quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

SERMÃO SOBRE O AMOR (I)

PARTE I 

Por dois modos distintos a graça de Deus nos é manifestada, segundo vemos nos exemplos tirados das Escrituras ou da história da Igreja, ou ainda da vida dos santos e de outros fieis servos de Deus. Encontramo-los entre os Apóstolos do Senhor, representados pelas duas figuras mais significativas daquela pequena comunidade privilegiada: São Pedro e São João. São João é o Santo da Pureza e São Pedro é o Santo do Amor. Não que amor e pureza se possam separar; não, pois, como se um santo não tivesse em si e desde logo todas as virtudes; não como se São Pedro não fosse tão puro pelo muito que amava ou São João amasse menos pela sua pureza. 

As graças do Espírito não podem separar-se uma das outras; uma implica todas as outras o que é o amor senão um comprazimento, uma entrega total do homem a Deus? O que é a impureza, por outro lado, senão o tomar de alguma coisa deste mundo, algo de pecaminoso, para objeto das nossas paixões, em lugar de Deus? O que é, senão um deliberado voltar de costas da criatura em face do seu Criador, e uma procura insaciável de prazer não na transbordada presença de alegria, de luz e de santidade, senão à sombra da morte? Portanto, o homem impuro não pode amar Deus; e aqueles que secos se tornaram de amor não podem realmente ser puros; em qualquer objeto havemos de fixar os nossos afetos, e nisso havemos de achar contentamento; ora, não podemos pôr a nossa alegria em dois objetos, tal como não podemos servir a dois senhores, que um ao outro sejam contrários. Muito menos ainda, pode o santo ser imperfeito na pureza ou no amor, porque não será este, fogo claro e límpido, se a substância que o alimente não for inalterável e puríssima.

Porém, certo que assim é, o é igualmente que as obras espirituais de Deus se mostram aos nossos olhos de modo diverso, e que os santos revelam no seu caráter e nas suas vidas, uns, esta virtude mais do que as outras, outros, aquela mais do que estas. Por outras palavras, é do agrado daquele que tem o poder de dispensar todas as graças, conferir-lhes certos dons especiais para a sua glória, que iluminam e embelezam uma porção ou parte da sua alma, de maneira a colocar na sobra as suas outras abundantes virtudes. E então essa graça torna-se como que o sinal e assume especial relevo aos nossos olhos, de maneira que o que eles possuem, para além dela, nós o consideramos nela incluído ou dela dependente; é como se mais não tivessem, embora tudo possuam; e assim lhes buscamos títulos distintivos ou os pintamos com a cor e a tonalidade dessa graça particular que lhes é com tal relevo própria. E neste sentido podemos falar, como tenciono fazê-lo a seguir, de duas categorias principais de santos, cujos símbolos são o lírio e a rosa: um alvo e casto da pureza dos anjos, o outro abrasado pelo amor de Deus.

Dos dois personagens, do mesmo nome João, surgem os grandes exemplos da vida angélica. Quem poderemos, meus irmãos, imaginar possuídos de tal grandeza e de tão severa santidade como São João Batista? Foi-lhe dado um privilégio que quase iguala a prerrogativa da Bem-Aventurada Mãe de Deus; porque se ela foi concebida sem pecado, ele sem mancha nasceu. Ela era toda pureza e toda santidade, e nada havia o pecado com ela; São João, porém, nos primeiros dias da sua existência foi ainda cúmplice da maldição do nosso primeiro pai; sob a ira de Deus, privado da graça que Adão recebera, e que é a perfeição da natureza humana. 

No entanto, assim que Cristo seu Senhor e Salvador se fez carne, e Maria saudou Isabel, a mãe de João, logo a graça de Deus baixou sobre ele e o pecado original se apagou em sua alma. É por isso que celebramos a natividade de São João; ora, a Igreja não celebra o que não é santo; não celebra, por exemplo, a natividade de São Pedro ou de São Paulo, ou de Santo Agostinho, ou São Gregório, ou São Bernardo ou São Luís, nem a de qualquer santo, por mais glorioso, porque todos nasceram em pecado. Celebra, sim, a sua conversão, os seus privilégios, o seu martírio, a sua morte, a sua trasladação, mas nunca o seu nascimento, porque em nenhum caso foi santo. 

A Igreja comemora, pois, três natividades apenas, a do Senhor, a de Sua Mãe e por fim a de São João Batista, distinguindo-o acima de todos os profetas e pregadores que jamais, por muitos santos, viveram, salvo talvez o profeta Jeremias! E tal como o seu começo, assim o curso da sua vida. Foi transportado pelo Espírito do deserto, e ali viveu, nutrindo-se dos alimentos mais pobres, vestindo as roupas mais grosseiras, açoitando-se numa caverna de animais selvagens, longe dos homens, durante trinta anos, uma vida de morte e de meditação, até que foi chamado a pregar o arrependimento, a anunciar a vinda de Cristo e a ser o ministro do seu batismo. 

Uma vez cumprida a sua missão, e não havendo deixado qualquer resto de pecado, foi posto de lado como um instrumento que já não serve e, na masmorra, o seu corpo definhou até que, súbito, a espada do carrasco o trespassou para a vida eterna. Santidade, eis que a qualidade, a ideia com que a sua vida nos surpreende no seu começo no seu fim; o mais maravilhoso dos santos, um eremita desde a infância, pregador depois a um povo decaído e mártir finalmente. Decerto tal vida encheu bem a expectativa que a voz de Maria anunciara a seu respeito antes ainda que nascesse.

Porém, ainda mais bela, e quase tamanha, é a imagem do seu homônimo o grande Apóstolo, evangelista e profeta da Igreja, que muito cedo veio juntar-se aos amigos escolhidos do Senhor e que por muito tempo lhes sobreviveu. Podemos contemplá-lo na sua juventude e na sua velhice; e toda a sua vida, de extremos, é percorrida por este dom inefável da pureza. É o Apóstolo virgem, por isso tão amado do seu Senhor - 'o discípulo que Jesus amou' e que reclinava a cabeça em seu peito, e que recebeu em sua casa a Mãe de Jesus, segundo desejo manifesto por seu filho na cruz, que teve a visão de todos os prodígios que haviam de vir ao mundo no fim dos tempos.

'Digno de muito louvor', diz a Igreja, 'é o Bem-Aventurado João, que, durante a Ceia, se reclinou no seio do Senhor, a quem Cristo na cruz entregou uma virgem, sua Mãe sempre virgem. Foi escolhido casto e sem mancha pelo Senhor, e mais amado do que os outros. A semente particular da castidade fecundou-o para um amor mais profundo, porque, havendo sido escolhido virgem pelo Senhor, como tal permaneceu toda a sua vida'. Ele fora quem, na sua juventude, se mostrara tão pronto a beber com Cristo o seu cálice, que viveu durante muito tempo como um estranho desolado numa terra estrangeira, que foi levado para Roma e mergulhado em óleo fervente e depois banido para uma ilha distante, até que a conta dos seus dias se fechou.

É para nós impossível imaginar a santidade destes dois grandes servos de Deus, tão diferente a sua história, a sua vida e a sua morte, convergindo contudo no seu abandono do mundo, na sua serenidade, na sua liberdade em face do pecado. Nenhuma culpa mortal jamais os tocou; e podemos crer que mesmo isentos foram do pecado venial e voluntário; é impossível, mesmo, que nenhuma ocasião mais propícia ou momento de maior tentação tenha achado neles resposta do pecado. A rebeldia da razão, o capricho dos sentimentos, a desordem da inteligência, a febre da paixão, a traição dos sentidos, tudo lhes era sujeito pela onipotente graça de Deus. 

Viveram num mundo à sua imagem, uniforme, sereno, aceito, entre visões de paz inefável e perfeita, em comunhão com os Céus, numa antecipação da glória; e se falavam ao mundo pregadores ou confessores, a sua voz vinha como que de um santuário, não se misturando com ele mesmo quando a ele se dirigiam, como 'uma voz que clama no deserto' ou 'no Espírito do Dia do Senhor'. E, assim, nós falamos neles mais como modelos de santidade do que de amor, porque o amor diz respeito a um só objeto externo, para o qual conflui e se esforça; e no entanto, porque eles eram tão íntimos do objeto amado, foi-lhes dado recebê-lo nos seus corações; não precisavam de amar o céu porque já eram o céu, não lhes era mister ver a luz, porque luz eram eles, e viveram entre os homens como aqueles anjos de outrora que vieram ter com os patriarcas e lhes falaram como se fossem eles o próprio Deus, porque Deus estava neles, e por eles falava. 

Assim estes dois servos do Senhor estavam tão absortos da divindade que mereceram viver a vida angélica, tanto quanto possível ao homem viver, sereníssimos e cheios de doçura, tão acima da tristeza e do medo, da desilusão e do pesar, do desejo e da aversão, até se tornarem na imagem mais perfeita que a terra já contemplou da paz e da serena imutabilidade de Deus. Assim são os muitos santos que sempre guardaram a sua virgindade e que a história registra para a nossa veneração, como São José, o grande Santo Antônio, Santa Cecília, que foi visitada pelos anjos, São Nicolau de Bari, São Pedro Celestino, Santa Rosa de Viterbo, Santa Catarina de Sena e uma multidão de muitos outros e, acima de todos, a Virgem das Virgens, a Rainha das Virgens, a Bem Aventurada Maria, tão cheia e transbordante da graça do amor, porque ela é 'o trono da sabedoria' e a 'arca da aliança', posto que, assim, é representada mais sob o sinal do lírio do que da rosa...

(Excertos da obra 'Purity and Love', do Cardeal Newman)