo de pensar, de falar e
agir: In hac vita continue deberemus frui Deo tamquam re plenissime
propria [nesta vida devemos desfrutar de Deus continuamente como
nosso bem próprio maior (Santo Tomás)]. Se Ele está em nós, em toda a
nossa vida, é preciso que a nossa vida esteja nele: Per Ipsum, et cum
Ipso [Por Ele e com Ele]. Do contrário, a nossa vida estará
fora da sua base, ameaçada de fracasso: Fundamentum aliud nemo potest
ponere [Ninguém pode pôr outro como fundamento (I Cor
3,11)].
13 DE DEZEMBRO
Cum oratis... [quando orardes... (Lc
11,2)]
Senhor, bendita seja a tua paciência de Mestre que me
ensinou a rezar, com tanta sabedoria e com tanta simplicidade! Eu te agradeço,
porque me ensinaste uma oração que eu posso compreender e sentir. Naquele dia
eu aprendi que rezar não é nenhuma arte sublime e nenhuma ciência difícil fora
do meu alcance. Compreendi que eu também posso falar com meu Deus, porque Ele é
meu Pai.
Amo, Senhor, essa oração que me ensinaste. Ela é tão simples
e, ao mesmo tempo, tão sublime; tão pequena, e tão grande, porque tem tanta
força e tanta vida. Amo esse teu modo de rezar — como uma criança; porque eu
também devo rezar com a inocência e simplicidade dos pequeninos. Sim, quero
rezar como as crianças que, com uma palavra, fazem um mundo de pedidos. Porque
elas são simples, conseguem pôr todo o coração numa única palavra, que mal
sabem pronunciar.
Quero rezar como aquele ladrão que, com uma frase, arrebatou
o teu perdão e o teu Reino. Quero rezar como aquele pecador, à entrada do
templo; eu também sou um pecador e a minha miséria é muito grande, para que eu
a possa disfarçar com palavras bonitas. Quero estar em tua presença, como uma
criança simples e inocente, para falar com meu Pai que está nos Céus.
14 DE DEZEMBRO
Subito circumfulsit eum lux de caelo [subitamente uma luz vinda do Céu o envolveu (At
9,3)]
Antes da conversão, o Apóstolo sabia ser o que era: spirans
minarum et caedis [respirava ameaças e morte], era o
perseguidor que odiava a Igreja: blasphemus fui et persecutor [era
blasfemo e perseguidor]. Dono de uma vontade férrea e de um orgulho
descomedido, tinha que ser dobrado num momento, com força irresistível.
Por isso a graça não o tocou de leve, nem pouco a pouco. Subito circumfulsit eum lux [subitamente envolto em luz] — ele compreendeu que era inútil perseguir a quem o podia dominar: Ego sum Jesus, quem tu persequeris [Eu sou Jesus, a quem persegues]. Começou a amar a Verdade que odiava e dela se fez o Apóstolo: abundantius illis omnibus laboravi [tenho trabalhado (por esta Verdade) mais do que todos].
Para nós, graças a Deus, o caminho da Verdade esteve sempre
aberto, desde a nossa infância. Atrás de nós ficaram anos e anos de formação e,
mais do que isso, anos de sacerdócio na casa de Nosso Senhor onde nada nos
faltou. A oração, os sacramentos, os retiros, o bom exemplo de outros, a
convivência com Nosso Senhor todos os dias em nossas mãos, tamquam
occisum... [como que imolado... (Ap 5, 6)] quanta luz ao
nosso redor! E que fizemos, até agora, de toda essa riqueza que Deus nos
confiou? Que a nossa consciência não nos tenha de acusar: abscondi
talentum tuum in terra... [fui esconder o teu talento na
terra... (Mt 25,25)]. Nesse caso, ouçamos Nosso Senhor: inutilem
servum ejicite in tenebras exteriores [jogai esse servo inútil nas
trevas exteriores (Mt 25,30)].
15 DE DEZEMBRO
Secessit seorsum [retirou-se
em separado (Lc 9,10)]
Nosso Senhor gostava do recolhimento e do silêncio. Sua vida
neste mundo, Ele a passou quase toda retirado em Nazaré, a sós com a sua Mãe. E
mesmo durante sua vida pública, muitas vezes procurou afastar-se do povo, e até
dos discípulos.
O seu silêncio não era um comodismo egoísta; era um recolhimento ativo, de quem desejava tratar diretamente com o Pai; era o silêncio de um a sós com Deus. Eu, pelo contrário, tenho medo da solidão. Não aprecio muito ouvir minha consciência; tenho medo de me encontrar com aquele que realmente sou. Prefiro falar, e ouvir a outros, para me distrair de mim mesmo. E fora dessa teia de aranha que são os meus cuidados e ocupações exteriores, não me sinto bem.
Procuro a agitação de uma atividade até exagerada, pensando
em tudo, para não me ver. Costumo dizer que tudo é para Deus. Pode ser. Mas ao
achar pesado e aborrecido o ficar a sós com Deus, pode ser que essa atividade
não seja tanto para Ele, como costumo pensar. Talvez seja mais para mim mesmo...
Quanto mais eu me interessar pela vida de Deus em minha alma, tanto mais
interesse terei, que viva, também nas almas, aquele que vive em mim.
16 DE DEZEMBRO
Summa annorum nostrorum [o
limite dos nossos anos]
Mais um ano que vai chegando ao fim. E os meus dias
passaram; já estão longe, não os posso recuperar. Que tristeza amarga para o
meu apego à vida! Meu Deus! Qual será o total dos meus anos?... Não sei.
O teu Salmista é quem me diz: Summa annorum
nostrorum sunt septuaginta anni, et, si validi sumus, octoginta [os
nossos anos limites são setenta anos e, se somos robustos, oitenta (Sl
68)]. Eu duvido que possa ir tão longe: plures eorum sunt labor et dolor [mais
que isso, é trabalho e dor] — os meus anos estão minados pelo trabalho e
pelo sofrimento. O que eu sei com certeza é que, todos os dias, a tua mão
retira alguma coisa da minha vida, e todos os meses, são trinta dias a menos na
minha existência.
Isto significa muito para quem não é senhor dos seus dias e
não sabe, por isso, quantos dias ainda poderá viver. Senhor, eu sei que, a
qualquer momento, poderás dizer que está completa a soma dos meus anos.
Ensina-me a viver, morrendo aos poucos, pelo desapego de tudo. Quero
acostumar-me a ver-te, não como um rochedo frio e indiferente em meio a minha
viagem, mas como um farol amigo e acolhedor, iluminando aquele dia em que
deverei entrar no porto da minha eternidade.
17 DE DEZEMBRO
Accepit ergo Jesus panes [Jesus
tomou então os pães (Jo 6,11)]
Naquele dia, eram milhares de pessoas que estavam diante
dele, à espera de um milagre. E foi um menino quem lhe forneceu os pães, que
Ele multiplicou, para alimentar aquela multidão. Chegando ao fim do ano, eu
olho para trás. Posso dizer quantas almas estiveram diante de mim, esperando
que eu as alimentasse? Não sei.
Foi uma multidão que esperava a minha palavra e o meu exemplo. E ninguém voltou de mãos vazias?... Nosso Senhor sabe que eu não posso fazer milagres. Nem está exigindo isso de mim. Mas Ele sabe o quanto já me deu, avisando-me: sine me nihil potestis facere [sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5)]. Vendo a multidão que eu devo alimentar, não posso desanimar como os Apóstolos: sed haec quid sunt inter tantos? [o que é isso para tanta gente?].
Nada sou; mas sem mim, Ele não fará o milagre que eu não
posso fazer. Tenho que trabalhar com Ele. Prontamente, como aquele menino,
preciso colocar nas mãos de Nosso Senhor o meu tempo, minhas forças, minhas
qualidades, enfim, minha dedicação. É tudo o que Ele exige de mim; que eu não
seja mesquinho, que eu não me poupe. Quanto ao mais, Ele sabe como fazer: ipse
enim sciebat quid esset facturus [pois bem sabia o que tinha de
fazer].
18 DE DEZEMBRO
Convertimini ad me [convertei-vos
a mim (Jl 2,12)]
Todos os dias, o exame de consciência me diz que, em minha
vida, muita coisa está fora do lugar, muita coisa está ameaçando ruína.
Trata-se de uma construção que não poderá melhorar muito, somente com alguns
remendos. Precisa de uma reforma.
Nestes últimos dias do ano, preciso tirar um dia para esse
trabalho: examinar o estado em que se encontra a minha vida; com vagar e com
coragem, preciso olhar bem para certas coisas: vida de oração, espírito de fé,
horário, fuga das ocasiões... e pôr o dedo nas chagas, que talvez já se
aprofundaram, mais do que eu suspeitava...
Derelinquat impius viam suam, et revertatur ad Dominum,
quoniam multus est ad ignoscendum [renuncie
o ímpio ao seu comportamento e volte ao Senhor, que perdoa generosamente (Is
55,7)]. Não preciso ter medo de voltar para a casa de meu Pai; Ele sabe
perdoar, e perdoar muito: usque septuagies septies [até
setenta vezes sete]. Mas, antes de colocar a pedra do seu
perdão, Ele quer que eu coloque a pedra do meu arrependimento sobre as faltas
que eu deixei atrás, principalmente neste ano: Ne respicias peccata mea [Não
olheis os meus pecados]. E de agora em diante: Fac me tuis semper
inhaerere mandatis, et a te nunquam separari permittas [fazei que
eu cumpra sempre os vossos preceitos e jamais permita que eu me separe de Vós].
19 DE DEZEMBRO
In conspectu divinae majestatis [na presença da divina majestade]
Todos os dias, peço a Deus receba o Santo Sacrifício que lhe
ofereço: jube haec perferri, per manus sancti Angeli tui [ordeneis
que seja levado pelas mãos do vosso santo Anjo]. E a esse Sacrifício
acrescento a insignificância da minha vida de todos os dias: Oblationem
servitutis nostrae... placatus accipias [a nossa oferta de servos
... seja acolhida com agrado].
Posso dizer que passei este ano sacrificando-me in
conspectu divinae majestatis [na presença da divina majestade]?
Boa vontade não faltou da minha parte; mas preciso reconhecer que, às vezes,
poupei-me um pouco em atenção ao meu comodismo; nem sempre dei à oração o tempo
necessário ou às almas o zelo e dedicação que de mim esperavam. Meu sacrifício
foi total? Não andei reservando alguma coisa para mim, quando devia entregar
tudo a Nosso Senhor?
Nestes dias a minha consciência deverá pensar nisso. Santo Afonso, que tanto fizera para a glória de Deus e a salvação das almas, rezava nos últimos dias de sua vida: 'Meu Deus, dai-me a graça de fazer alguma coisa por Vós!' Seja essa a minha jaculatória e esse o meu desejo de sempre. E no fim da minha vida, será esse o meu consolo também: poder pensar que fiz alguma coisa para Nosso Senhor e, por isso, poder esperar a corona iustitiae [coroa da justiça] que Ele me haverá de dar.
20 DE DEZEMBRO
Libera nos a malo [livrai-nos
do mal]
O único mal que deve existir para mim é o pecado. O
sofrimento, a doença, as dificuldades, tudo pode e deve ser um bem: omnia
cooperantur in bonum [todas as coisas concorrem para o bem]. É
por isso que, todos os dias, a Igreja me faz ver a sua preocupação: Tua
nos hodie salva virtute [salvai-nos hoje pelo vosso poder] —
que Deus nos empreste a sua força, ut in hac die ad nullum declinemus
peccatum [para que não nos prostremos por pecado algum neste dia].
Tivesse eu tido sempre esse horror ao pecado, vigiando mais
a minha natureza, a estas horas não estaria lamentando certas faltas que deixei
ao longo deste ano! Diariamente, ofereço o Santo Sacrifício pro
innumerabilibus peccatis, et offensionibus, et negligentiis meis [pelos
meus inumeráveis pecados, ofensas e negligências]; em minhas mãos a
Vítima... diante de mim o Crucifixo, o Tabernáculo, o confessionário,
falando-me da malícia do pecado.
Mas... eu não me impressiono, porque ele já se tornou como
na minha vida... é coisa de todos os dias... Diariamente, ad primam [primeiro (de
tudo)], tenho que pôr mais devoção e mais alma naquelas palavras que devem
refletir um sincero desejo meu: semper ad tuam iustitiam faciendam
nostra procedant eloquia, dirigantur cogitationes et opera [nossas
palavras, pensamentos e obras tendam sempre para o cumprimento da vossa justiça].
Fazer em tudo o que Ele quer, é para mim, viver livre do pecado.
21 DE DEZEMBRO
Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20,28)]
Isso foi tudo o que o Apóstolo São Tomé soube dizer ao Mestre, quando o viu, realmente ressuscitado. Não se negando a aceitar a verdade, queria apenas uma prova convincente. Houve, em sua atitude, uma prudente reserva em aceitar uma notícia que poderia ser precipitada, naqueles dias de agitação e comentários. Quod volumus, libenter credimus... [Cremos de bom grado no que queremos...].
E Nosso Senhor recompensou a sinceridade do seu Apóstolo, dando- lhe a prova que esperava. Tendo diante de si o seu Mestre ressuscitado, o Apóstolo admitiu prontamente a verdade e tirou logo a consequência: Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus!]. A ressurreição fê-lo compreender que seu Mestre era realmente Deus e Senhor.
Se eu pudesse falar com a mesma sinceridade do Apóstolo: Dominus meus et Deus meus! [Meu Senhor e meu Deus!]. Se, em minha vida, essas palavras refletissem a verdade! Se eu me julgo mais pronto que o Apóstolo em aceitar as verdades da Fé, posso dizer que sou consequente como ele, aceitando, em minha vida, as conclusões dessas verdades?
22 DE DEZEMBRO
Tua circa nos propitiatus dona custodi [conservai-nos na posse dos dons (recebidos)]
Que Deus guarde e conserve tudo aquilo que nos deu — assim
reza a Igreja no Postcommunio [Pós-Comunhão] da Missa
do Apóstolo São Tomé. Tudo o que Ele nos deu... Podemos imaginar tudo o que
recebemos da infinita liberalidade de Nosso Senhor? Pensemos somente em nossa
vocação sacerdotal, privilégio que Ele reservou àqueles que escolheu ante
mundi constitutionem [antes da criação do mundo].
Se Deus não pôde fazer por Nossa Senhora mais do que fez,
poderia elevar a uma criatura sua acima da dignidade sacerdotal? Deus no-la
deu, e que Ele no-la conserve, conservando-nos na altura de nossa
dignidade. Depraedari desiderat qui thesaurum publice portat in via [anseia
ser roubado quem carrega um tesouro em via pública (São Gregório)] —
até agora, talvez, não soubemos estimar bastante a nossa grandeza e, por isso,
não a soubemos guardar com o necessário cuidado.
Sabendo que a nossa dignidade é um privilégio, o mundo não a suporta e tudo faz para diminuí-la. Não podemos condescender com esse espírito de leviandade, banalizando uma grandeza que ele desconhece. Tu Domine universorum, qui nullam habes indigentiam, voluisti templum tuum fieri in nobis. Conserva domum istam immaculatam in aeternum, Domine! [Ó vós, senhor do universo, que bastais a vós mesmos e que quisestes tornar-vos um santuário em nós, conservai imaculada esta morada para sempre, senhor! (Mc 14, 35 - 36)].
23 DE DEZEMBRO
Et reclinavit eum in praesepio [reclinou-o em um presépio (Lc 2,7)]
É tão fácil dizê-lo! E talvez por isso não meditamos
bastante tudo o que nos quer dizer o Presépio. Vemos nele, principalmente esse
misterioso abandono que sempre acompanhou Nosso Senhor em sua vida. À sua
chegada neste mundo, para iniciar a Redenção, estavam presentes Nossa Senhora e
São José; vieram depois alguns pastores, e... foi só.
Junto a um estábulo ninguém permanece por muito tempo e foi
num estábulo que Ele nasceu. Mais tarde teve alguns amigos que o acompanharam,
enquanto sonhavam com aquele Reino que Ele lhes prometia. Mas o Mestre foi
preso e condenado. Nesse caso... relicto eo et fugerunt [o
abandonaram e fugiram (Mt 26,56)]. É que, junto a um criminoso,
ninguém queria se comprometer e Ele foi tido como um criminoso, digno da morte
na cruz.
No Calvário estava um discípulo, com algumas mulheres
piedosas. Hora final da Redenção e, para cúmulo do abandono, a ausência do
Pai: ut quid dereliquisti me? [por que me abandonaste?].
Junto à cruz de um condenado ninguém queria estar e foi numa cruz que Ele
morreu. O Bone Jesu, ne permittas me separari a Te! [Ó Bom
Jesus, não permitais que me separe de vós!]. Esse abandono seria a minha
condenação.
24 DE DEZEMBRO
Et vidimus gloriam eius [e vimos sua glória (Jo I,14)]
Com essas palavras, termino a minha Missa todos os dias. Compreendo que o Apóstolo pudesse falar assim. Mas eu, diariamente no altar, não vejo mais que o aniquilamento e a extrema humilhação do Redentor.
Renovação permanente do Presépio e do Calvário, o Santo Sacrifício é um nascimento, pela vida eucarística e é uma morte, pelo estado de imolação em que a Vítima se apresenta. Em Belém, uma simples criança; no Calvário o crucificado, abominatio plebis [a abominação do povo]. É assim que eu o vejo na Santa Missa e esse aniquilamento é toda a sua glória. Para ser o Redentor, exinanivit semetipsum [aniquilou-se a si mesmo]; era esse o preço exigido pela Justiça eterna: 'mandatum accepi a Patre meo' ['ordem que recebi do meu Pai' (Jo 10, 18)].
Por isso, antes de consumar seu aniquilamento e a imolação, Ele pôde rezar: Ous consummavi quod dedisti mihi ut faciam; nunc clarifica me, Tu Pater, claritate quam habui, priusquam mundus esset, apud Te [Terminei a obra que me destes para fazer; agora, Pai, glorifica-me junto de ti, concedendo-me a glória que tive junto de ti, antes que o mundo fosse criado (Jo 17, 4-5)]. Que a minha Missa de todos os dias ponha diante de meus olhos a missão de toda a minha vida: imolar-me per Ipsum, et cum Ipso [por Ele e com Ele]. Somente dessa imolação poderá nascer a minha glória eterna: quia dilexisti me, ante constitutionem mundi [porque me amou desde a criação do mundo].
25 DE DEZEMBRO
O inaestimabilis dilectio caritatis! [Ó incomparável predileção do amor!]
Num simples rancho, destinado aos animais. Abandono, pobreza e miséria. Nem altar e nem genuflexório. Uma mulher, ajoelhada no chão, rezando. E uma deliciosa melodia gregoriana lembra aos meus ouvidos: Inviolata, integra et casta es, Maria!... [Intocada, casta e pura sois vós, Maria!...].
Compreendo: Ela é a Virgem anunciada pelo Profeta. Ecce Virgo concipiet [Eis que a Virgem conceberá]. Ela reza diante de um estábulo porque dentro dele, sobre palhas, está um Menino recém nascido. Compreendo: Verbum caro factum est... [E o Verbo se fez carne...]. Há, em todo esse ambiente, uma grandeza divina que eu não vejo, mas que eu sinto, porque me faz refletir, de joelhos: nihil nobis nasci profuit, nisi redimi profuisset [de nada nos serviria ter nascido, se não tivéssemos sido redimidos].
Quero rezar e não sei como. Qualquer palavra parece uma profanação, em meio ao silêncio que reza com Nossa Senhora. Mesmo assim, uno-me à Igreja extasiada, para rezar com ela: In illius inveniamur forma, in quo tecum est nostra substantia... Sicut homo genitus idem refulsit et Deus, sic nobis haec terrena substantia conferat, quod divinum est... ut cuius lucis mysteria in terra cognovimus, eius quoque gaudiis in caelo perfruamur... [podemos ser assemelhados a Ele, em quem a nossa substância [humana] está unida... tal como aquele que nasceu como homem e que também se fez resplandecer como Deus, assim também esta substância terrena [o pão e o vinho na eucaristia] consubstancia o que é divino... para que os que conhecemos os mistérios de sua luz na terra, também desfrutemos da sua alegria no céu...].
26 DE DEZEMBRO
Et pannis eum involvit [e o envolveu em faixas (Lc 2,7)]
Com que carinho Nossa Senhora não o fez! O carinho de sua Mãe — essa a única riqueza que Nosso Senhor não dispensou; riqueza que Ele mesmo criara para si. De resto, o Presépio era para Ele o início da grande Imolação: tinha que ser um homem pobre, que não tivesse onde reclinar a cabeça; e tinha que ser um pobre homem, tido como louco, traído e condenado à cruz.
Com que cuidado Ele não me escolheu, um dia! Com que carinho não me revestiu do sacerdócio: Induit me vestimentis salutis, et indumento iustitiae circumdedit me, quasi sponsam ornatam monilibus suis! [Revestiu-me com vestes de salvação e cingiu-me com o manto de justiça, e como uma esposa que se enfeita com as suas jóias! (Is 61,10)]. Para início do seu Sacerdócio, no Presépio, Ele se fez homem; para início do meu sacerdócio, na ordenação, Ele me fez quase Deus. Era apenas o começo da minha imolação. Como Ele, tenho que ser um homem pobre, cuja única riqueza é a Vontade do Pai: Meus cibus... ut perficiam opus eius [meu alimento... e cumprir a sua obra (Jo 4,34)].
E tenho que ser um pobre homem aos olhos do mundo, porque a matéria não pode compreender uma afirmação de fé: animalis homo non percipit! [o homem animal não compreende! (I Cor 2,14)]. Meu Deus, que eu entenda bem a minha vocação! Que eu não lhe queira dar um tom de Tabor porque a quiseste um Calvário. Que eu aceite a minha vocação tal qual ela é: quia expedit unum hominem mori pro populo... [que convinha morrer um homem pelo povo... (Jo 18,14).
27 DE DEZEMBRO
Dum inveniri potest [enquanto se pode encontrá-Lo (o Senhor) (Is 55,6)]
Um ano que passou — é um ano a menos em minha vida. Não seja essa uma tristeza pagã para mim. Se, em cada minuto que passa, eu ganho um pouco da minha eternidade, nada estou perdendo certamente. Chegando agora ao fim deste ano, eu olho para o ponto de partida... já ficou tão longe!
Mas ainda estou vendo, naqueles primeiros dias, resoluções cheias de entusiasmo, propósitos que o meu fervor ditou. Posso dizer que chegaram comigo, até ao fim deste ano? Ou terão ficado ao longo do caminho que percorri? Pode ser que, em meio a tanto trabalho e atividade, o meu fervor não tenha sido sempre o mesmo do começo. Nem sempre a minha boa vontade terá conseguido o que desejava. Falhas houve, é certo. Mas, nem por isso irei desanimar.
Tenho agora que juntar as mãos e agradecer a Nosso Senhor porque, apesar de tudo, Ele aceitou os meus trabalhos; realmente eram seus. E, com o mesmo fervor dos primeiros dias, quero continuar ganhando a minha eternidade em cada dia que passa: Quaerite primum regnum Dei [Buscai primeiro o Reino de Deus]. Em cada minuto de minha vida posso ganhar alguma coisa a mais de Nosso Senhor para minha alma e para as almas. Quaerite Dominum, dum inveniri potest [Buscai o Senhor, enquanto se pode encontrá-Lo].
28 DE DEZEMBRO
In tempore messis [no tempo da colheita (Mt 13,30)]
O fim do ano é esse tempo da colheita. Nestes últimos dias, é tempo ainda de um olhar sobre a vinha de Nosso Senhor, onde estive trabalhando. Exiit qui seminat, seminare [Saiu um semeador a semear (Mt 13, 3)]: embora não realizando o meu trabalho com perfeição, posso dizer que tive boa vontade e trabalhei para Nosso Senhor. Mas...
Cum autem dormirent homines [Quando os homens repousavam]: sim, houve momentos em que o meu fervor não esteve tão vigilante como eu desejava. Por isso é que agora estou vendo falhas no meu trabalho. Reconheço que o joio também cresceu no campo que trabalhei: Inimicus homo hoc fecit [um homem inimigo fez isto] — meu comodismo, minha vaidade, meu apego.
Colligite primum zizania... ad comburendum [arrancai primeiro o joio... para queimar (Mt 3,30)]: preciso distinguir bem o joio do trigo; preciso reconhecer que o meu campo também produziu cizânia e não posso pensar que tudo serve para os celeiros de meu Pai. Esse o meu trabalho de sempre: não deixar crescer o joio em minha vida; e se ele aparecer, que eu saiba distinguir o bom trigo das suas imitações. Triticum congregate in horreum meum [Recolhei o trigo em meu celeiro (Mt 3, 30)] — posso reconhecer que fiz alguma coisa para Nosso Senhor. Mas, que a minha vaidade não ponha tudo a perder in horreum meum [em meu celeiro]: seja só para Ele.
29 DE DEZEMBRO
Quia peccavi nimis [que pequei muitas vezes]
Enquanto vai sumindo, à minha frente, a sombra de um ano que passou, quero ainda penetrá-la com os meus olhos para guardar uma lembrança, uma última impressão. Apesar de toda a minha miséria, Senhor, creio que posso vir à tua presença, para entregar-te mais um ano da minha vida.
Se ele não foi inteiramente digno de Ti, ele foi, no entanto, um ano de esforço e de boa vontade. Tu bem o sabes, pois andamos sempre juntos e tua sabedoria andou observando tudo. Se a tua Perfeição infinita conhece as minhas falhas, eu também não as ignoro. Todos os dias, diante do altar, eu reconheci minhas culpas, dizendo: quia peccavi nimis [que pequei muitas vezes]. Sim, reconheço agora, o que diariamente afirmei: Pequei demais.
Senhor, ensina-me a rezar estas palavras que o meu orgulho quer entregar à rotina: Confiteor... quia peccavi nimis [Confesso... que pequei muitas vezes]. Chega! Amanhã talvez será tarde para eu começar uma vida que a tua paciência está esperando há tantos anos! Eu sei que a minha tibieza poderá pôr limites à tua bondade. E será que ainda não enchi todas as medidas da tua paciência infinita? Pater misericordiarum [Pai de misericórdia], em tuas mãos entrego este ano, com minhas faltas, sim, mas também com meu arrependimento e minha boa vontade.
30 DE DEZEMBRO
Dinumerare nos doce dies nostros [Ensinai-nos a contar nossos dias (Sl 90, 12)]
E, sobre o túmulo deste ano, eu preciso meditar. Se eu o souber ouvir, ele me poderá pregar o melhor retiro de toda a minha vida. Tempus, edax rerum [Tempo, devorador de tudo]. Um ano que passou — penso eu — é um ano que foi sepultado. No entanto, o tempo é quem sepulta tudo e a todos.
Devorador das coisas, durante este ano, quanta riqueza não malbaratou, quantos sonhos não desfez, quanto plano não destruiu! Edax rerum mearum! [Meu devorador de tudo!]. Como um vendaval, o tempo passou também junto a mim. E levou consigo vidas que cresciam junto à minha, amizades que eu prezava, planos que eu construía. Em tudo, em todos, deixou suas impressões digitais, que ninguém consegue disfarçar. Ele passou, marcando bem a sua passagem.
Devorando a tudo e a todos, o tempo não fará exceção comigo. Todos os anos, ele me rouba um pouco das minhas forças. E um dia, ele se encarregará de me sepultar... na terra e no esquecimento, como já fez com outros. Preciso aprender a contar os meus dias, como o avarento conta as suas moedas. Nada posso esbanjar porque, se eu sei quantos dias já tive, não sei quantos ainda terei. Ut umbra pertransit homo [Porque o homem passa como uma sombra (Sl 39,7)].
31 DE DEZEMBRO
Oremus! [Oremos!]
Escreve Santo Afonso no prefácio do seu livrinho sobre a oração: tenho publicado várias obras espirituais. Parece-me, no entanto, que nenhuma escrevi, mais útil que o presente opúsculo, sobre a oração. Se me fosse possível, quisera mandar imprimir tantos exemplares deste livro quantos fiéis há na terra, e distribuí-los a todos, para que não houvesse um só que não se instruísse acerca da necessidade que todos temos de rezar.
Oremus! [Oremos!]... dizendo assim é que subo ao altar, todos os dias. E com que consciência posso eu convidar os fiéis à oração, se eu mesmo não rezo? Ou terei chegado ao ponto de não compreender essa palavra, e de não sentir a sua força? Oremus! [Oremos!]... é o convite que me faz a Igreja, tantas e tantas vezes ao dia. É a insistência de uma mãe que não quer perder os seus filhos. Oremus! [Oremos!]... é o resumo de todos os sermões, conferências e retiros de que eu preciso para melhorar a minha vida.
Oremus! [Oremos!]... é o aviso que Nosso Senhor me deu, tantas e tantas vezes, insistindo comigo neste ponto, mais que em qualquer outro. Oremus! [Oremos!]... seja este o último pensamento deste ano, para que seja a minha preocupação de todos os anos e de todos os dias. Que eu reze! Que eu não abandone a oração, para não chegar ao ponto de abandonar a Deus, e ser por Ele abandonado. Oremus! [Oremos!]... que este desejo de rezar possa agora suprir tudo o que eu não rezei durante a minha vida. Que esta preocupação me persiga sempre. Somente assim terei uma alma nova, para viver um Ano Novo. Sine intermissione orate! [Orai incessantemente! (sem interrupções) (1Ts 5,17)].