terça-feira, 8 de janeiro de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (VI)

O velho Nicolau virou o corpo um centésimo de volta buscando uma posição mais confortável na velha cama do hospital. O rangido de molas pressionadas varou a escuridão do pequeno quarto. Devia ter sido a décima vez nos últimos cinco minutos e, como sempre, ele buscava divisar alguma movimentação no vulto adormecido na outra cama, junto a única janela do quarto. Nada. O velho Simeão parecia morto, dormindo profundamente, virado para a parede. Naquela escuridão, por mais estranho que fosse, ele conseguia enxergar melhor. As bolhas espalhadas pelo seu corpo também comprimiam as suas pálpebras mas, na ausência de luz direta, ele as podia abrir sem dor e sem distorção visual e fixar um objeto por algum tempo. De dia, as coisas e as formas tingiam-se de todos os reflexos na redoma das bolhas opacas dos cantos dos olhos; ainda que se mirasse com um mínimo de acuidade visual, as imagens eram borrões assimétricos feito vertigens no fundo de suas retinas.

Voltou o corpo à centimétrica posição anterior, no anseio vão de dispor um espaço do corpo livre das chagas no colchão macio e puxou o cobertor para cima. E ainda precisava estas madrugadas tão frias! O cobertor pesado ajudava a pressionar as feridas e aumentava o desconforto das bolhas cheias de pus e secreção. O rangido era a certeza de que ainda estava vivo, mas até quando? Para que Deus lhe dava tanto sofrimento, se ele tinha sido um bom homem, um bom cristão? Para que tantas pomadas e remédios, se o único sedativo que valeria realmente a pena seria o de simplesmente não acordar amanhã? A sua única ambição era ser aquela cadeira inanimada e inútil, no canto do quarto, que só servia para ser cabide para o paletó do velho Simeão. Cadeira inútil pois sem valia alguma, já que não havia ninguém, absolutamente ninguém, que pudesse vir visitar dois velhos doentes e cansados. Seus filhos, parentes, família? Cada um seguiu a sua lida e o asilo tinha sido a concessão máxima possível para se livrar de um velho cheio de manias e prestes a caducar de vez. A doença viera a cavalo e sabe-se lá se algum deles sequer soubessem dela. Era melhor assim, a simples rejeição deles tinha agora o ar de fraterna devoção.

Forçou a vista para distinguir o espectro do paletó ancorado no espaldar da cadeira.Virou-se para a parede e forçou a vista para divisar o companheiro de quarto. Era um bom companheiro. Nunca reclamara do fato de a janela ficar sempre fechada para que a claridade não queimasse suas retinas em bolhas. E, mesmo assim, ele era os olhos dos dois, na penumbra, na escuridão daquele quarto, naquele mundo de sombras. Sim, pois todo dia, ao cair da tarde, o velho Simeão colocava o paletó, abria um sopro de janela, sentava-se na cama e contava, com detalhes e riqueza inigualável, as cenas da vida que explodia transbordante na rua em frente do hospital, vista e revista por um pequeno desvão de janela. Era a hora mais bendita do dia, bálsamo maior de todos os sedativos, um pequeno milagre de calmaria no oceano de suas dores. Naquela hora de graça, Nicolau deitava-se de costas, fechava os olhos e sua mente passeava na rua dos sonhos mais belos que já foram sonhados.

O seu amigo de quarto tinha os olhos de um artista e era um mestre na arte de descrever pessoas, eventos, cenas prosaicas, gestos caricatos. Como gostaria de ver, ainda que por um breve instante, a moça 'que tinha o sorriso mais bonito do mundo'; a dona do carrinho de pipoca, o velho artista de circo, as crianças indo para a escola, o rapaz carregando coisas impossíveis sobre uma bicicleta, a senhora gorda tentando correr atrás das filhas, o japonês de cabelo louro, o homem de avental, a confusão para subir no ônibus, os dois velhos sentados no banco da pracinha, o mendigo na porta da padaria, o rapaz da cadeira de rodas, a florista dorminhoca, o zelador do prédio da esquina, a gente das ruas. E, inveja das invejas, se ele, os olhos de Simeão tivesse, olharia mais uma vez, a última vez que fosse, o céu azul, as nuvens de chuva, o sol do meio dia.  

O velho Nicolau acordou assustado com a voz do enfermeiro, trazendo o material para a aplicação de compressas e para drenagem das bolhas. Então, já era manhã avançada! Por alguma razão especial, o sono viera pesado e por muitas horas. Sentia um estranho alívio e uma enorme disposição para se submeter àquela pequena tortura, que se repetia a cada manhã. 

'Seu Nicolau - o enfermeiro parecia mais cuidadoso do que nos outros dias - infelizmente seu colega de quarto faleceu esta noite'.

O velho homem buscou a cama da parede e a cadeira no canto do quarto, quase com os olhos sem bolhas. A cama estava vazia e já arrumada. O paletó não estava mais sobre a cadeira vazia. Mas os olhos do velho homem ficaram petrificados na janela totalmente aberta e na penumbra completa do quarto. 

'Mas como - a voz do velho Nicolau era um arremedo de voz na garganta cheia de feridas - a janela está toda aberta?'

'O senhor quer que ela também fique fechada?' - o enfermeiro o olhou com ar de espanto. 'Seu Simeão não nos deixava abri-la de jeito nenhum, mesmo a gente dizendo que ela dava para uma parede e a luz não iria incomodar o senhor'.

'Parede? Mas ele me contava tantas coisas que via acontecer na rua em frente...' - a voz do velho agora era um sussurro.

'Desculpe-me, seu Nicolau, mas o velho Simeão não podia ver coisa alguma, pois era cego de nascença!'.

Quando a agulha começou a punção da primeira bolha, o velho Nicolau sorriu, fechou os olhos e começou a imaginar as longas histórias que haveria de contar um dia ao velho Simeão.