terça-feira, 28 de maio de 2024

O PENSAMENTO DA MORTE

Tempus resolutionis meae instat - Chegou o tempo de recolher as velas 
(2 Tm 4, 6)

Certus quod velox est depositio tabernaculi mei - Estou certo que daqui a pouco terei de sair desta minha tenda (2 Pd 1, 14)

Finis venit, venit finis -  O fim! Chega o fim! (Ez 2, 7)

Esta consideração óbvia, sobre a precariedade da vida temporal e sobre o aproximar-se inevitável e cada vez mais perto do seu fim, impõe-se. Não é prudente a cegueira diante de tal sorte inevitável, diante da desastrosa ruína que leva consigo, diante da misteriosa metamorfose que está para realizar-se no meu ser, diante do que se prepara.

Vejo a consideração dominante tornar-se extremamente pessoal — eu, quem sou? o que fica ainda de mim? para onde vou? — e por isso extremamente moral — que devo fazer? quais são as minhas responsabilidades? E vejo também que, a respeito da vida presente, é inútil ter esperanças; a respeito dela, têm-se deveres e expectativas funcionais e momentâneas; as esperanças são para o além.

E vejo que esta suprema consideração não pode realizar-se num monólogo subjetivo, no habitual drama humano que, ao crescer a luz, faz crescer a obscuridade do destino humano; deve realizar-se em diálogo com a Realidade divina, donde venho e para onde certamente vou; segundo a lamparina que nos põe Cristo na mão para a grande passagem. Creio, ó Senhor.

Vem a hora. Disso tenho o pressentimento há tempos. Mais ainda que o cansaço físico, pronto a ceder a qualquer momento, o drama das minhas responsabilidades parece sugerir como solução providencial o meu êxodo deste mundo, para a Providência poder manifestar-se e levar a Igreja a melhores venturas. A Providência tem, sim, muitos modos para intervir no jogo formidável das circunstâncias, que apertam o meu pouco valer; mas o da minha chamada para a outra vida parece óbvio, para outro comparecer mais válido e não detido pelas dificuldades presentes. Servus inutilis sum - Sou um servo inútil.

Ambulate dum lucem habetis - Andai enquanto tiverdes luz (Jo 12, 35). Gostaria, ao terminar, de estar na luz. Ordinariamente o fim da vida temporal, se não é obscurecido por enfermidades, tem uma sua claridade apenas fosca: a das memórias, tão belas, tão atraentes, tão saudosas, e tão claras agora para denunciarem o seu passado irrecuperável e para fazerem rir ao serem evocadas sem esperanças. Há a luz que desvela a desilusão de uma vida fundada sobre bens efêmeros e esperanças falazes.

Há a de obscuros e agora ineficazes remorsos. Há a da sabedoria que finalmente entrevê a vaidade das coisas e o valor das virtudes que deviam caracterizar o decurso da vida: Vanitas vanitatum - Vaidade das vaidades. Quanto a mim, gostaria finalmente de ter uma noção recapituladora e esclarecida sobre o mundo e sobre a vida: julgo que tal noção deveria exprimir-se em reconhecimento: tudo era dom, tudo era graça; e como era belo o panorama através do qual se passou; demasiado belo, tanto que nos deixamos atrair e deslumbrar, quando devia parecer sinal e convite. Mas, seja como for, parece que a despedida deve exprimir-se num grande e simples ato de reconhecimento, mesmo de gratidão: esta vida mortal é, apesar das suas tribulações, dos seus obscuros mistérios, dos seus sofrimentos e da sua fatal caducidade, um fato belíssimo, um prodígio sempre original e comovedor, um acontecimento digno de ser cantado em gozo e em glória: a vida, a vida do homem! 

Nem menos digno de exaltação e de feliz espanto é o quadro que circunda a vida do homem: este mundo imenso, misterioso e magnífico, este universo de mil forças, de mil leis, de mil belezas e de mil profundidades. É panorama encantador. Parece prodigalidade sem medida. Juntar-se, a este olhar quase retrospectivo, a amargura de não ter admirado suficientemente este quadro, de não ter observado, quanto o mereciam, as maravilhas da natureza, as riquezas surpreendentes do macrocosmos e do microcosmos. Porque não estudei suficientemente, não explorei e não admirei a sala em que decorre a vida? Que imperdoável distração, que reprovável superficialidade! Todavia, pelo menos in extremis, deve-se reconhecer que aquele mundo qui per Ipsum factus est - que foi feito por meio dEle, é magnífico. Saúdo-te e celebro-te no último instante, sim, com imensa admiração; e, como dizia, com gratidão: tudo é dom; atrás da vida, atrás da natureza e do universo, está a Sabedoria; e depois, di-lo-ei nesta despedida luminosa, Tu no-lo revelaste, ó Cristo Senhor, está o Amor! 

A cena do mundo é um desígnio, hoje ainda incompreensível na sua maior parte, de um Deus Criador, que se chama o nosso Pai que está nos céus! Obrigado, ó Deus obrigado; e glória a Ti, ó Pai! Neste último olhar dou-me conta desta cena, fascinadora e misteriosa, ser um revérbero, um reflexo da primeira e única Luz; é revelação natural de extraordinária riqueza e beleza, que devia ser iniciação, prelúdio, antecipação e convite para a visão do invisível Sol, quem nemo vidit unquam - que ninguém nunca viu (cf Jo 1, 18):  unigenitus Filius, qui est in sinu Patris, Ipse enarravit - o Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele o revelou. Assim seja, assim seja.

Mas agora, neste pôr do sol revelador, outro pensamento — além do da última luz da tarde, presságio da eterna aurora — ocupa o meu espírito: é a ânsia de aproveitar a undécima hora, a pressa de fazer alguma coisa de importante antes que seja tarde demais. Como reparar as ações mal feitas, como recuperar o tempo perdido, como agarrar, nesta última possibilidade de escolha, o unum necessarium - a única coisa necessária? À gratidão sucede o arrependimento. Ao grito de glória, para Deus Criador e Pai, sucede o grito que invoca misericórdia e perdão. Isto pelo menos saiba eu fazer: invocar a Tua bondade, e confessar com a minha culpa a Tua infinita capacidade de salvar. Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison - Senhor piedade; Cristo piedade; Senhor piedade.

Vem aqui à memória a pobre história da minha vida, entrançada, por um lado, pela urdidura de singulares e inumeráveis benefícios, derivados de uma inefável bondade (é esta que espero poder um dia ver e cantar eternamente); e, por outro, atravessada por uma trama de ações míseras, que seria preferível não recordar, tanto são faltosas, imperfeitas, erradas, insipientes e ridículas. Tu seis insipientiam meam - Deus, Tu conheces a minha insipiência. Pobre vida trabalhosa, ávara e mesquinha, tão necessitada de paciência, de reparação e de infinita misericórdia. Sempre me parece sem igual a síntese de Santo Agostinho: miseria et misericordia - miséria minha, misericórdia de Deus. Consiga eu, ao menos agora, honrar Quem Tu és, ó Deus de infinita bondade, invocando, aceitando e celebrando a Tua dulcíssima misericórdia.

E depois um ato, finalmente, de boa vontade: já não olhar para trás, mas cumprir de boa vontade, simplesmente, humildemente e fortemente, o dever, que resulta das circunstâncias em que me encontro, como Tua vontade. Cumprir depressa. Cumprir tudo. Cumprir bem. Cumprir com alegria o que agora Tu queres de mim, mesmo que supere imensamente as minhas forças e, se me pedes, a vida. Finalmente, nesta hora última. Curvo a cabeça e levanto o espírito. Humilho-me a mim mesmo e exalto-Te a Ti, Deus, 'cuja natureza é bondade' (São Leão). Permite que, nesta última vigília, eu preste homenagem a Ti, Deus vivo e verdadeiro, que amanhã serás o meu juiz, e que Te dê o louvor que mais ambicionas, o nome que preferes: és Pai.

Depois eu penso, aqui diante da morte, mestra da filosofia da vida, que o acontecimento maior entre todos foi para mim, como o é para quantos têm igual fortuna, o encontro com Cristo, a Vida. Tudo precisaria de ser meditado de novo com a clareza reveladora, que a lâmpada da morte dá a tal encontro. Nihil enim nobis nasci profuit, nisi redimi , profuisset - De nada, de fato, nos teria valido nascer se não nos tivesse servido para sermos remidos. Esta é a descoberta do precônio pascal e este é o critério de valorização de todas as coisas respeitantes à existência humana em seu verdadeiro e único destino, que se determina apenas em ordem a Cristo: o mira circa nos tuae pietatis dignatio! - ó maravilhosa piedade do teu amor para conosco! Maravilha das maravilhas, o mistério da nossa vida em Cristo. Aqui a fé, aqui a esperança, aqui o amor cantam o nascimento e celebram as exéquias do homem. Eu creio, eu espero, eu amo, no Teu nome, ó Senhor.

E depois pergunto-me ainda: porque me chamaste, porque me escolheste? Tão inepto, tão renitente, tão pobre de espírito e de coração? Bem sei quae stulta sunt mundi elegit Deus... ut non glorietur omnis caro in conspectu eius - Deus escolheu o que no mundo é fraco... para nenhuma pessoa poder gloriar-se diante de Deus (1 Cor 1, 27-28). A minha eleição indica duas coisas: o meu pouco valor; a Tua liberdade, misericordiosa e potente. Esta não se deteve nem sequer diante das minhas infidelidades, da minha miséria, da minha capacidade de vos atraiçoar: Deus meus, Deus meus, audebo dicere... in quodam aestatis tripudio de Te praesumendo dicam: nisi quia Deus es, iniustus essem, quia peccavimus graviter... et Tu placatus es. Nos Te provocamus ad iram, Tu autem conduces nos ad misericordiam! - Meu Deus, meu Deus, atrever-me-ei a dizer... num extático tripúdio direi de Ti com presunção: se não fosses Deus, serias injusto, porque pecamos gravemente... e Tu te aplacas. Nós provocamos tua ira, e Tu em troca conduze-nos à misericórdia! (PL 40, 1150).

E eis-me aqui ao teu serviço, eis-me aqui no teu amor. Eis-me num estado de sublimação, que já não me consente recair na minha psicologia instintiva de pobre homem, senão para recordar-me da realidade do meu ser, e para reagir na mais ilimitada confiança com a resposta que é devida por mim: amen; fiat; Tu scis quia amo Te - assim seja, assim seja. Tu sabes que Te amo. Sucede um estado de tensão e fixa num ato permanente de absoluta fidelidade a minha vontade de serviço por amor: in finem dilexit - amou até ao fim. Ne permittas me separari a Te - Não permitas que eu me separe de Ti. O pôr do sol da vida presente, que desejaria fosse sossegado e sereno, deve ser pelo contrário esforço crescente de vigília, de dedicação e de expectativa. É difícil; mas é assim que a morte assinala a meta da peregrinação terrena, e constitui a ponte para o grande encontro com Cristo na vida eterna. Recolho as últimas forças, e não volto atrás do dom total realizado pensando no teu consummatum est- tudo está terminado.

Recordo o anúncio antecipado do Senhor a Pedro, sobre a morte do apóstolo: amen, amen dico tibi... cum... senueris, extendes manus tuas, et alius te cinget, et ducet quo tu non vis". Hoc autem (Jesus) dixit significans qua morte (Petrus) clarificaturus esset Deum. Et, cum hoc dixisset, dicit ei: 'sequere me' - Em verdade, em verdade te digo... quando fores velho, estenderás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará aonde tu não queres. Disse-lhe isto para indicar com que morte Ele glorificaria a Deus. E, dito isto, acrescentou: 'Segue-me' (Jo 21, 18-19).

Sigo-te; e noto que não posso sair ocultamente da cena deste mundo; ligam-me mil fios à família humana, e à comunidade que é a Igreja. Estes fios quebrarão por si; mas não posso esquecer que eles requerem de mim um último dever. Discessus pius - morte piedosa, terei diante do espírito a memória de como Jesus se despediu da cena temporal deste mundo. É de recordar como Ele teve contínua previsão e frequentemente anunciou a sua paixão, como mediu o tempo que faltava para a 'sua hora', como a consciência dos destinos escatológicos encheu o seu espírito e o seu ensinamento, e como da sua morte iminente falou aos discípulos nos discursos da última ceia; e finalmente como quis que a sua morte fosse perenemente comemorada mediante a instituição do sacrifício eucarístico: mortem Domini annuntiabitis donec veniat - Anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha.

Um aspecto principal acima dos outros: tradidit semetipsum - entregou-se a si mesmo por mim; a sua morte foi sacrifício; morreu pelos outros; morreu por nós. A solidão da sua morte foi cheia da nossa presença, foi penetrada de amor: dilexit Ecclesiam -amou a Igreja. A sua morte foi por si revelação do seu amor pelos seus: in finem dilexit - amou-os até ao fim. E do amor humilde e ilimitado, deu no termo da vida temporal exemplo impressionante (o lava-pés) e, do seu amor, fez termo de comparação e preceito final. A sua morte foi testamento de amor e é necessário recordá-lo.

Peço portanto ao Senhor que me dê a graça de fazer da minha próxima morte dom de amor à Igreja. Poderia dizer que sempre a amei; foi o seu amor que me fez sair do meu mesquinho e selvagem egoísmo e me encaminhou para o meu serviço; e que por ela, não por qualquer outro, me parece ter vivido. Mas desejaria que a Igreja o soubesse e que eu tivesse a força de vo-lo dizer, como confidência do coração, que só no último momento da vida a gente tem a coragem de fazer. Desejaria finalmente compreendê-la toda na sua história, no seu desígnio divino, no seu destino final, na sua complexa, total e unitária composição, na sua humana e imperfeita consistência, nos seus infortúnios e nos seus sofrimentos, nas fraquezas e nas misérias de tantos filhos seus, nos seus aspectos menos simpáticos, e no seu esforço perene de fidelidade, de amor, de perfeição e de caridade. Corpo místico de Cristo. Desejaria abraçá-la, saudá-la, amá-la, em todo o ser que a compõe, em todo bispo e sacerdote que a assiste e a guia, em toda a alma que a vive e a ilustra; abençoá-la. Também porque não a deixo, não saio dela, mas mais e melhor, me uno com ela e me confundo: a morte é um progresso na comunhão dos santos.

Vale a pena recordar aqui a oração final de Jesus (Jo 17). Os filhos do Pai e os meus; estes são todos um; no confronto com o mal que existe sobre a terra e na possibilidade da salvação deles; na consciência suprema: era missão minha chamá-los, revelar-lhes a verdade, fazê-los filhos de Deus e irmãos entre si: amá-los com o Amor, que está em Deus, e que de Deus, mediante Cristo, veio à humanidade e do ministério da Igreja, a mim confiado, comunicado a ela. Homens, compreendei-me; a todos vos amo na efusão do Espírito Santo, em que eu, ministro, era obrigado a fazer-vos participar. Assim olho para vós, assim vos saúdo, assim vos abençoo. A todos. E a vós, que estais mais perto de mim, mais cordialmente. A paz esteja convosco. E à Igreja, a quem tudo devo e que foi minha, que direi? As bênçãos de Deus estejam sobre ti; tem consciência da tua natureza e da tua missão; tem o sentido das necessidades verdadeiras e profundas da humanidade; e caminha pobre, isto é, livre, forte e com amor, para Cristo. Amém. O Senhor vem. Amém.

(Papa Paulo VI)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

A SANTIDADE SEGUNDO CARLO ACUTIS

Com a confirmação recente de um segundo milagre* atribuído por intercessão direta de Carlo Acutis pelo papa Francisco, a Igreja estabelece um firme patamar para elevar, em breve, esse adolescente italiano, falecido aos 15 anos de idade, à honra dos altares. A postagem abaixo sobre ele foi publicada originalmente nesse blog em 20/05/2021.

* cura de uma jovem de Costa Rica após acidente; o primeiro milagre reconhecido foi de um menino dotado de rara doença congênita, em Campo Grande /MS no Brasil

Carlo Acutis (1991 - 2006)

Há algo extraordinário na santidade de pessoas absolutamente comuns. Carlo Acutis, Chiara Badano e Anne-Gabrielle Caron são referências e modelos de santidade extraordinária para uma juventude que não se espelha nos falsos valores de um mundo atual cada vez menos cristão.

Carlo Acutis viveu apenas 15 anos nessa terra e nunca realizou feitos portentosos. Mas a sua vida simples, cotidiana e comum foi absolutamente extraordinária, não apenas como fruto de uma doação singular às graças divinas, mas pelo empenho de viver a santidade à perfeição. Tal propósito incluía amar como Jesus amava, praticar a caridade como regra cotidiana de vida, colocar-se à disposição do próximo com enorme generosidade e sem se preocupar com retribuição alguma. Praticava a oração e a eucaristia quase diária e transformava uma fé viva e autêntica em obras constantes de caridade: 'a tristeza é o olhar voltado para si; a felicidade é o olhar voltado para Deus'. 


Carlo nasceu em Londres, filho de pais italianos em viagem de trabalho - Andrea Acutis e Antonia Salzano – em 3 de maio de 1991, sendo batizado em seguida. Pouco depois - em setembro de 1991 - a família retornou à Itália e Carlo passou a viver em Milão, onde fez seus estudos e onde, em contato como um estudante de engenharia de computação, desenvolveu enorme habilidade nessa área, particularmente na elaboração de sites e desenvolvimento de programas utilizando linguagens computacionais como C++ e HTML. Neste contexto, desenvolveu um projeto de apresentação, por meio de um site especialmente desenvolvido por ele, de uma resenha, com uma rica exposição de imagens, dos principais milagres eucarísticos conhecidos no mundo. 

A síntese de sua via espiritual era a amizade com Deus: a alegria de viver na presença de Deus, o cuidado em não ofender a Divina Vontade, o empenho extremado em estar disponível a todas as graças, particularmente na posse da eucaristia diária e, caso não possível, na prática da comunhão espiritual frequente. Tudo emanado da prática da caridade constante, da cordialidade extrema ao próximo e do bom dia aos porteiros dos prédios vizinhos, aos cuidados em servir e alimentar, no anonimato e no despojamento, os moradores de rua. Tudo por Jesus e para Jesus, ou como ele próprio dizia: 'a conversão é simplesmente um olhar para o Alto'.

Em outubro de 2006, foi internado por causa de uma suposta gripe, posteriormente diagnosticada como uma leucemia particularmente agressiva. Aceitou serenamente a provação, afirmando: 'Ofereço ao Senhor os sofrimentos que terei que sofrer, pelo papa e pela Igreja, para não ter que passar pelo Purgatório e poder ir diretamente para o Céu'. Faleceu em 12 de outubro de 2006 no hospital de San Gerardo, em Monza, após ter recebido a eucaristia e a unção dos enfermos. O seu funeral já foi um reflexo da sua santidade precoce. O seu corpo foi sepultado no túmulo da família em Ternengo e, em fevereiro de 2007, transferido para o cemitério municipal de Assis, conforme seu próprio desejo, mesmo antes de passar pela doença. Em 10 de outubro de 2020, foi beatificado em Assis pelo Papa Francisco. Cerca de 10 dias antes, havia sido feita a exumação do seu corpo, constatando-se que o mesmo permanecia intacto a quaisquer processos de decomposição desde a época da sua morte.


 

domingo, 26 de maio de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Feliz o povo que o Senhor escolheu por sua herança' (Sl 32)

Primeira Leitura (Dt 4,32-34.39-40) - Segunda Leitura (Rm 8,14-17) -  Evangelho (Mt 28,16-20)

  26/05/2024 - SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE 

26. GLÓRIA AO PAI, AO FILHO E AO ESPÍRITO SANTO


O mistério da Santíssima Trindade é um mistério de conhecimento e de amor. Pois, desde toda a eternidade, o Pai, conhecendo-se a Si mesmo com conhecimento infinito de sua essência divina, por amor gera o Filho, Segunda Pessoa da Trindade Santa. E esse elo de amor infinito que une Pai e Filho num mistério insondável à natureza humana se manifesta pela ação do Espírito Santo, que é o amor de Deus por si mesmo. Trindade Una, Três Pessoas em um só Deus.

Mistério dado ao homem pelas revelações do próprio Jesus, posto que não seria capaz de percepção e compreensão apenas pela razão natural, uma vez inacessível à inteligência humana: 'Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo' (Mt 28, 18 - 20). Mistério também revelado em sua extraordinária natureza, em outras palavras de Cristo nos Evangelhos: 'Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz' (Jo 5, 19-20) ou ainda 'Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho' (Mt 11, 27).

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Verbo de Deus feito homem, sob duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana: 'Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele' (Jo 3, 16 - 17). Enquanto homem, Jesus teve as três potências da alma humana: inteligência, vontade e sensibilidade; enquanto Deus, Jesus foi consubstancial ao Pai, possuindo inteligência e vontade divinas.

'Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo'. Glórias sejam dadas à Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Neste domingo da Santíssima Trindade, a Igreja exalta e ratifica aos cristãos o maior dos mistérios de Deus, proclamado e revelado aos homens: O Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho (Conselho de Florença, 1442).

sábado, 25 de maio de 2024

TESOURO DE EXEMPLOS (331/335)

331. COISAS PIORES

São Vicente de Paulo fôra caluniado e Ana de Áustria, rainha de França, lhe disse:
➖ Sabe, padre, que coisa dizem do senhor?
➖ Senhora - respondeu o santo - sou um pobre pecador.
➖ Mas é preciso que se defenda - replicou a rainha.
Mas Vicente, sem perder a calma, argumentou:
➖ Senhora, coisas piores disseram contra Nosso Senhor e Ele se calou!

332. CINCO FRANCOS

O general Dasmene, ferido mortalmente em 1848 pela bala de um rebelde, antes de morrer entregou à Irmã de Caridade, que o tratava, cinco francos, dizendo-lhe: 
➖ Irmã, peço-lhe que mande celebrar duas missas, sendo uma por mim e outra por quem me assassinou.

333. PERDOAR

O duque de Guise, grande defensor da religião católica, estava sendo espreitado por um protestante que o queria matar. Quando soube disso o duque chamou-o e lhe disse:
➖ Fiz alguma coisa contra você?
➖ Não senhor - respondeu o protestante.
➖ Quem o induziu então a atentar contra a minha vida?
➖ Ninguém; somente queria defender os direitos de minha seita, matando o seu maior inimigo.
➖ Se a tua religião - disse o duque - mandar matar aluém, a católica manda perdoar. Eu te perdoo. Julga portanto qual delas é a verdadeira.

334. NOVELAS SENSACIONAIS

O tribunal de Colônia condenou, em 1908, um rapaz de 16 anos a 12 anos de prisão, por ter matado um menino de 9 anos. O rapaz, leitor assíduo de novelas de bandidos, quis imitar os protagonistas; e, para isso, amarrou o menino a uma árvore e deu-lhe uma morte como havia lidos nos livros.

335. UMA FAMÍLIA DE HOMICIDAS

Certa vez, o senhor Barat do Alto Loire (França) exigira que os seus filhos não fossem à missa nem ao catecismo e que odiassem os padres. Dizia a eles:
➖ Deixo-vos livres e podeis fazer o que quiserdes; mas, se vos encontrar rezando, eu vos mato.
Os seis filhos aprenderam a lição. Cinco morreram guilhotinados; e o último, porque seus pais lhe negaram dois francos para seu vícios, matou-os cinicamente.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

sexta-feira, 24 de maio de 2024

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA AUXILIADORA

Aos pés da Cruz, Jesus legou-nos a Virgem Maria como Mãe. Qual não deve ser o nosso zelo e devoção em recorrer constantemente a essa querida Mãe, invocando o seu socorro, o seu auxílio e a sua intercessão, neste vale de lágrimas: Mãe Auxiliadora. Com esse título, o papa Pio V fez incorporar uma nova invocação na Ladainha de Nossa Senhora - 'Auxiliadora dos Cristãos' ou 'Auxílio dos Cristãos' - após a tremenda vitória dos cristãos sobre os muçulmanos na batalha de Lepanto, em 1571. Entretanto, somente muito tempo depois, foi a festa litúrgica de Nossa Senhora Auxiliadora instituída formalmente pela Igreja, por iniciativa e promulgação do papa Pio VII, em 1816, uma vez libertado, à época, da prisão e da opressão política de Napoleão Bonaparte, determinando então a data de 24 de maio para a sua celebração.


MARIA AUXILIUM CHRISTIANORUM ORA PRO NOBIS

ORAÇÃO À NOSSA SENHORA AUXILIADORA - DOM BOSCO

Ó Maria, Virgem poderosa - grande e ilustre defensora da Igreja; auxílio maravilhoso dos cristãos; terrível como exército ordenado em batalha; vós que destruístes toda heresia em todo o mundo - nas nossas angústias, nas nossas lutas, nas nossas aflições, defendei-nos do inimigo e, na hora da nossa morte, acolhei a nossa alma no Paraíso. Amém.

ORAÇÃO À NOSSA SENHORA AUXILIADORA PELA PROTEÇÃO DA CASA

Santíssima Virgem Maria, a quem Deus constituiu Auxiliadora dos Cristãos, nós vos escolhemos como Senhora e Protetora desta casa. Dignai-vos mostrar aqui o vosso auxílio poderoso: do incêndio, da inundação, do raio, das tempestades, dos ladrões, dos malfeitores, da guerra e de todas as outras calamidades que conheceis.

Abençoai, protegei, defendei, guardai como coisa vossa as pessoas que vivem nesta casa. Sobretudo concedei-lhes a graça mais importante, a de viverem sempre na amizade de Deus, evitando o pecado.

Dai-lhes a fé que tivestes na Palavra de Deus, e o amor que nutristes para com Vosso Filho Jesus e para com todos aqueles pelos quais Ele morreu na cruz.

Maria, Auxílio dos Cristãos, rogai por todos que moram nesta casa que vos foi consagrada. Amém.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (III)


21. Em um país onde todos são cegos, basta que um homem tenha apenas um olho para que se diga que ele tem boa visão, e entre uma multidão de pessoas ignorantes, é preciso possuir apenas um leve toque de conhecimento para adquirir a reputação de ser muito instruído; e, da mesma forma, neste mundo perverso e corrupto, é fácil nos lisonjearmos de que somos bons, se não formos tão maus quanto muitos outros. 'Eu não sou como os demais homens' [Lc 18,11]: foi assim que o fariseu se elogiou no templo. Mas para nos conhecermos como realmente somos, não é com as pessoas mundanas que nos devemos comparar, mas com Jesus Cristo, que é o modelo de todos os predestinados. 'Olhai' - diz São Paulo a cada um de nós, citando as palavras que foram ditas a Moisés - 'olhai e fazei segundo o modelo que vos foi mostrado no monte' [Hb 8,5].

Como é que conformei a minha vida à vida do Filho de Deus encarnado, que veio ensinar-me o caminho do Céu com o seu exemplo? Sobe, ó minha alma, ao monte do Calvário e contempla atentamente o teu Salvador crucificado! A isso cada um de nós deve se conformar em seu próprio estado de vida, se quiser ser salvo; tal é o decreto do Pai eterno, que os predestinados 'devem ser conformes à imagem do seu Filho' [Rm 8,29]. Mas posso dizer com verdade e consciência que o imito? Em que sentido? Deixem-me examinar-me a mim próprio. Ah, como sou diferente dEle! E que justo motivo encontro neste exame para me humilhar! Comparando-me com os pecadores, julgo-me um santo; mas, comparando-me com Jesus Cristo, a quem devo imitar, sou obrigado a reconhecer que sou um pecador e um réprobo; e a única consolação que me resta é confiar na infinita misericórdia de Deus. 'Meu Senhor, meu amparo e meu libertador' [Sl 143,2].

22. Lê a vida dos santos e considera a vida de quem mais se assemelha à tua: que grau de santidade tens? Se morresses neste momento, a que parte do Paraíso te julgarias destinado? Talvez entre os inocentes? Ninguém é inocente se tiver cometido um só pecado mortal; e tu por acaso ainda tens na tua alma a tua inocência batismal? Talvez, portanto, entre os penitentes? Mas onde está a vossa penitência, quando, longe de procurardes a mortificação, procurais em tudo agradar a vós mesmos? Pensais que mereceis ser contado entre os mártires? Não falarei de derramamento de sangue, mas onde está a vossa paciência para sofrer apenas o menor problema ou adversidade nesta vida miserável? Julgas-te digno de ser contado entre as virgens? Mas és puro de corpo e de mente? 

Santo Antônio, o abade, depois de ter trabalhado muitos anos para se aperfeiçoar na santidade, imitando as virtudes de todos os anacoretas mais ilustres, teve muito que se humilhar quando ouviu falar de São Paulo, o primeiro eremita, e sentiu que, em comparação com este santo homem, ele próprio nada tinha de religioso. Ó minha alma, vem também e compara-te com os santos: 'recordai-vos dos feitos que vossos antepassados realizaram na época em que viveram' [1Mc 2,51] e encontrarás inúmeras ocasiões para te humilhares e perceberes como estás longe da santidade. É muito bom dizer: 'Eu não faço nada de errado'. Para ser salvo, não basta não fazer o mal, mas é preciso também fazer o bem. 'Evita o mal e faze o bem' [Sl 36,27]. Não basta não ser pecador por profissão, mas é preciso ser santo por profissão. 'Buscai a santidade, sem a qual ninguém poderá ver a Deus' [Hb 12,14].

23. Examina as virtudes que imaginas possuir. Tendes a prudência, a temperança, a fortaleza, a justiça, a modéstia, a humildade, a castidade, o despojamento do espírito, a caridade, a obediência e muitas outras virtudes que podem ser necessárias ou adequadas à vossa condição? Se tiverdes algumas delas, em que grau as possuís? Mas direi mais: examinai-vos primeiro a vós mesmos e vede se tendes realmente essa virtude que pensais possuir. O que quero dizer é: é uma virtude real, ou talvez apenas uma disposição do teu temperamento natural, seja ele melancólico, sanguíneo ou fleumático? E mesmo que essa virtude seja real, é uma virtude cristã ou puramente humana? Todo ato de virtude que não procede de um motivo sobrenatural, para nos levar à bem-aventurança eterna, não tem valor. 

E, na prática da virtude, juntais aos vossos atos exteriores os atos interiores e espirituais do coração? Ó verdadeiras virtudes cristãs, temo que em mim não sejais mais do que belas aparências exteriores! Mereço a censura da palavra de Deus: 'Porque dizes: rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho necessidade; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu' [Ap 3,17]. E, da mesma forma, vale mais para mim o conselho de Santo Agostinho, que é melhor pensar naquelas virtudes em que estamos carentes do que naquelas que possuímos: 'Humilhar-me-ei mais pelas virtudes que me faltam do que me orgulharei das que possuo'.

24. Para que um ato de virtude seja verdadeiramente virtuoso, é necessário que o seja em todas as suas partes componentes, e se for defeituoso num só ponto, torna-se imediatamente viciado. Uma intenção depravada, um único pensamento de vaidade no início, no meio ou no fim de qualquer obra virtuosa é suficiente para corrompê-la e transformá-la numa obra má. Basta que a virtude careça de humildade para que essa virtude, que já não é humilde, deixe de ser uma virtude e se torne uma causa de orgulho mortal. Acontece muitas vezes a quem leva uma vida espiritual que, quanto mais se esforça pela virtude, mais encontra um doce prazer em si mesmo e, por isso, como diz Santo Agostinho, o simples fato de se satisfazer a si mesmo torna-o rapidamente desagradável a Deus: 'Quanto mais o homem pensa que tem razões para estar satisfeito consigo mesmo, tanto mais temo que o seu amor-próprio desagrade a Deus, que resiste aos soberbos' [Lib. de Sancia Virginit., cap.34].

Ó como parecemos pobres quando examinamos a nossa própria espiritualidade e bondade com a ajuda destas reflexões! Queira Deus que não sejamos como aqueles homens que, sonhando que possuem grandes riquezas, acordam à beira da morte e descobrem que não passam de mendigos: 'Dormiram o seu sono, e sentiram fraquejar as suas mãos' [Sl 75,6]. Que Deus queira que a alegação de nossa virtude não seja um argumento para nossa maior condenação: 'E que aquilo que se pensa ser um progresso na virtude não seja uma causa de condenação' [Lib. 5 Moral. cap. vi], nos diz São Gregório.

25. A humildade é como a pureza: por pouco que se contamine, torna-se impura. A pureza é corrompida não só por um ato impuro, mas também por uma palavra ou um pensamento imodesto. E a humildade é também tão frágil que é facilmente contaminada pelo amor ao elogio, por uma palavra ou um pensamento de autoestima, pela vanglória ou pelo amor-próprio. Aquele que ama realmente a pureza não só desterra diligentemente todas as fantasias impuras, mas sempre o faz com horror e abominação; e do mesmo modo, aquele que ama realmente a humildade, longe de se comprazer nos louvores e nas honras, desgosta-se deles e, em vez de fugir das humilhações, as abraça.

Ó como me sinto humilhado aqui, pois vejo que não tenho verdadeiro amor à humildade! Qual é o resultado? Não se estima uma virtude que não se ama, e tem-se pouco desejo de adquirir uma virtude que não se estima nem se ama; e se assim for, ai de mim! Se não tenho amor nem estima pela humildade, é porque não sei quão preciosa é esta virtude em si mesma, nem quão necessária é para mim. Mas, ó meu Deus, soprai sobre mim esta palavra onipotente: 'Faça-se a luz' [Gn 1,3], para que eu seja iluminado e aprenda a conhecer esta importante virtude que Vós quereis que eu ame. E, com a vossa ajuda, amá-la-ei e guardá-la-ei zelosamente, se tiver luz para a compreender.

26. Todas as manhãs devemos fazer esta oração e oferta cotidiana a Deus: 'Ofereço-vos, ó meu Deus, todos os meus pensamentos, todas as minhas palavras e todas as minhas ações deste dia. Concedei-me que sejam pensamentos de humildade, palavras de humildade e ações de humildade para a vossa glória'. Também ao longo do dia será bom repetir esta jaculatória: 'Senhor Jesus, dai-me um coração contrito e humilde'. Estas poucas palavras contêm tudo o que podemos pedir a Deus; porque ao rezar por um coração contrito, pedimos-lhe o que é necessário para assegurar o perdão da nossa vida passada, e ao rezar por um coração humilde, tudo o que é necessário para assegurar a vida eterna. 

Que na hora da morte eu me encontre com um coração contrito e humilhado! Então, que confiança não terei na misericórdia de Deus, se puder exclamar com o rei Davi: 'Um coração contrito e humilde, ó meu Deus, não desprezarás'. Muitas vezes fazemos orações a Deus às quais Ele poderia responder com justiça: 'Não sabeis o que pedis' [Sl l,19], mas quando pedimos a santa humildade, sabemos com certeza que estamos a pedir algo que é mais agradável a Deus e mais necessário para nós mesmos; e ao pedir isso devemos acreditar que Deus manterá a sua promessa infalível: 'Pedi e vos será dado' [Mt 7,7].

27. Se examinarmos todas as nossas quedas em pecado, veniais ou graves, a causa será sempre encontrada em algum orgulho oculto; e são verdadeiras, de fato, as palavras do Espírito Santo: 'Porque o orgulho é o princípio de todo o pecado' [Eclo 10,15]. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo nos advertiu dessa verdade em seu Evangelho, onde diz: 'E todo aquele que se exaltar será humilhado' [Mt 23,12]. Deus não pode dar maior humilhação a uma alma do que permitir que ela caia em pecado; porque o pecado é o mais profundo de todos os abismos, o mais baixo, vil e ignominioso. Por isso, cada vez que somos humilhados ao cair em pecado, é certo que antes nos exaltamos por algum ato de orgulho; porque só os soberbos são ameaçados com o castigo desta humilhação: 'E humilhou-se depois, porque o seu coração se tinha exaltado' [cf 2Cr 32,25-26]. Pois assim está escrito sobre o rei Ezequias na Sagrada Escritura, e o escritor inspirado também disse: 'Antes da ruína, o coração do homem se ensoberbece' [Pv 18,12].

Nunca houve um caso de pecado, diz Santo Agostinho, nem haverá, nem poderá haver, em que o orgulho não tenha sido, em certa medida, a ocasião: 'Nunca houve, nunca haverá e nunca poderá haver pecado sem orgulho' [Lib. de Salute, 19]. Sejamos tão verdadeiramente humildes que não incorramos no castigo dessa humilhação. Ninguém pode cair se estiver deitado no chão; e ninguém pode pecar enquanto for humilde. Meu Deus, ó meu Deus, deixai-me ficar no meu nada, porque é o estado mais seguro para mim.

28. Lemos a respeito de muitos que, depois de terem sido renomados por sua santidade, fervorosos no exercício da oração, detentores de grandes penitências e virtudes notáveis, e depois de terem sido favorecidos por Deus com os dons do êxtase, revelações e milagres, caíram, no entanto, no vício hediondo da impureza à menor aproximação da tentação. E quando considero isto, acho que não há pecado que degrade tanto a alma como este pecado impuro dos sentidos, porque a alma, de ser racional e espiritual, como os anjos, torna-se assim carnal, sensual e torna-se como as bestas embrutecidas 'que não têm inteligência' [Sl 31,9].

Sou compelido a adorar com temor os supremos julgamentos de Deus e também, para minha própria advertência, a saber que o orgulho foi a razão de tão grande queda; portanto, todos nós deveríamos exclamar com o profeta: 'sou miserável porque o peso de vossos castigos me abateu' [Sl 87,16 ] e dizer a nós mesmos as palavras que Ele disse a Lúcifer: 'disseste que subiria sobre as nuvens mais altas e se tornaria igual ao Altíssimo e, entretanto, foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo [Is 14,14-15]. A alma é humilhada de acordo com a medida de sua auto-exaltação, e grande deve ter sido o orgulho que foi seguido por uma humilhação tão tremenda e abominável. Ah, quanto mais precioso é um grau de humildade em comparação com mil revelações ou êxtases! De que serve, diz Santo Agostinho, possuir a pureza, a castidade e a virgindade imaculadas, se o orgulho domina o coração? 'De que serve a continência para aquele que é dominado pelo orgulho?' [Serm. de Verb. Dom.]. 

É uma sábia e justa disposição de Deus permitir a queda do orgulhoso em todos os pecados e especialmente no da devassidão, como sendo o mais degradante de modo que, por tão grande queda, ele deve ser envergonhado, humilhado e curado de seu orgulho. Ó Santo Tomás, quão bem disseste: 'Aquele que está preso pela soberba e não o sabe, cai no pecado da impureza, que é manifestamente vergonhoso por si mesmo, para que por este pecado se levante humilhado da sua confissão' [Suma 22, qu. clxi, art. 6, ad 3] A partir daí, continua o santo, é mostrada a gravidade do pecado da soberba; e como um médico muitas vezes permite que seu paciente sofra de um mal menor para libertá-lo de um maior, assim Deus permite que a alma caia no pecado dos sentidos, para que possa ser curada do vício da soberba. A qualquer altura sublime de santidade que tenhamos atingido, uma queda é sempre de temer. Porque, como diz Santo Agostinho, não há santidade que não se perca pela soberba: 'Se há santidade em ti, teme que a percas. Como? Pela soberba' [Serm. 13 de Verb. Dom.].

29. Por mais que o nosso amor-próprio cristão queira evitar o remorso e o arrependimento que sempre se seguem às humilhações causadas pelo pecado, devemos, no entanto, desejar e procurar ser humildes, porque, se formos humildes, nunca podemos ser humilhados. 'Ó minha alma' - devemos dizer a nós mesmos - 'ó minha alma, olha bem para dentro de ti e sê humilde, se não queres que Deus te humilhe com vergonha temporal e eterna'. Deus promete exaltar os humildes, e o Céu está cheio de humildes; Deus também ameaça os orgulhosos com a humilhação, e o Inferno está cheio de orgulhosos. Deus assim promete e ameaça, de modo que, se não permanecermos em humildade atraídos por suas grandes promessas, devemos pelo menos permanecer em humildade por medo de suas divinas ameaças: 'E qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado' [Mt 23,12].

Deus considera favoravelmente as petições dos humildes e inclina-se a atendê-las: 'Atende à oração dos humildes, e não rejeita as suas súplicas' [Sl 101, 18]. Mas, por mais que o orgulhoso invoque a Deus, Deus não lhe dará consolação espiritual. Santo Agostinho diz: 'Deus não virá, ainda que o invoqueis, se estiverdes ensoberbecidos' [Enarr. In Sl 74]. Todas estas coisas são conhecidas e muito repetidas, mas é porque as conhecemos e não as praticamos que merecemos a repreensão dada pelo profeta Daniel a Nabucodonosor: 'Não humilhaste o teu coração, mesmo sabendo todas estas coisas' [Dn 5,22].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

ORAÇÃO DA SABEDORIA CELESTIAL


Confirmai-me Senhor, pela graça do Espírito Santo. Confortai em mim o homem interior e livrai meu coração de todo cuidado inútil e de toda ansiedade, para que não me deixe seduzir pelos vários desejos das coisas terrenas, sejam vis ou preciosas, mas para que as considere todas como transitórias, e me lembre que eu mesmo sou passageiro, como elas, pois nada há estável debaixo do sol, onde tudo é vaidade e aflição de espírito. Como é sábio quem assim pensa!

Dai-me, Senhor, sabedoria celestial, para que aprenda a buscar-vos, e achar-vos, antes que tudo, a gostar-vos e amar-vos acima de tudo, e a compreender todas as coisas como são, segundo a ordem de vossa sabedoria. Dai-me prudência, para afastar-me do lisonjeiro, e paciência para suportar a quem me contraria. Porque é grande sabedoria não se deixar mover por todo sopro de palavras, nem prestar ouvidos aos traiçoeiros encantos da sereia; pois só deste modo prossegue a alma com segurança no caminho começado.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)