sábado, 10 de setembro de 2016

QUESTÕES SOBRE A NATUREZA DO DEMÔNIO (II)


QUESTÃO 2: Por que Deus impôs uma prova aos espíritos angélicos? 

Por que [Deus] não concedeu a visão beatífica a todos [os espíritos angélicos] quando os criou? Por que se arriscou a que alguns se convertessem em demônios? Deus poderia ter criado espíritos angélicos e diretamente ter-lhes concedido a graça da visão beatífica. Isto era perfeitamente possível à Sua onipotência e não haveria nenhuma injustiça se o fizesse. 

Mas, havia três grandes razões para submetê-los a uma fase de provas antes de conceder-lhes a visão beatífica. A razão menos importante de todas era que Deus tinha de dar a cada ser racional um grau de felicidade. Todos no céu veem a Deus, mas ninguém pode regozijar [da Presença] d’Ele em grau infinito, pois isso é impossível. Somente Deus pode regozijar infinitamente [de Si mesmo]. Cada ser finito, porém, regozija ao máximo, sem desejar mais, num grau finito. Regozija finitamente de um bem infinito. A comparação que se pode usar para compreender este conceito metafísico é que cada ser racional constitui um vaso, que é preenchido por Deus até as bordas, plenamente. Porém, cada vaso possui uma medida específica. Deus, em sua sabedoria, determinou algo especialmente inteligente: cada um determinaria o grau de glória que regozijaria na eternidade. Uma vez que isso é para sempre, dado que isso é tão importante, Deus deixou tal decisão em nossas mãos. Se cada um de nós teria um grau, e isto é inevitável, então que cada um determinasse a medida desse grau. De que modo? [Mediante] uma prova. 

Segundo a generosidade, o amor, a perseverança e demais virtudes que venhamos a manifestar nessa prova, assim será a medida do nosso grau. Como se pode ver, é uma disposição magnífica das coisas, em que se manifesta a sabedoria infinita de Deus. Se tal razão exposta é importante, considero, entretanto, que é ainda mais [importante] considerar o fato de que o único momento em que um espírito pode desenvolver a sua fé e a sua generosidade para com Deus é justamente quando não O vê. Depois de vê-lO,  ficará pleno de gratidão ante o que contempla. Porém, este amor generoso na fé e na confiança em Deus, na obscuridade, somente é possível antes da visão beatífica. Depois, já não será mais possível. Tudo será possível, menos isso. Digamos que é um atributo do espírito que se desenvolve antes da visão direta da essência de Deus ou que depois se torna absolutamente impossível. 

Por isso, a prova é um dom de Deus. Um dom que permite ser germinada e desenvolvida em nós a flor da fé, com todos os seus frutos. Essa flor não poderá mais nascer durante a eternidade, pois já não poderá haver fé onde se tem a Plena Visão. E, através da fé, e em consequência dela, provêm as virtudes subsequentes. Cada anjo tenderia a desenvolver umas mais, outras menos. Antes de tudo, o tempo de provas dava a possibilidade de que nascessem e desenvolvessem as virtudes teologais. Depois, alguns anjos desenvolveriam mais a virtude da perseverança, outros a da humildade, outros ainda a súplica, etc. Obviamente, conceder a um ser a possibilidade de que nele nasça a fé significa arriscar que nele possa germinar não a fé, mas o mal. Deus sabia que, ao conceder tal liberdade, esta poderia ser direcionada para o bem como para o mal. 

Deus poderia ter criado o universo como quisesse, como fosse da Sua vontade, sem quaisquer limites ou contraposições. Entretanto, a santidade não se cria, mas esta se faz às custas da ação da graça. Conceder o dom da liberdade aos espíritos supõe que possa surgir neles uma Madre Teresa de Calcutá ou um Hitler. Uma vez que se concede a dádiva da liberdade, concede-se [também] todas as suas consequências. Querer que apareça o bem espiritual implica aceitar de antemão a possibilidade de surgir o mal espiritual. No universo material, não há bem espiritual, nem mesmo a mais ínfima quantidade de bem espiritual. O bem do mundo material é um bem material; a glorificação do universo físico ao Criador constitui uma glorificação material e inconsciente. O bem espiritual é qualitativamente superior, mas pressupõe necessariamente admitir este risco.

Por isso, o surgimento do mal não constituiu uma obliteração dos planos divinos. A possibilidade do aparecimento do mal já fazia parte dos planos divinos antes mesmo da criação de seres pensantes. De qualquer forma, mesmo tendo sido exposto previamente de que a prova era necessária para se determinar o grau de glória, a razão mais importante, a razão fundamental para Deus conceder o dom da liberdade, era o de obter o amor [das criaturas] de um modo livre. Sem essa prova, Deus poderia ter recebido a gratidão de todos os seres aos quais teria dado um grau de glória sem se submeterem aos riscos de uma prova. Porém, Deus é um ser que ama e que quer ser amado. O único jeito de obter esse amor na fé, esse amor de confiança, esse amor desinteressado e nascido na obscuridade do que não se pode ver, era por meio da proposição de uma prova. Volto a repetir que o mesmo Deus que pode criar milhares de universos com um único ato de Sua vontade, não pode criar esse amor que nasce daquele que é provado no sofrimento da fé. O amor a Deus não se cria, é uma doação que parte de cada criatura. 

QUESTÃO 3: Por que Deus não suspendeu a liberdade ao ver que começavam a pecar?

Por que Deus não retira a liberdade ao ver que alguém avança pelo caminho do mal? Não o faz porque fazer isso seria supor que o espírito já estaria fadado para sempre no mal. Permitir-lhe que siga cometendo o mal supõe oferecer-lhe a possibilidade de retomar o bem. Retirar-lhe da prova implicaria que se cometessem menos pecados, mas o espírito removido da mesma ficaria petrificado no mal para sempre. Permitir que o mal prossiga fazendo o mal lhe dá [a quem pratica o mal], então, a oportunidade de retroceder [à prática do bem].

QUESTÃO 4: Todos os demônios são iguais?

Já foi dito que cada demônio pecou com uma intensidade determinada. Além disso, cada demônio pecou em um ou em vários pecados específicos. A rebelião teve sua origem na soberba, pelo que dessa raiz nasceram outros pecados. Durante os exorcismos, isso fica muito claro: há demônios que pecam mais por ira, outros por egolatria, outros por desespero, etc. Cada demônio tem a sua psicologia própria, sua forma particular de ser. Há aqueles que são mais eloquentes, outros mais sarcásticos, em alguns brilha de forma especial a soberba, em outros, o ódio, etc.

Ainda que todos tenham se separado de Deus, uns são piores do que outros. É importante ressaltar que, como nos diz São Paulo, existem nove hierarquias angélicas. As hierarquias superiores são mais belas, inteligentes e poderosas  que as inferiores. Cada anjo é completamente distinto dos outros anjos. Não há raças de anjos, para usar um termo sociológico, mas cada um completa a sua espécie. Por outro lado, é possível agrupar os anjos em grandes grupos ou hierarquias, também chamadas coros, pois estes se formaram em [diferentes] coros que entoam louvores a Deus. Seu cântico não vem pela voz, mas trata-se de um louvor espiritual que expressa a vontade [dos anjos] de conhecer e amar a Trindade. 

De cada uma das nove hierarquias, caíram anjos que se transformaram em demônios, ou seja, há demônios que são virtudes, potestades, serafins, etc. Ainda que sejam demônios, conservam intactos seu poder e inteligência. Por tudo que foi dito, fica claro que existe também uma hierarquia demoníaca. Uma coisa comprovada nos exorcismos é que, entre eles, existe uma supremacia dos superiores sobre os inferiores. Em que consiste este poder? É algo impossível de saber, pois não se sabe como um demônio pode obrigar outro a fazer algo, pois não há um corpo para o forçar a isso. Entretanto, comprova-se que um demônio superior pode forçar outro inferior a não abandonar um corpo durante um [ritual de] exorcismo. Ainda que o demônio inferior esteja sofrendo e queira sair, o superior pode impedir-lhe. Como um demônio pode obrigar outro demônio [a fazer ou proibir alguma coisa], sendo este imaterial, é algo, repito, que escapa à nossa compreensão.

(Excertos da obra 'Summa Daemoniaca', do Pe. Jose Antonio Fortea, tradução do autor do blog)