terça-feira, 21 de outubro de 2025

A BÍBLIA EXPLICADA (XXX) - PARA BEM INTERPRETAR AS SAGRADAS ESCRITURAS

A ignorância da natureza das coisas dificulta a interpretação das expressões figuradas, quando estas se referem aos animais, pedras, plantas ou outros seres citados frequentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações. Assim, é fato notório que a serpente, para preservar a cabeça, expõe seu corpo todo aos que a espancam. O quanto esse gesto nos esclarece sobre o sentido das palavras do Senhor ao nos mandar ser prudentes como a serpente! (Mt 10,16). Isto é, devemos saber apresentar nosso corpo aos que nos perseguem, de preferência a expor nossa cabeça que é Cristo. Assim, não deixar morrer em nós a fé cristã, renegando a Deus, ao poupar o nosso corpo. 

Sabe-se ainda, a propósito da serpente que, por instinto, penetra em passagens estreitas da caverna para aí despojar-se da antiga pele e receber forças novas. Quanto essa transformação nos incita a imitar sua astúcia, a nos despojar do homem velho e nos revestir do novo, conforme a palavra do Apóstolo! (Ef 4,22.24; Cl 3,9.10). Despojar-nos assim através da via estreita, conforme a palavra do Senhor: 'Entrai pela porta estreita' (Mt 7,13). Do mesmo modo, como o conhecimento das propriedades da serpente nos esclarece muitas comparações que a Escritura costuma apresentar sobre esse animal, assim também a ignorância das características de outros animais, sobre os quais ela igualmente faz menção, muito embaraça a quem procura entender.

Semelhante embaraço é produzido pela ignorância das pedras, das plantas e de tudo o que se mantém pelas raízes. Por essa razão, até o conhecimento das pedrinhas (carbunculi) que brilham nas trevas esclarece, por sua vez, várias obscuridades dos Livros santos, onde quer que estejam empregadas como figuras. O desconhecimento do berilo ou do diamante igualmente fecha, por vezes, as portas à compreensão. Ser-nos-á fácil compreender por que o ramo de oliveira, trazido pela pomba em seu regresso à arca (Gn 8,11) simboliza a paz perpétua, ao estudarmos que o contato untuoso do óleo não pode facilmente ser alterado por líquido estranho e que a própria árvore da oliveira está sempre coberta de folhas. Muitos, por não conhecerem o hissopo, nem a virtude que ele possui de purificar os pulmões pelo fato de se enraizar nas rochas e ser erva miúda e rasteira, são incapazes de compreender por que está dito: 'Tu me borrifarás com o hissopo, e serei purificado' (Sl 51,9).

A ignorância dos números também impede compreender quantidade de expressões empregadas nas Escrituras sob forma figurada e simbólica. Certamente, um espírito bem nascido sente-se levado a se perguntar o significado do fato de Moisés, Elias e o Senhor terem jejuado por quarenta dias (Ex 24,18; 1Rs 19,8; Mt 4,2). Ora, esse acontecimento propõe um problema simbólico que só é resolvido por exame atento desse número. Compreende o número 40 quatro vezes 10 e, por aí, como que envolve o conhecimento de todas as coisas incluídas no tempo. Pois é num ritmo quaternário que prossegue o curso do dia e do ano. Divide-se o dia em espaços horários da manhã, do meio-dia, da tarde e da noite. O ano estende-se nos meses da primavera, do verão, do outono e do inverno. Ora, enquanto vivemos no tempo, devemos nos privar por abstinência e jejum dos prazeres que o tempo nos proporciona. 

É certo, aliás, que o próprio curso do tempo ensina-nos a menosprezar o tempo e a desejar a eternidade. Por outro lado, o número 10 simboliza o conhecimento do Criador e da criatura, pois 3 designa a Trindade do Criador e 7, a criatura, considerada em sua alma e em seu corpo. Com efeito, na alma, há três movimentos que levam a amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o espírito (Mt 22,37). E no corpo, estão bem manifestos os quatro elementos que os constituem. Consequentemente, este número denário move-nos à cadência do tempo. Isto é, voltando quatro vezes, adverte-nos para vivermos na castidade e na continência, desapegados dos deleites temporais, e prescreve-nos jejuar quarenta dias. Eis o que nos explica a Lei personificada em Moisés; eis o que mostra a profecia, representada por Elias; eis o que nos ensina o próprio Senhor. Apoiando-nos no testemunho da Lei e dos Profetas, ele apareceu em plena luz, entre essas duas personagens, sob os olhos dos três discípulos tomados de espanto (Mt 17,2.3).

Em seguida, pode-se perguntar, do mesmo modo, como do número quarenta vem o número cinquenta, eminentemente sagrado em nossa religião devido a Pentecostes (At 2). E ainda, como esse número cinquenta multiplicado por três por causa das três épocas: aquela antes da lei, a época sob a lei e a sob a graça; e somando de modo ainda mais eminente a mesma Trindade, refere-se ao mistério da Igreja já purificada, representada nos cento e cinquenta e três peixes que, depois da Ressurreição do Senhor, são recolhidos nas redes arremessadas à direita (Jo 21,11). É assim que, por vários outros agrupamentos numéricos, encontram-se escondidas nos Livros santos certas figuras que, devido à ignorância de muitos, ficam impenetráveis aos leitores. 

A ignorância de certas noções musicais é, em numerosas passagens das Escrituras, barreira e véu. De fato, estudando a diferença entre o saltério e a cítara, um autor explicou engenhosamente certos símbolos. E entre os doutos, não é disputa fora de propósito indagar se há alguma lei musical que obrigue o saltério constar de dez cordas, esse tão grande número de cordas! Ora, na ausência dessa lei, é preciso reconhecer nesse número dez significado mais misterioso, relacionado, seja com os dez preceitos que se referem ao Criador e à criatura, seja com as considerações que expusemos acima, sobre o número denário. Quanto ao número relatado pelo Evangelho que mede a duração do templo, isto é, o número quarenta e seis (Jo 2,20), há nele não sei que tonalidade musical. Aplicado, porém, em referência à formação do corpo do Senhor, a propósito do qual foi feita a menção ao templo reconstruído, esse número obrigou certos hereges a reconhecerem que o Filho de Deus revestiu não um corpo fictício, mas um corpo real e humano. Deparamos, assim, a música e os números colocados em lugar de honra em muitas passagens da santa Escritura.

(Excertos da obra 'A Doutrina Cristã', de Santo Agostinho)