sábado, 26 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (I): MORTIFICAÇÃO


Jesus está só e tomado por uma tristeza extremada
prostrado sobre a rocha dura, persevera em oração, 
esmagado pelo insuportável peso dos pecados dos homens.


Chora, sofre, geme, sua e verte gotas de sangue,
pelos teus pecados miseráveis,
pelos meus, pelos pecados de todos os homens.


Ó intimidade infinita de Deus com Deus,
ó oração bendita que crucificou todos os séculos
nos mistérios insondáveis do Calvário.


'Pai, que seja feita a vossa vontade...'


Quanta dor, quanto sofrimento, que angústia mortal!
Eis entreaberto o mistério do Calvário,
e desveladas as primeiras sombras da Paixão.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: CHAGA DE AMOR


A dor que padece e que consome a alma que é Vossa é um doce mistério. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que ela é obra Vossa...  No começo, era uma ferida tão pequena que somente a alma podia pressenti-la; depois, aos poucos, vai crescendo e envolvendo toda a alma até se transformar em uma chaga incurável que tudo sensibiliza e vivifica.  A dor que emana dessa chaga aberta, embora envolta em delícias, torna-se intolerável. A alma geme, protesta, esbraveja. Ela sabe muito bem que só existe um remédio para o seu mal: um amor maior capaz de libertá-la do seu corpo e que a faça morrer para, enfim, ser acolhida para sempre em Vossos braços. Ela quer ser tratada pelo único médico capaz de curá-la: Vós, ó meu Deus. Mas Vós não feristes essa alma amadíssima no mais íntimo senão para a possuir plenamente. Só Vós podeis alimentar nela a chama que foi acesa; alimentai-a então, pois ela já não pode mais viver sem a Vossa Presença.

Todas as almas, meu Deus, deveriam ser consumidas por essa dor misteriosa. Não sois Vós a Bondade perfeita e a Beleza infinita? O nosso coração, feito por Vós, não foi feito para Vós? Por que, então, existem tão poucas almas que Vos amam realmente?

Mas não há como nos volvermos contra Vós, ó meu Deus, mas contra nós mesmos. Porque Vós estais sempre à porta do nosso coração e clamas por ele de mil maneiras. Mas não ouvimos a Vossa voz, envolvido pelo barulho à nossa volta. E, se acaso a ouvimos, hesitamos em abrir o nosso coração e fazer Vossa por completo a nossa vontade. Na verdade, a nossa alma está doente e de um mal que a devora, que é o seu amor próprio, quando deveria estar consumida por uma dor que a faria viver em plenitude e para sempre: a dor do Vosso amor, ó meu Deus. Senhor, curai-nos dos males humanos! Fazei-nos enfermos das graças divinas e por elas morrer em Vosso amor! 

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

quinta-feira, 24 de março de 2022

SOBRE A DIGNIDADE SACERDOTAL


'Filha querida, ao manifestar-te a grande virtude daqueles pastores, quero colocar em evidência a dignidade dos meus ministros. Pelo pecado de Adão, as portas da eternidade fecharam-se, mas o meu Filho abriu-as com a chave do seu sangue. Ao sofrer a paixão e morte, ele destruiu vossa morte e vos lavou no sangue. Sim, foram seu sangue e sua morte que, em virtude da união da natureza divina com a humana, deram acesso ao céu. E a quem deixou Cristo tal chave? Ao apóstolo Pedro e aos seus sucessores, os que vieram e que virão depois dele até o dia do juízo final. Todos possuem a mesma autoridade de Pedro; nenhum pecado a diminui, do mesmo modo que não destrói a santidade do sangue de Cristo e dos Sacramentos. Já disse que o sol eucarístico não tem manchas e que o mal cometido por quem o administra ou recebe não apaga a sua luz. Não, o pecado não danifica os sacramentos da santa Igreja, não lhes diminui a força; prejudica a graça e aumenta a culpa somente em quem os ministra ou recebe indignamente.

Na terra, quem possui a chave do sangue é o Cristo-na-terra. Certa vez eu te manifestei essa verdade numa visão, para indicar o grande respeito que os leigos devem ter pelos ministros, bons ou maus que eles sejam, e quanto me desagrada que alguém os ofenda. Pus diante de ti a hierarquia da Igreja sob a figura de uma dispensa contendo o sangue de meu Filho. No sangue estava a virtude de todos os sacramentos e a vida dos fiéis. À porta daquela despensa, vias o Cristo-na-terra, encarregado de distribuir o sangue e fazer-se ajudar por outros no serviço de toda a santa Igreja. Quem ele escolhia e ungia, logo se tornava ministro. Dele procedia toda a ordem clerical; ele dava a cada um sua função no ministério do glorioso sangue. E como dispunha dos seus auxiliares, possuía a força de corrigi-los nos seus defeitos.

De fato, é assim que eu quero que aconteça. Pela dignidade e autoridade confiada aos meus ministros, retirei-os de qualquer sujeição aos poderes civis. A lei civil não tem poder legal para puni-los; somente o possui aquele que foi posto como senhor e ministro da lei divina.

Os ministros são ungidos meus. A respeito deles diz a Escritura: 'Não toqueis nos meus cristos' (Sl 105, 15). Quem os punir cairá na maior infelicidade. Se me perguntares por que a culpa dos perseguidores da Santa Igreja é a maior de todas e, ainda, por que não se deve ter menor respeito pelos meus ministros por causa de seus defeitos, respondo-te: porque, em virtude do sangue por eles ministrado, toda reverência feita a eles, na realidade não atinge a eles, mas a mim. Não fosse assim, poderíeis ter para com eles o mesmo comportamento de praxe para com os demais homens. 

Quem vos obriga a respeitá-los é o ministério do sangue. Quando desejais receber os sacramentos, procurais meus ministros; não por eles mesmos, mas pelo poder que lhes dei. Se recusais fazê-lo, em caso de possibilidade, estais em perigo de condenação. A reverência é dada a mim e ao meu Filho encarnado, que somos uma só coisa pela união da natureza divina com a humana. Mas também o desrespeito. Afirmo-te que devem ser respeitados pela autoridade que lhes dei, e por isso mesmo não podem ser ofendidos. Quem os ofende, a mim ofende. Disto a proibição: 'Não quero que mãos humanas toquem nos meus cristos'!

Nem poderá alguém escusar-se, dizendo: 'Eu não ofendo a santa Igreja, nem me revolto contra ela; apenas sou contra os defeitos dos maus pastores! Tal pessoa mente sobre a própria cabeça. O egoísmo a cegou e não vê. Aliás, vê; mas finge não enxergar, para abafar a voz da consciência. Ela compreende muito bem que está perseguindo o sangue do meu Filho e não os pastores. Nestas coisas, injúria ou ato de reverência dirigem-se a mim. Qualquer injúria: caçoadas, traições, afrontas. Já disse e repito: não quero que meus cristos sejam ofendidos. Somente eu devo puni-los, não outros. 

No entanto, homens ímpios continuam a revelar a irreverência que têm pelo sangue de Cristo, o pouco apreço que possuem pelo amado tesouro que deixei para a vida e santificação de suas almas. Não poderíeis ter recebido maior presente que o todo-Deus e todo-Homem como alimento. Cada vez que o conceito relativo aos meus ministros não coloca em mim sua principal justificativa, torna-se inconsistente e a pessoa neles vê somente muitos defeitos e pecados. De tais defeitos falarei em outro lugar. Mas quando o respeito se fundamenta em mim, jamais desaparece, mesmo diante de defeitos nos ministros; como disse, a grandeza da eucaristia não é diminuída por causa dos pecados. A veneração pelos sacerdotes não pode cessar; se tal coisa acontecer, sinto-me ofendido.

(Excertos da obra 'O Diálogo', de Santa Catarina de Sena)

quarta-feira, 23 de março de 2022

IMAGEM DA SEMANA

'Estreita é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram' (Mt 7,14)

terça-feira, 22 de março de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVIII)

Capítulo XXVIII

As Longas Penas de Expiação no Purgatório - Lord Stourton - Santa Lidwina e a Alma Tomada pelos Pecados da Luxúria

Dissemos que o valor total da dívida dos sofrimentos do Purgatório provém de todas as faltas não expiadas na terra, mas principalmente dos pecados mortais não remidos à sua culpa. Assim, aqueles homens que passam a vida inteira em estado habitual de pecado mortal e que atrasam a sua conversão até quase à morte, supondo que Deus lhes conceda essa graça excepcional, terão que sofrer os mais terríveis castigos. 

O exemplo de Lord Stourton dá-nos bons motivos para reflexão. Lord Stourton, um nobre inglês, era católico de coração mas, para manter a sua posição na corte, frequentava regularmente os ritos protestantes. Ele até acolheu um sacerdote católico em sua própria casa, ao preço dos maiores perigos, com o propósito de fazer uso do seu ministério para se reconciliar com Deus na hora de sua morte. Entretanto, ele sofreu um acidente repentino e, como muitas vezes acontece em tais casos, por um justo decreto de Deus, não teve tempo de realizar o seu desejo de conversão tardia. No entanto, a Divina Misericórdia, levando em consideração o que ele havia feito em favor da Igreja Católica tão perseguida na Inglaterra, concedeu-lhe a graça da contrição perfeita e, consequentemente, garantiu a sua salvação. Mas teve que pagar muito caro por sua negligência culposa. Anos se passaram. Sua viúva casou novamente e teve filhos. E é uma de suas filhas, Lady Arundel, que relata este fato como testemunha ocular:

'Um dia minha mãe pediu a F. Cornelius, um jesuíta de grande prestígio e que mais tarde morreu mártir (foi traído por um servo da família Arundel e executado em Dorchester em 1594), que rezasse uma missa em intenção da alma de Lord Stourton, seu primeiro marido. Ele assim o fez e, enquanto estava no altar, entre a Consagração e a Memento pelos mortos, parou por um longo tempo como se estivesse absorto em oração. Depois da missa, numa exortação que dirigiu aos presentes, contou-lhes uma visão que acabara de ter durante o Santo Sacrifício. Ele tinha visto uma imensa floresta que se estendia à sua frente, mas inteiramente em chamas, formando uma fornalha imensa. No meio dela, estava o nobre falecido, soltando gritos terríveis, lamentando a vida culpada que levara no mundo e na corte. Após ter feito uma confissão completa de suas faltas, o infeliz a terminou com estas palavras, que a Sagrada Escritura coloca na boca de Jó: 'Tem piedade de mim! Tenham piedade de mim, pelo menos vocês meus amigos, pois a mão do Senhor me tocou'. E então desapareceu. Enquanto relatava isso, F. Cornelius derramou muitas lágrimas, e todos nós, membros da família, ao número de vinte e quatro pessoas, choramos também. De repente, enquanto o padre ainda falava, percebemos na parede contra a qual o altar estava o que parecia ser o reflexo de brasas acesas'. Tal é o relato de Dorothy, Lady Arundel, como pode ser lido na 'História da Inglaterra', por Daniel.

Santa Lidwina também viu no Purgatório uma alma que sofreu longas penas por pecados mortais não suficientemente expiados na terra. O incidente é assim relatado na vida da santa. Um homem que, por muito tempo foi escravo do demônio da impureza, finalmente teve a felicidade de se converter. Confessou os seus pecados com grande contrição, mas, impedido pela morte, não teve tempo de expiar com justa penitência seus numerosos pecados. Lidwina, que o conhecia bem, rezou muito pela sua alma. Doze anos depois de sua morte ela ainda continuava a rezar na sua intenção, quando, em um de seus êxtases, foi levada ao Purgatório por seu anjo guardião e então ouviu uma voz triste saindo de um poço profundo. 'É a alma daquele homem' - disse o anjo - 'por quem você tem rezado com tanto fervor e constância'. 

Ela ficou surpresa ao encontrá-lo nas profundezas do Purgatório doze anos após a sua morte. O anjo, vendo-a tão afetada, perguntou se ela estava disposta a sofrer algo em favor de sua libertação. 'De todo o meu coração' - respondeu a donzela caridosa. A partir desse momento, passou a sofrer novas dores e tormentos assustadores, que pareciam superar a força da resistência humana. No entanto, ela os suportou com tanta coragem, sustentada por uma caridade mais forte que a morte, que agradou a Deus enviar-lhe finalmente alívio. Ela então respirou como quem tivesse sido trazida novamente à vida e, ao mesmo tempo, viu aquela alma, pela qual tanto sofrera, sair do abismo, branca como a neve, e voar para o Céu. 

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

segunda-feira, 21 de março de 2022

SOBRE O CONHECIMENTO DE DEUS

A visão imediata de Deus ultrapassa as forças naturais de toda e qualquer inteligência criada, angélica ou humana. Uma inteligência criada pode, em sua atividade natural, conhecer a Deus pelo reflexo de suas perfeições na ordem criada, mas não pode vê-lo diretamente em si mesmo como Ele se vê.

O anjo e a alma humana só se tornam capazes de um conhecimento sobrenatural de Deus e de um amor sobrenatural por Ele se tiverem recebido este enxerto divino que é a graça habitual ou santificante, participação da natureza divina ou da vida íntima de Deus. Só essa graça, recebida na essência de nossa alma como um dom gratuito, pode torná-la radicalmente capaz de operações propriamente divinas, isto é, de ver a Deus diretamente como Ele se vê e de o amar como Ele se ama.

Em outros termos, a deificação da inteligência, e a da vontade, supõe uma deificação da própria alma (em sua essência), donde derivam essas faculdades. Essa graça, quando está consumada e inamissível, se chama a glória, e dela procedem, na inteligência dos bem-aventurados do céu, a luz sobrenatural que lhes dá a força de ver a Deus, e, na vontade, a caridade infusa que lhes fez amá-lo, sem que possam daí em diante desviar-se dEle.

Em muitas ocasiões, já o notamos, Jesus repete: 'Aquele que crê em mim tem a vida eterna'. Não somente ele vai tê-la mais tarde mas, num certo sentido, já a tem, porque a vida da graça é a vida eterna começada. É, com efeito, a mesma vida em seu fundo, como o germe que está num fruto de carvalho tem a mesma vida que o carvalho desenvolvido; como a alma espiritual da criança pequena é a mesma que, um dia, desabrochará no homem feito.

No fundo, é a mesma vida divina, que está em germe no cristão aqui em baixo, e que está plenamente desabrochada nos santos do céu, que são verdadeiros viventes da vida da eternidade. É a mesma vida sobrenatural, a mesma graça santificante, que está no justo aqui em baixo e nos santos do céu; é também a mesma caridade infusa, com duas diferenças: aqui em baixo nós conhecemos a Deus não na claridade da visão, mas na obscuridade da fé infusa e, além disso, ainda que esperemos possuí-lo de modo inamissível, aqui embaixo podemos perdê-lo por nossa própria culpa. Mas, apesar dessas duas diferenças, relativas à fé e à esperança, é a mesma vida, porque é a mesma graça santificante e a mesma caridade; as quais devem durar eternamente.

(Excertos da obra 'As Três Idades da Vida Interior', de R. Garrigou-Lagrange)

domingo, 20 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

 20/03/2022 - Terceiro Domingo da Quaresma 

17. A FIGUEIRA ESTÉRIL 


Neste Terceiro Domingo da Quaresma, o Evangelho nos exorta a viver contínua e decididamente o caminho da plena conversão. E a busca da conversão exige de nós o afastamento incondicional do pecado e a via da santificação plena, como receptáculos abertos a toda a graça de Deus. Entre a retidão de nossos propósitos e a misericórdia do Pai, encontra-se o nosso lugar no portal da eternidade.

E Jesus nos fala primeiro que a grande tragédia humana é o pecado: 'Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?' (Lc 13,2). Jesus falava dos galileus que tinham sido assassinados no templo por ocasião da Páscoa, a mando de Pilatos. Ele mesmo responderia que não, da mesma forma que não eram mais pecadores as 18 pobres vítimas da queda da torre de Siloé. A justiça divina não é amalgamada pelo castigo em si, mas pela resistência persistente e obstinada aos tesouros da graça. Não são desgraçados os que morrem em tragédias humanas, são miseráveis os que perdem a alma e a vida eterna consumidos na tragédia pessoal de apenas querer ganhar o mundo. 'Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo' (Lc 13, 5).

Jesus ratifica estes ensinamentos com a parábola da figueira estéril, que não produz bons frutos, ano após ano, símbolo da alma fechada a todas as graças recebidas. Mas o Senhor busca incessantemente a volta da ovelha desgarrada e a espera e a consome de favores e bênçãos, porque o 'Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo' (Sl 102). É como o vinhateiro que nunca descuida da planta bruta, cultiva o solo, dispõe o adubo, rega a terra, acompanha ciosa e pacientemente os seus primeiros frutos. No nosso caminho de vida espiritual, o vinhateiro é o próprio Cristo, é Nossa Senhora, é a Santa Igreja, são os santos intercessores, é o nosso próprio Anjo da Guarda. Um derramamento abundante de graças à espera de nosso arrependimento sincero, de nossa dor ao pecado, de nossa conversão definitiva.

Mas o Evangelho termina também com uma determinação explícita: 'Se (a figueira) não der (fruto), então tu a cortarás’ (Lc 13,9). Assim, uma vez desprezados todos os limites da graça e tornados vãos todos os esforços do vinhateiro, a figueira torna-se inútil e a tragédia humana se consome na perda eterna das almas criadas para a glória de Deus.