quinta-feira, 23 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (V)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

V. Sobre o Julgamento

Além de tudo o que até agora consideramos como contribuindo para tornar a morte terrível para nós, está o pensamento de que devemos comparecer perante o tribunal de Deus e prestar contas de tudo o que fizemos e deixamos de fazer. Quão terrível é esse julgamento, aprendemos com estas palavras de São Paulo: 'É coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo' (Hb 10, 31). Pois, se é muito alarmante cair nas mãos de um homem irado, quanto mais terrível não será cair nas mãos de um Deus onipotente! 

Todos os santos tremiam antecipando a sentença que Deus lhes aplicaria, pois sabiam muito bem como são severos os seus julgamentos. O salmista real diz: 'Não entres em juízo com o teu servo, ó Senhor, pois diante de ti nenhum homem vivo será justificado' (Sl 142,2). E o santo Jó exclama: 'O que farei se Deus se levantar para me julgar? Quando me interrogar, o que responderei? ' (Jó, 31,14).

Mais uma vez, São Paulo diz: 'Não tenho consciência de nada contra mim, mas não estou por isso justificado; mas aquele que me julga é o Senhor' (1Cor 4,4). Lemos também nas vidas dos Padres que o santo abade Agatão ficou dominado pelo medo quando o seu fim se aproximava. Os seus irmãos disseram-lhe: 'Por que temes, reverendo pai, tu que levaste uma vida tão piedosa?' Mas ele respondeu-lhes: 'Os julgamentos de Deus são muito diferentes dos julgamentos dos homens'. O santo abade Elias costumava dizer: 'Há três coisas que temo. Primeiro, temo o momento em que minha alma terá que deixar meu corpo; segundo, o momento em que terei que comparecer perante o tribunal de Deus; terceiro, o momento em que a sentença será proferida sobre mim'. 

Ninguém pode deixar de concordar com as palavras desse homem santo, pois, de fato, além do julgamento geral, não há nada tão temível quanto essas três coisas. Todos os homens bons e santos as temeram, todos as temem. Aqueles que não as temem provam que sabem muito pouco sobre elas ou que quase não meditaram sobre elas. Para o benefício de alguém que possa ser tão pouco esclarecido, darei uma breve instrução sobre o assunto.

Considere, em primeiro lugar, que sensação estranha e nova será para a sua alma quando ela se encontrar separada do corpo, em um mundo desconhecido. Até então, ela não conhecia nenhuma existência separada do corpo; agora, de repente, está separada dele. Até então, ela estava no tempo; agora, passou para a eternidade. Agora, pela primeira vez, seus olhos se abrem e ela vê claramente o que é a eternidade, o que é o pecado, o que é a virtude, quão infinito é o ser da Divindade e quão maravilhosa é sua própria natureza.

Tudo isso lhe parecerá tão maravilhoso que ela ficará quase petrificada de espanto. Após o primeiro instante de admiração, ela será conduzida perante o tribunal de Deus, para que preste contas de todas as suas ações; e o terror que então se apoderará da alma infeliz ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Não é de se admirar que o infeliz pecador recue diante de comparecer a um tribunal onde será condenado por todos os seus erros e severamente punido por eles! Não preferiria ele ser jogado em um calabouço escuro e alimentado com pão e água, a ter que comparecer diante desse tribunal e ser exposto à vergonha pública?

Se é tão odioso para um criminoso ser levado perante um magistrado terreno, bem pode a pobre alma tremer de medo quando for apresentada à presença de Deus, o Juiz rigoroso e onisciente, e for obrigada a prestar contas com a maior precisão de todos os pensamentos, palavras, ações e omissões de sua vida passada. O santo Jó reconhece isso quando diz: 'Quem me concederá isso, que Tu me protejas no inferno e me escondas até que a Tua ira passe' (Jó 14,13). Observe que mesmo o paciente Jó prefere ficar deitado em um poço escuro e ficar escondido em uma caverna sombria e lúgubre do que aparecer diante da face de um Deus irado.

Há seis coisas que causam terror na alma, quando ela é chamada ao julgamento particular.

(i) A alma teme porque sabe que seu Juiz é onisciente; que nada pode ser ocultado dele, nem Ele pode ser enganado de forma alguma.

(ii) Porque seu Juiz é onipotente; nada pode resistir a Ele, e ninguém pode escapar dele.

(iii) Porque seu Juiz não é apenas o mais justo, mas o mais rigoroso dos juízes, para quem o pecado é tão odioso que Ele não permitirá que a menor transgressão passe impune.

(iv) Porque a alma sabe que Deus não é apenas seu juiz, mas também seu acusador; ela provocou a sua ira, ofendeu-o, e Ele defenderá a sua honra e vingará cada insulto oferecido a ela.

(v) Porque a alma está ciente de que a sentença, uma vez proferida, é irrevogável; não há recurso para ela em um tribunal superior, é inútil que ela reclame da sentença. Ela não pode ser revertida e, seja ela adversa ou favorável, ela precisa aceitá-la.

(vi) A razão mais poderosa de todas pelas quais a alma teme comparecer perante o tribunal é porque ela não sabe qual será a sentença do Juiz. Ela tem muito mais motivos para temer do que para ter esperança. E todo pensamento de ajuda agora acabou. Uma vez perdida para sempre, é para sempre; uma vez condenada para sempre, é para sempre!

Esses seis pontos enchem a alma de uma angústia e um terror tão indescritíveis que, se ela fosse mortal em vez de imortal, estaria disposta a morrer da morte mais cruel e violenta como forma de escapar.

Considera, além disso, de que forma aparecerás diante do teu Juiz e como ficarás confuso por causa dos teus pecados. Se um homem, em punição por suas más ações, fosse condenado a ser despido até ficar nu na presença de toda uma multidão, quão envergonhado ele se sentiria! Mas se alguma ferida repugnante e nojenta em seu corpo fosse assim revelada à vista, ele ficaria ainda mais envergonhado. Assim será contigo, quando estiveres diante do teu Juiz na presença de muitas hostes de Anjos. Não apenas todas as tuas más ações, pensamentos, palavras e obras serão revelados, mas todas as tuas propensões malignas serão manifestadas a ti, e tu serás exposto a uma vergonha terrível por causa delas.

Não podes negar que essas inclinações malignas se apegam a ti, pois não és dado à ira, à impaciência, à vingança, ao ódio, à inveja, ao orgulho, à vaidade, à sensualidade, à preguiça, à ganância, ao amor próprio, à avareza, à mundanidade e a toda malícia? Essas e outras tendências ruins se apegam à tua alma e a desfiguram de forma tão terrível que, após a morte, ficarás alarmado ao ver a tua própria alma e sinceramente envergonhado de todas as manchas presentes nela.

Em seguida, considera de que maneira o teu santo Juiz te receberá, quando apareceres diante dele não apenas carregado com uma multidão incontável de pecados, mas em um estado de impureza indescritível. Tu ficarás diante dele na maior confusão, sem saber para onde olhar. Sob teus pés está o inferno; acima de ti está o rosto irado do teu Juiz. Ao teu lado, tu vês os demônios que estão lá para te acusar. Em teu interior, tu contemplas todos os teus pecados e más ações. É impossível te esconderes; e, no entanto, essa exposição é intolerável.

Este seria um momento oportuno para explicar como o inimigo maligno irá acusá-lo, como ele trará todos os seus pecados à luz e invocará sobre eles a vingança de Deus; e também como o Deus justo exigirá o relato mais preciso de todas as suas ações. Mas isso tem sido tema tão frequente dos pregadores que, por uma questão de brevidade, não vou me alongar sobre essa parte do meu assunto, mas concluirei com a seguinte historieta.

Dois amigos íntimos combinaram que aquele que morresse primeiro apareceria ao sobrevivente, desde que Deus lhe permitisse fazê-lo. Quando finalmente um deles foi levado pela morte, fiel à sua promessa, ele apareceu ao seu amigo, mas com um aspecto triste e abatido, dizendo: 'Ninguém sabe! Ninguém sabe! Ninguém sabe!' 'O que é que ninguém sabe?', perguntou seu amigo. E o espírito respondeu: 'Ninguém sabe quão rigorosos são os julgamentos de Deus e quão severos são os seus castigos!'

Sendo assim, o que devemos fazer para não cair nas mãos de um Juiz tão irado? Não posso dar-te melhor conselho do que este: arrepende-te dos teus pecados, faz uma confissão sincera, corrige os teus caminhos e começa a pensar seriamente na tua salvação eterna. Enquanto ainda estás de boa saúde, pensa às vezes na morte e prepara-te para ela. Não adie isso até que a velhice chegue ou uma doença mortal o alcance. Não há arte maior nem mais importante na terra do que a arte de ter uma boa morte. Toda a sua eternidade depende disso: uma eternidade de felicidade incomparável ou de tormento indescritível.

Apenas uma prova lhe é concedida; se você não passar por essa única prova, tudo estará perdido, e uma eternidade de miséria estará diante de você. E se você não aprendeu essa arte tão importante durante sua vida, quando estava bem e forte, como poderá praticá-la para seu ganho eterno quando estiver em seu leito de morte? Será totalmente impossível para você fazer isso, a menos que Deus faça um milagre de misericórdia em seu favor. Você não pode contar com isso; Deus não prometeu isso, nem você mereceu um favor tão grande. Portanto, deixe-me implorar que siga meu conselho amigável e se prepare frequentemente para a morte enquanto estiver com plena saúde e força; pois este é o único meio pelo qual você pode esperar tornar-se proficiente na arte de morrer bem e passar com sucesso pela única provação que o espera, e pela qual o seu destino eterno será determinado.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)