quarta-feira, 2 de julho de 2025

SOBRE SER VIGILANTE E DILIGENTE NO SERVIÇO DE DEUS


1. Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pergunta-te a miúdo: a que vieste, para que deixaste o mundo? Não será para viver por Deus e tornar-te homem espiritual? Trilha, pois, com fervor o caminho da perfeição, porque em breve receberás o prêmio dos teus trabalhos; nem te afligirão, daí por diante, temores nem dores. Agora, terás algum trabalho; mas depois acharás grande repouso e perpétua alegria. Se tu permaneceres fiel e diligente no seu serviço, Deus, sem dúvida, será fiel e generoso no prêmio. Conserva a firme esperança de alcançar a palma; não cries, porém segurança, para não caíres em tibieza ou presunção.

2. Certo homem que vacilava muitas vezes, ansioso, entre o temor e a esperança, estando um dia acabrunhado pela tristeza, entrou numa igreja, e diante dum altar, prostrado em oração, dizia consigo mesmo: Oh! se eu soubesse que havia de perseverar! E logo ouviu em si a divina respostas: Se tal soubesses, que farias? Faze já o que então fizeras, e estarás bem seguro. Consolado imediatamente, e confortado, abandonou-se à divina vontade, e cessou a ansiosa perplexidade. Desistiu da curiosa indagação acerca do seu futuro aplicando-se antes em conhecer qual fosse a vontade e o perfeito agrado de Deus para começar e acabar qualquer boa obra.

3. Espera no Senhor e faze boas obras, diz o profeta, habita na terra e serás apascentado com suas riquezas (Sl 37,3). Há uma coisa que esfria em muitos o fervor do progresso e zelo da emenda: o horror da dificuldade ou o trabalho da peleja. Certo é que, mais que os outros, aproveitam nas virtudes aqueles que com maior empenho se esmeram em vencer a si mesmos naquilo que lhes é mais penoso e contrariam mais suas inclinações. Porque tanto mais aproveita o homem, e mais copiosa graça merece, quanto mais se vence a si mesmo e se mortifica no espírito.

4. Não custa igualmente a todos se vencer e mortificar-se. Todavia, o homem diligente e porfioso fará mais progressos, ainda que seja combatido por muitas paixões, que outro de melhor índole, porém menos fervoroso em adquirir as virtudes. Dois meios, principalmente, ajudam muito a nossa emenda, e vêm a ser: apartar-se valorosamente das coisas às quais viciosamente se inclina a natureza, e porfiar em adquirir a virtude de que mais se há mister. Aplica-te também a evitar e vencer o que mais te desagrada nos outros.

5. Procura tirar proveito de tudo: se vês ou ouves relatar bons exemplos, anima-te logo a imitá-los; mas, se reparares em alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, e, se em igual falta caíste, procura emendar-te logo dela. Assim como tu observas os outros, também eles te observam a ti. Que alegria e gosto ver irmãos cheios de fervor e piedade, bem acostumados e morigerados! Que tristeza, porém, e aflição, vê-los andar desnorteados e descuidados dos exercícios de sua vocação! Que prejuízo descurar os deveres do estado e aplicar-se ao que Deus não exige!

6. Lembra-te da resolução que tomaste, e põe diante de ti a imagem de Jesus crucificado. Com razão te envergonharás, considerando a vida de Jesus Cristo, pois até agora tão pouco procuraste conformar-te com ela, estando há tanto tempo no caminho de Deus. O religioso que, com solicitude e fervor, se exercita na santíssima vida e paixão do Senhor, achará nela com abundância tudo quanto lhe é útil e necessário, e escusará buscar coisa melhor fora de Jesus. Oh! se entrasse em nosso coração Jesus crucificado, quão depressa e perfeitamente seríamos instruídos!

7. O religioso cheio de fervor tudo suporta de boa vontade e executa o que lhe mandam. O relaxado e tíbio, porém, encontra tribulação sobre tribulação, sofrendo de toda parte angústias: é que ele carece da consolação interior e lhe é vedado buscar a exterior. O religioso que transgride a regra anda exposto a grande ruína. Quem busca a vida cômoda e menos austera, sempre estará em angústias, porque uma ou outra coisa sempre lhe desagrada.

8. Que fazem tantos outros religiosos que guardam a austera disciplina do claustro? Raro saem, vivem retirados, sua comida é parca, seu hábito grosseiro, trabalham muito, falam pouco, vigiam até tarde, levantam-se cedo, rezam muito, lêem com freqüencia e conservam-se em toda a observância. Olha como os cartuxos, os cistercienses, e os monges e monjas das diversas ordens se levantam todas as noites para louvar o Senhor. Vergonha, pois, seria, se tu fosses preguiçoso em obra tão santa, quando tamanha multidão de religiosos entoa a divina salmodia.

9. Oh! se nada mais tivesses que fazer senão louvar a Deus Nosso Senhor de coração e boca! Oh! se nunca precisares comer, nem beber, nem dormir, mas sempre pudesses atender aos louvores de Deus e aos exercícios espirituais! Então serias muito mais ditoso do que agora, sujeito a tantas exigências do corpo! Oxalá não existissem tais necessidades, mas houvesse só aquelas refeições que - ai! - tão raro gozamos!

10. Quando o homem chega ao ponto de não buscar sua consolação em nenhuma criatura, só então começa a gostar perfeitamente de Deus, e anda contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra pela abundância, nem se entristece pela penúria, mas confia inteira e fielmente em Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada perece nem morre, mas por quem vivem todas as coisas e a cujo aceno, com prontidão, obedecem.

11. Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes. Se começares a ser tíbio, logo te inquietarás. Se, porém, procurares afervorar-te, acharás grande paz e sentirás mais leve o trabalho com a graça de Deus e o amor da virtude. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões que afadigar-se em trabalhos corporais. Quem não evita os pequenos defeitos pouco a pouco cai nos grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite, se tiveres empregado bem o dia. Vigia sobre ti, anima-te e admoesta-te e, vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo. Tanto mais aproveitarás, quanto maior for a violência que te fizeres. Amém.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

terça-feira, 1 de julho de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXV)

 

113. Quando você tenta desobedecer a algum dos mandamentos divinos, como você se comporta? É especialmente no momento da tentação que a humildade é necessária. Toda vez que o diabo o tenta a cometer algum pecado grave, ele o tenta a se revoltar contra Deus, a desprezá-lo e a ofendê-lo.

114. Como você submete sua vontade à vontade de Deus nos momentos de adversidade, que são especialmente aqueles em que devemos nos humilhar, como nos diz o Espírito Santo pela boca de São Pedro: 'Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus' [1Pd 5,6]? Como todas as tribulações deste mundo são ordenadas por Deus, e as suas lhe são enviadas por Ele especialmente para humilhar o seu orgulho e mantê-lo na devida humildade, você realmente as recebe com a intenção de corresponder à intenção de Deus, dizendo com o Profeta: 'É bom para mim que Tu me tenhas humilhado' [Sl 118, 71]? 

O melhor meio de obrigar Deus a nos livrar de nossas tribulações é nos humilharmos, e o rei Davi testemunha isso por sua própria experiência: 'estava abismado na aflição e na ansiedade ... e o Senhor me salvou' [Sl 114,3.6]. Você já praticou esse meio de se humilhar em suas tribulações, protestando que as mereceu e as merece, mesmo que seja apenas por causa do seu orgulho? Deus envia adversidades para humilhá-lo, e Ele o humilha para que, a partir dessa humilhação, você possa aprender a humildade. Mas que fruto de humildade você colheu de todas as adversidades que teve até agora? Você pode dizer, como Moisés disse aos hebreus: 'Nós nos alegramos pelos dias em que Tu nos humilhaste' [Sl 89,15]?

115. Se você tem alguma qualidade boa, seja física ou espiritual, e se você fez alguma boa obra, você reconhece que tudo isso vem de Deus, atribuindo toda a glória a Deus como devida somente a Ele? 'Ao único Deus sejam dados honra e glória' [2Tm 1,17]. Nisso, diz São Paulo, discernimos o espírito de Deus, que é o espírito da humildade, do espírito do mundo, que é o espírito do orgulho, porque quem tem o espírito de Deus reconhece que tudo o que tem é simplesmente um dom de Deus: 'Agora, não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que vem de Deus, para que possamos conhecer as coisas que nos são dadas por Deus' [1Cor 2,12]. Mas de que serviria esse reconhecimento de que tudo vem de Deus, a não ser para referir todas as coisas a Ele e agradecer-lhe? Você agradece a Deus pelas muitas bênçãos que recebe constantemente dele - do fundo do seu coração, com verdadeira humildade, acreditando ser tão miserável que cairia em todos os pecados, e até mesmo no próprio inferno, se Deus não viesse em seu auxílio? 'Se o Senhor não me socorresse, minha alma em breve teria habitado no inferno' [Sl 93,17].

116. Nada é tão contrário à verdadeira humildade quanto buscar a própria estima no exercício das boas obras. Você às vezes faz o bem por motivos de respeito humano, a fim de ser visto, estimado? 'Cuidado' - diz o senhor - 'para não praticar a sua justiça diante dos homens, para ser visto por eles' [Mt 6, 1]. Você está simplesmente roubando a glória de Deus quando, dos dons que Ele lhe deu, reserva parte da glória para si mesmo. Examine as suas intenções; elas são puramente direcionadas à glorificação de Deus?

E admitindo que, ao fazer o bem, você não busca a estima dos homens, você às vezes faz isso para não perder as boas graças e favores dos outros, conformando-se ao espírito deles, que é viver de acordo com os costumes do mundo, esquecendo-se de Deus? Isso também é amar a glória do mundo mais do que a glória de Deus, e é uma falha que se opõe grandemente à humildade, e que foi condenada naqueles homens importantes entre os judeus que acreditavam em Cristo, mas por medo dos fariseus e por respeito à opinião deles não ousavam confessá-lo, 'porque amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus' [Jo 12,43].

117. Você tem talvez uma consciência tímida por causa de muitos escrúpulos? Se for esse o caso, examine-se e provavelmente descobrirá que a verdadeira razão dos seus escrúpulos reside no seu amor próprio, isto é, no seu orgulho. Você é indócil e não sabe como se submeter ao que seus diretores lhe dizem para fazer; e São Tomás ensina que isso é um efeito do orgulho, 'porque a docilidade é a bela filha da humildade e dispõe a alma à obediência' [2a 2æ, qu. xlviii; et qu. xlix, art. 3 ad 4]. Como é que, quando lemos a vida dos santos, não encontramos que eles eram agitados por esses escrúpulos? Os santos eram humildes, e onde há humildade, há também tranquilidade de espírito. Sabemos que muitas pessoas escrupulosas foram curadas de seus escrúpulos, que eram considerados quase incuráveis, por nenhum outro meio senão dizendo a Deus com todo o coração: 'Eu me acuso de orgulho; lamento meu orgulho e peço a vossa ajuda para corrigir meu grande orgulho'.

Mas se você perceber que é escrupuloso menos por indocilidade do que por covardia, peça conselho mais uma vez a São Tomás, que ensina que essa covardia também vem do orgulho, porque ao julgar nossa própria suficiência, colocamos nosso próprio julgamento em oposição ao dos outros [2a 2æ, qu. cxxxiii. art. 1]. Você deseja desfrutar da paz de uma consciência tranquila e também de certos consolos espirituais que são uma grande ajuda para fazer de boa vontade tudo o que é necessário para levar uma vida devota e ser cada vez mais fervoroso no serviço de Deus? Não posso lhe dar melhor conselho do que este: Entregue-se à humildade e Deus encherá a sua alma de consolo inefável. 'E meu espírito se alegrou' - diz a Santíssima Virgem em seu cântico; e ela acrescenta, para sua instrução, que essa exultação lhe foi enviada por Deus por causa de sua humildade: 'Porque Ele considerou a humildade da sua serva' [Lc 1,48].
 
118. Se você tem um desejo sincero de salvar a sua alma, deve tomar os meios que Deus ordenou para você, e o principal e mais essencial deles é a humildade, como mostra a Sagrada Escritura: 'Porque Tu salvarás o povo humilde' [Sl 33,10]. 'E Ele salvará os humildes de espírito' [Sl 17,28]. 'A glória sustentará os humildes de espírito' [Pv 29,23]. E como você estima essa humildade? Como você a pratica? Com que fervor você a pede a Deus? Você a considera um preceito ou apenas um conselho que você é livre para escolher ou rejeitar à vontade? A entrada no Paraíso não é apenas estreita, mas também baixa, por isso Jesus Cristo disse: 'A menos que vocês se tornem como crianças, não poderão entrar no reino dos Céus' [Mt 18,3]. E somente aquele que 'se humilhar' poderá entrar nesse reino [Mt 18,4].

Há sempre perigo na jornada rumo ao nosso lar celestial para aqueles que mantêm a cabeça erguida e é mais seguro mantê-la baixa. Esta é uma regra geral para todos. São João Crisóstomo nos adverte: 'Quando nosso Senhor disse: ‘Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração’, Ele não se dirigia apenas aos monges, mas a todas as classes de homens' [Lib. 3]. A humildade de coração não foi exigida por Jesus Cristo apenas aos religiosos, mas também aos seculares, fossem eles quem fossem e sem qualquer exceção.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

OS PAPAS DA IGREJA (XVI)



segunda-feira, 30 de junho de 2025

FRASES DE SENDARIUM (LIV)

 

'O caminho mais fácil para a santidade é aquele feito das meditações nos sofrimentos da Paixão de Nosso Senhor'

(São Boaventura)

Mais que pensar, vivas constantemente o sofrimento dos passos da Paixão de Cristo e recorda sempre aquele suor de sangue... Nele estavam também os teus e os meus pecados...

domingo, 29 de junho de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'De todos os temores me livrou o Senhor Deus' (Sl 33)

Primeira Leitura (At 12,1-11) - Segunda Leitura (2Tm 4,6-8.17-18) -  Evangelho (Mt 16,13-19)

  29/06/2025 - SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

AS COLUNAS DA IGREJA

Neste domingo, a liturgia católica celebra a Solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, primícias da fé, fundamentos da Igreja. De toda a fundamentação bíblica do primado de Pedro, é em Mt 16, 18-19 que aflora, mais cristalina do que nunca, a água viva que brota e transborda das Palavras Divinas as primícias do papado e da Igreja, nascidos juntos com São Pedro: 'Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la' (Mt 16,18). Esta será a Igreja Militante, a Igreja Temporal, A Igreja da terra, obra temporária a caminho da Igreja Eterna do Céu. Mas ligada a Pedro e aos sucessores de Pedro, sumos pontífices herdeiros da glória, poder e realeza de Cristo.

(Cristo entrega as chaves a São Pedro - Basílica de Paray-le-Monial, França)

E Jesus vai declarar, em seguida e sem condicionantes, o poder universal e sobrenatural da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana: 'Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus' (Mt 16,19). Ligado ou desligado. Poder absoluto, domínio universal, primado da verdade, Cátedra de Pedro. Na terra árida de algum ermo qualquer da 'Cesareia de Felipe', erigiu-se naquele dia, pela Vontade Divina, nas sementeiras da humanidade pecadora, a Santa Igreja, a Videira Eterna.

Com São Paulo, a Igreja que nasce, nasce com um gigante do apostolado e se afirma como escola de salvação universal. Eis aí a síntese do espírito cristão levado à plenitude da graça: Paulo se fez 'outro Cristo' em Roma, na Grécia, entre os gentios do mundo. No apostolado cristão de São Paulo, está o apostolado cristão de todos os tempos; a síntese da cristandade nasceu, cresceu e se moldou nos acordes pautados em suas epístolas singulares proferidas aos Tessalonicenses, em Éfeso ou em Corinto. Síntese de fé, que será expressa pelas próprias palavras de São Paulo: 'Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé' (2Tm 4,7).

(São Paulo Apóstolo - Basílica de Alba, Itália)

São Pedro foi o patriarca dos bispos de Roma, São Paulo foi o patriarca do apostolado cristão. Homens de fé e coragem extremadas, foram as colunas da Igreja. São Pedro morreu na cruz, São Paulo morreu por decapitação pela espada. Mártires, percorreram ambos os mesmos passos da Paixão do Senhor. E se ergueram juntos na Glória de Deus pela Ressurreição de Cristo.

sábado, 28 de junho de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XVIII)

P. 39 - Quais são os sentimentos e disposições adequadas que esta grande verdade deve produzir nos corações e na conduta dos membros da Igreja de Cristo?

Nada pode contribuir mais eficazmente para produzir as disposições mais necessárias e salutares em seus corações, tanto para com Deus, quanto para com os outros e para com aqueles que estão separados de sua comunhão, do que a consideração frequente e séria de sua vocação para a fé em Cristo e para a comunhão daquela Igreja, fora da qual não há salvação.

No que diz respeito a Deus, não pode deixar de inspirar-lhes os mais ternos sentimentos de afeto, amor e gratidão para com Ele, os que se veem tão altamente favorecidos pela sua infinita bondade, sem qualquer mérito de sua parte, e em preferência a tantos milhares de outros que são deixados na ignorância e no erro. Eles nunca devem deixar de louvá-lo e adorá-lo por um favor tão grande e inestimável, e devem ser assíduos em dar provas da sinceridade de sua gratidão e amor a Ele, por meio da obediência contínua aos seus mandamentos. Quão agradáveis são essas coisas ao Deus Todo-Poderoso, e o quanto Ele as exige daqueles a quem Ele tanto favoreceu, é evidente por sua própria Palavra Divina, onde somos frequentemente lembrados da grandeza da graça de nossa vocação e urgentemente ordenados a retribuir adequadamente a Deus por ela, por meio dessas virtudes sagradas.

'Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo' - diz São Paulo - 'que do alto do céu nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo, e nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos... Por isso também eu, tendo ouvido falar da vossa fé no Senhor Jesus, e do amor para com todos os cristãos, não cesso de dar graças a Deus por vós, lembrando-me de vós nas minhas orações. Rogo ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê um espírito de sabedoria que vos revele o conhe­cimento dele; que ilumine os olhos do vosso coração, para que compreendais a que esperança fostes chamados, quão rica e gloriosa é a herança que ele reserva aos santos, e qual a suprema grandeza de seu poder para conosco, que abraçamos a fé. É o mesmo poder extraordinário que ele manifestou na pessoa de Cristo' (Ef 1,3-4.15-20). Vede com que ardor ele deseja que tenhamos uma noção adequada dessa grande misericórdia! E um pouco depois, descrevendo a grandeza desse favor e o retorno que ele exige de nós, ele diz: 'porquanto é por ele que ambos temos acesso junto ao Pai num mesmo espírito. Consequentemente, já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus (Ef 2,18-20). E ainda: 'Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Se­nhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas' (Ef 5,8-11). Em outro texto, nos diz: 'para que vos comporteis de maneira digna do Senhor, procurando agradar-lhe em tudo... Sede contentes e agradecidos ao Pai, que vos fez dignos de participar da herança dos santos na luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado' (Cl 1,10.12-13). E, novamente, escrevendo a Tito, ele diz: 'É fiel esta palavra, e estas coisas quero que afirmes constantemente, para que os que crêem em Deus se esforcem por praticar boas obras' (Tt 3,8).

Por fim, para mostrar a necessidade absoluta dessa correspondência grata da nossa parte com a grande bondade de Deus para conosco, ele nos assegura que somente sob a condição de perseverarmos em nossa santa fé e na esperança de nosso chamado, podemos esperar a recompensa eterna de sermos apresentados sem mancha diante de Deus: 'Considerando que' - 'diz ele - 'algumas vezes vocês estavam alienados e eram inimigos em sua mente, em más obras; mas agora Ele os reconciliou no corpo da sua carne, para apresentá-los santos, imaculados e irrepreensíveis diante dele, se assim continuarem na fé, fundamentados e firmes, e inabaláveis no Evangelho que ouviram, que é pregado em toda a criação que está debaixo do céu' (Cl 1,21-23). São Pedro também descreve a graça da nossa vocação nos termos mais belos e assegura-nos que o próprio desígnio de Deus ao nos chamar era que pudéssemos retribuir-lhe adequadamente, proclamando os seus louvores. 'Vós sois uma geração eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido, para que proclameis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua admirável luz' (1Pd 2,9). Que grande obrigação tudo isso nos impõe de viver uma vida boa e de nos esforçarmos em todas as coisas para fazer a vontade de Deus, especialmente quando o próprio Cristo diz expressamente: 'Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos céus'!

P. 40. Quais são as disposições e o comportamento que esta inestimável bondade de Deus exige dos membros da sua Igreja uns para com os outros?

São Paulo descreve-nos isso de forma muito clara, da seguinte maneira: 'Exorto-vos, pois, – prisioneiro que sou pela causa do Senhor –, que leveis uma vida digna da vocação à qual fostes chamados, com toda a humildade e ama­bilidade, com grandeza de alma, suportando-vos mutuamente com caridade. Sede solícitos em conservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que atua acima de todos, por todos e em todos' (Ef 4,1-6).  Vejam aqui com que cores fortes ele mostra que a humildade, a mansidão e o amor fraternal são virtudes essenciais à nossa vocação, e que tudo o que pertence à nossa santa religião exige que vivamos na prática constante delas; que estamos todos unidos em um só corpo, a Igreja de Cristo animada por um só espírito, o espírito de Jesus, que guia e conduz esse corpo a toda a verdade; que somos chamados a uma só esperança da nossa vocação, a posse do próprio Deus na glória eterna; que todos servimos a um único Senhor, nosso Senhor Jesus Cristo; que todos professamos uma única fé, aquela santa fé que Ele revelou à humanidade, sem a qual é impossível agradar a Deus; que todos somos santificados por um único batismo; que todos servimos a um único Deus; que todos somos filhos de um único Pai; e que este Pai celestial está sempre presente conosco, e toda a nossa conduta está nua e aberta diante Dele. Quão impróprio, então, deve ser aos olhos deste nosso Pai, ver-nos entretendo discórdias ou má vontade entre nós! E quão indigno de nossa vocação e desonroso para nossa religião se, sendo membros do mesmo corpo, servos do mesmo mestre e filhos do mesmo Pai, unidos por tantos laços fortes de religião, vivêssemos em animosidade e inimizade uns com os outros!

Em outro texto, o mesmo santo apóstolo, descrevendo as disposições necessárias para aqueles a quem Deus chamou, como seus eleitos, para a graça inestimável de serem membros da sua santa Igreja, diz: 'Portanto, como eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos de entra­nhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, toda vez que tiverdes queixa contra outrem. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai também vós' (Cl 3,12-13).  E o comportamento contrário é tão impróprio e tão indigno da nossa vocação, que São Tiago declara que é até diabólico: 'Se tendes zelo amargo e contendas em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade; porque isso não é sabedoria que desce do alto, mas é terrena, sensual, diabólica' (Tg 3,14). Tudo isso é extraído da doutrina expressa do nosso grande Mestre, que não apenas ordena a todos os seus seguidores que vivam em amor fraternal e união entre si, mas declara que isso está tão ligado à sua vocação que é o sinal distintivo de que pertencem a Ele: 'Nisto todos saberão' - diz Ele - 'que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros' (Jo 13,35).

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 27 de junho de 2025

POEMAS PARA REZAR (LXI)


 TRANSFIGURAÇÃO

Meu Deus, aqui estou com pés e mãos atados,
grossas correntes freiam meus ombros e braços
minha cabeça jaz imóvel e engastada 
sobre o meu corpo rígido e desfigurado.

Tenho olhos para olhar mas olho o chão
tenho a boca ansiosa por falar e que se cala
almejo passos que não me levam a lugar algum
e mãos que não conhecem afagos nem abraços

Que coração é esse que só pulsa o sangue
que mantém vivo um organismo morto?
Que mente é essa que me rouba os tesouros
do mais íntimo clamor da minha alma?

Esse ser medonho e de inconsolável desespero
sou eu refém de minhas vontades e fantasias
submerso em mim, inflado de mim, sedento de mim
parasita que se alimenta do que eu sempre fui.

Ah não, Senhor, que é vã essa miragem
de criatura vã e inútil desse mundo;
dai-me a graça, que o vosso Santo Espírito
ilumine meu caminho de volta e conversão! 

E, então, rompei esta couraça da miséria trama
arrebentai as algemas deste infortúnio extremo,
tirai os meus olhos do chão e o coração do peito
para que pulse amor muito mais que sangue.

Libertai meus pés e mãos da mundana sanha
de me submergir na minha própria lama
Erguei meu corpo e fazei ascender da terra
uma árvore boa que dê frutos bons! 

Não ser mais o eu de tão desditosa sorte
eis o que vos imploro, ó Senhor meu Deus,
roubai do corpo que sucumbe à morte
a minha alma sedenta de ganhar os Céus!

(Arcos de Pilares)