terça-feira, 15 de março de 2022

A FÉ EXPLICADA: PODEMOS FICAR ENTEDIADOS NA ETERNIDADE DO CÉU?


Não, uma alma eleita não pode, nem na mais remota circunstância, ficar 'entediada' das glórias celestes ou da Visão Beatífica. Isso é algo tão absurdo, mais absurdo do que pretender colocar as águas de todos os oceanos da terra em um único e simples copo. Porque Deus de Deus, Luz da Luz - a onipotência divina - não é passível de mensuração pelo tempo, pela percepção de sentidos exteriores, pela miserabilidade da natureza humana.

Deus não pode entediar as almas dos eleitos - porque é Deus. E, em Deus, não existe amplitude, existe plenitude. E, à falta dessa percepção e esmagados pelo furor da deusa razão, os homens mensuram Deus e as coisas de Deus, incluindo o conhecimento, o amor ou a onipotência, sob a ótica humana de um deus de finitude provável. Sob a tutela desse diapasão, constroem então uma ideia falsificada e infantil da eternidade como sendo um tempo sem fim. Eternidade não é um tempo sem fim.

A eternidade não é uma medida de tempo que passa. Se fosse isso, não seria eternidade e Deus não seria Deus. Eternidade é um atributo de Deus e, tal como Deus, não teve início e nunca terá fim. Este conceito, aplicado aos homens, assume um atributo humano adicional - de circunstância. A minha eternidade - ou a eternidade de qualquer homem - teve um início definido (o momento da incorporação de uma alma ao meu corpo nascituro) e jamais terá fim. 

Quando, pois, nos tornamos inseridos na eternidade de Deus, somos eternos de um Deus eterno, infinitamente imutável. Não há um tempo que passa, mas um atributo que não passa. A eternidade com Deus é o momento sublimado da graça - 'coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam' (I Cor 2,9) e infinitamente imutável - o perpétuo momento.

Não há no Céu 'momentos'; não há no Céu dias e noites, manhãs de inverno ou noites de verão. Não há nas moradas eternas um dia que a alma possa estar 'assim' e um outro dia em que ela possa estar 'não bem assim'. A plenitude divina não pressupõe 'mais' ou 'menos', nem 'pouco' ou muito': é tudo, sempre, sempre, sempre. A santidade plena aniquila por completo a necessidade ou a possibilidade de quaisquer estímulos exteriores ou de quaisquer manifestações do que seriam 'vontade' ou 'pensamento'. 

No perpétuo momento, a alma está saciada infinitamente de Deus e em Deus, em todas as suas aspirações, em todas as suas vontades, em todos os seus pensamentos, em todos os seus atributos, em todas as suas necessidades. No momento perpétuo, Deus está presente em plenitude na alma, preenchendo todas as suas dimensões, espaços, tempos e aspirações, em Verdade, Conhecimento, Justiça e Caridade. E também e principalmente em Amor, Amor de eternidade.

segunda-feira, 14 de março de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: PUREZA, FORÇA E RIQUEZA DESTE AMOR


Como é puro o vosso amor, ó meu Deus! É o amor de um espírito por outro espírito, que ignora o que São Paulo chamou de carne, e que esta também ignora. Pois este amor não pertence ao mundo dela; está infinitamente acima dela. Mais do que isso, este amor declara guerra à carne, e uma guerra implacável. Para viver, para que possa desenvolver livremente em nós, requer que a carne desfaleça, resseque e morra. Nessa batalha misteriosa, nossa alma é, ao mesmo tempo, palco de teatro e de recompensas. Mil vezes feliz a alma que, para se unir a Vós, não teve que sofrer aquelas excruciantes, mas tão necessárias purificações de amor!

Como é poderoso o vosso amor, ó meu Deus! Podemos confiar nele com certeza absoluta, porque ele nunca nos falta. A alma que se une ao vosso amor torna-se tão firme e imutável como ele e, assim, até pode sentir em suas faculdades sensíveis o inevitável fluxo e refluxo das emoções, mas não tem o íntimo perturbado por elas. Descansa no terreno firme deste amor. Se a tentação ousar perturbar a sua paz, a alma interior só precisa se refugiar mais firmemente a este amor divino, reduzindo a sua ameaça à impotência, até que desapareça por completo. O vosso amor é refúgio e fortaleza; nele a alma está segura e nada poderá perturbá-la. Está protegida por todos os lados; está resguardada em todos os lugares. É como uma nuvem, brilhante e sombria ao mesmo tempo, que a guia e a mantém protegida. A alma sente-se verdadeiramente envolvida por uma presença misteriosa que a fortalece, que lhe dá conforto e segurança, que a vivifica plenamente.

Como é abundante o vosso amor, ó meu Deus! É um tesouro que contém todos os bens e que é inesgotável. Tudo dele procede; é o primeiro dom totalmente gratuito e eivado das graças de Deus. Por que Vós me amais tanto, ó meu Deus? Só porque o quereis e porque sois bom. Ao me dar o vosso Coração, destes tudo a mim: não sois vós o poder infinito? E esse poder infinito não está a serviço do vosso Amor?

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

domingo, 13 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor é minha luz e salvação' (Sl 26)

 13/03/2022 - Segundo Domingo da Quaresma 

16. A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR 


Jesus acabara de fazer o anúncio de sua Paixão aos discípulos e eles experimentavam, naquele momento, o peso das tribulações e das adversidades futuras que certamente teriam de enfrentar. O Filho do Homem se revelara vítima pascal e não senhor de um exército dominador: o Reino de Deus não é deste mundo e a redenção teria que perpassar necessariamente pela subida do Calvário. Aqueles homens precisavam, mais do que nunca, da fortaleza da graça sobrenatural. E, três deles, Pedro, Tiago e João, a receberiam com abundância extrema.

Neste Segundo Domingo da Quaresma, meditamos esta extraordinária experiência sobrenatural vivida pelos três apóstolos no alto do Monte Tabor. Jesus os levou consigo para subir a montanha 'para rezar' (Lc 9,28), pois é a oração que nos coloca plenamente sob o repositório das graças divinas. A fragilidade humana tomou frente a princípio pelo sono de todos e pelas palavras desarticuladas de Pedro: 'vamos fazer três tendas' (Lc 9,33). Mas esvaiu-se de vez quando os três apóstolos foram inundados pela claridade luminosa emanada dos corpos gloriosos de Jesus, Moisés e Elias.

Naquele lugar, e ainda que por um breve tempo, os três apóstolos puderam contemplar na terra a glória de Deus. E testemunhar que a história humana evolui pelos tempos confirmada pela Lei (presença de Moisés) e pelos Profetas (presença de Elias). A transfiguração do Senhor é um evento extraordinário da manifestação divina de Jesus aos homens, um olhar da história humana no espelho da eternidade.

'Este é o meu Filho, o escolhido. Escutai o que Ele diz' (Lc 9, 35). Solícitos na oração, firmes na fé, tornamo-nos oratórios dignos das abundantes graças de Deus. Somos movidos, pela coragem, a superar as adversidades, as tentações, as dores humanas; pela fortaleza, impõe-se seguir em frente, avançar para águas mais profundas, subir a montanha das graças e da transfiguração de nossa imensa fragilidade humana. E também, descer outra vez a montanha, voltar ao caminho de Jerusalém e do Gólgota, repetir quantas vezes, e por quanto tempo for, o itinerário contínuo de enfrentar e vencer o mundo, oportuna ou inoportunamente, até o Tabor definitivo de nosso encontro com Deus na eternidade.

sábado, 12 de março de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVII)

Capítulo XXVII

As Causas dos Sofrimentos - Razão das Expiações do Purgatório - Ensinamentos de Suarez e de Santa Catarina de Gênova

Por que as almas devem sofrer antes de serem admitidas para ver Deus face a face? Qual é a razão, ou qual é a justificativa dessas expiações? O que tem o fogo do Purgatório para purificar, o que precisa ser consumido nele? São, dizem os Padres  da Igreja, as impurezas ou máculas devidas aos nossos pecados.

Mas o que se entende aqui por impurezas? De acordo com a maioria dos teólogos, não é a culpa do pecado, mas a dor ou a dívida da dor procedente do pecado. Para entender bem isso, devemos lembrar que o pecado produz um duplo efeito na alma, que chamamos de dívida (reatus) de culpa e dívida de dor; que torna a alma não apenas culpada, mas merecedora de dor ou castigo. Ainda que a culpa seja perdoada, acontece geralmente que a dor perdura, total ou parcialmente, e, portanto, deve ser suportada ou expiada nesta vida ou na vida futura.

As almas do Purgatório não detêm nenhuma dívida de culpa; a culpa venial que tinham no momento de sua morte desaparece na ordem da pura caridade com a qual estão plenamente infundidos na outra vida; o que ainda carregam consigo é a dívida dos sofrimentos que não foram expiados antes da morte. Esta dívida procede de todas as faltas cometidas durante a vida, especialmente aquelas devidas aos pecados mortais, remidos quanto à culpa por confissões sinceras, mas que deixaram de ser expiadas devidamente com frutos dignos de penitência exterior.

Tal é o ensinamento comum dos teólogos, que Suarez resume em seu Tratado sobre o Sacramento da Penitência: 'Concluímos então que todos os pecados veniais com que morre um justo são remidos da culpa, no momento em que a alma é separada do corpo, em virtude de um ato de amor a Deus, e a contrição perfeita que então excita por todas as suas faltas passadas. De fato, a alma neste momento conhece perfeitamente a sua condição e os pecados dos quais foi culpada diante de Deus; ao mesmo tempo, é dona de suas faculdades, para poder agir. Por outro lado, da parte de Deus, são dadas a ela as ajudas mais eficazes, para que aja segundo a medida da graça santificante que possui. Segue-se, então, que, nesta disposição perfeita, a alma age sem a menor hesitação. Volta-se diretamente para o seu Deus e encontra-se livre de todos os seus pecados veniais por um ato de soberana aversão ao pecado. Este ato universal e eficaz basta para a remissão de sua culpa. Toda mácula de culpa então desaparece; mas a dor continua a ser imposta e deve ser expiada, com todo o rigor e longa duração, pelo menos para aquelas almas que não são assistidas pelas intenções dos vivos. Eles não podem obter o menor alívio para si mesmas, porque o tempo do mérito já passou; elas não podem mais merecer, podem apenas sofrer e, assim, pagar à temível justiça de Deus tudo o que devem, até o último centavo - usque ad novissimum quadrantem (Mt 5, 26).

Essas dívidas de dor são restos de pecados e uma espécie de obstáculo, que lhes intercepta a visão de Deus e que impõe um freio à união da alma com o seu fim último. Uma vez que as almas do Purgatório estão livres da culpa do pecado - escreve Santa Catarina de Gênova -  não há outra barreira entre elas e sua união com Deus, a não ser os restos do pecado, os quais devem ser expiados. Estes obstáculos que sentem dentro de si fazem com que padeçam os tormentos dos condenados, dos quais falamos previamente, e retardam o momento no qual o instinto pelo qual são atraídas para Deus, quanto à sua soberana bem aventurança, atingirá a sua plena manifestação. 

As almas têm a plena percepção de quão graves são, diante de Deus, os menores resquícios dos pecados cometidos e que é, por necessidade de justiça, que estes devem ser pagos até a plena saciedade do seu instinto beatífico. Esta percepção faz incendiar dentro delas um fogo ardente e semelhante ao do inferno, com exceção da culpa do pecado.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 11 de março de 2022

COMO O BOM LADRÃO DO PARAÍSO


Quanto pior um homem se vai tornando, menos irá compreendendo a sua maldade, exatamente como sucede a um doente, cuja febre vai subindo até o fazer delirar, e que menos e menos compreende que está doente, quanto mais febre tem e mais delira, a ponto de poder julgar-se tão perfeitamente são, que quer erguer-se do leito para ir trabalhar. Todas as pessoas banalmente más se julgam boas. Só quando acordamos é que sabemos que estivemos a dormir, tal qual só reconhecemos que éramos pecadores, quando libertos do pecado e restituídos à graça de Deus.

Só quando estamos doentes é que pedimos um médico, e só quando nos confessamos pecadores é que imploramos o perdão do Redentor. Assim o disse Nosso Senhor: 'Os que têm saúde não precisam de médico, mas sim os que estão doentes' (Mt 9, 12). Quando, pois, chegarmos ao ponto de começarmos a sentir-nos e a dizer-nos maus, então e só então, estaremos no caminho que levou para o Paraíso o bom ladrão. O reconhecimento da culpa é a condição da conversão, assim como o reconhecimento da doença é a condição do seu tratamento. Enquanto nos julgarmos bons, nunca encontraremos Deus. Se na nossa petulante vaidade julgamos que sabemos tudo, como poderemos admitir, ou conceber sequer, que Deus nos pode ensinar seja o que for que não saibamos já?

Condescendemos às vezes em reconhecer que temos mau gênio ou que somos um tanto imoderados nos prazeres, sejam da mesa, sejam outros, mas haverá alguém que leve a condescendência até ao ponto de reconhecer que é vaidoso ou sequer apenas pretensioso? Se não há ninguém que não censure os outros por serem vaidosos, como haverá quem reconheça em si próprio esse pecado? Quanto mais pretensioso cada um for, mais abominará a pretensão dos outros. Quanto mais cada um disser: 'Vaidoso é que eu não sou!', mais demonstrará que o é, como aquele seminarista ingenuamente vaidoso, que depois de ouvir na aula de moral uma lição sobre os males da vaidade e as virtudes da humildade, exclamou entusiasmado para o padre professor: 'Eu, senhor padre, a respeito de humildade cristã, estou primeiro que ninguém!'

A vaidade e o orgulho faz com que vejamos toda a restante humanidade lá muito em baixo, de maneira que nunca poderemos erguer os olhos para ver Deus lá muito em cima. E realmente, se o nosso orgulho não nos deixa reconhecer e admitir outra lei e outra autoridade que não sejam a nossa própria, está claro que é um orgulho essencialmente contrário à lei e à autoridade de Deus. 

Todos os mais pecados que possamos cometer, tais como avareza, luxúria, cólera, gula, todos podem provir de nós apenas, mas o pecado do orgulho, esse provém diretamente de Satanás. Foi esse o pecado que o precipitou, e aos anjos seus sequazes, do alto dos Céus no abismo do Inferno, e é um pecado que elimina até mesmo a possibilidade da conversão.

Se, portanto, formos capazes de nos humilharmos, como se humilhou o ladrão crucificado à direita de Nosso Senhor; se chegarmos como ele a confessar que pecamos, então o nosso brado de arrependimento erguer-se-á até Deus, a implorar-lhe que se lembre de nós na desventura em que caímos! No mesmo instante em que deixarmos de nos envaidecer e em que começarmos a ver-nos como realmente somos, então na nossa humildade e penitência seremos erguidos pela graça de Deus até ao seu perdão.

Façamos, portanto, o nosso exame de consciência: perguntemos a nós próprios, com total e inteira franqueza, não se sabemos muitas coisas, mas sim quais as muitíssimas coisas que não sabemos; não se somos muito bons e virtuosos, mas se somos muito maus e muito pecadores. Julguemo-nos a nós mesmos, não à luz do nosso amor-próprio, mas à luz da nossa reta consciência; não à vista da nossa cultura, mas à vista dos nossos atos; não perante a nossa educação, mas perante o nosso coração. 

Não tardaremos, se bem verdadeira, leal e profundamente nos examinarmos, em sentir nas nossas almas um grande vácuo, em reconhecer que só estavam cheias da negação que se chama pecado, em experimentar a sede da água límpida da Divina Graça, em bradar como o bom ladrão e como depois dele, todos os tementes a Deus, quando se vão ajoelhar no Tribunal da Penitência: 'Padre, absolva-me, porque pequei e sou agora um pecador arrependido!'. É assim que principia para cada um de nós a salvação.

O bom ladrão foi ladrão até na morte porque conseguiu com ela ser ladrão do Paraíso, que em vida não merecera e só à hora da morte conquistou. Pois também cada um de nós, se conquistar o Paraíso, será ladrão como ele foi, porque teremos conquistado o que também em vida não merecemos: o eterno descanso na perpétua luz e na suprema paz do Reino de Deus!

('As Sete Palavras da Cruz', do Mons. Fulton Sheen, 1953)

quinta-feira, 10 de março de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (VI)

Bula Pontifícia BULA UNAM SANCTAM [18 de novembro de 1302]

Papa Bonifácio VIII (1295 - 1303)

sobre o primado papal


Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: 'Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou' (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe 'um só Senhor, uma só fé e um só batismo' (Ef 4,5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com 'um côvado' (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: 'Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão' (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: 'Apascenta as minhas ovelhas' (Jo 21,17). Disse 'minhas' em geral e não 'esta' ou 'aquela' em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: 'Há um só rebanho e um só Pastor' (Jo 10,16).

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual.

O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: 'O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado' (1Cor 2,15).

Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores naquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: 'Tudo o que ligares...' (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder determinado por Deus, 'resiste à ordem de Deus' (Rm 13,2), a menos que não esteja imaginando dois princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme Moisés, não é 'nos princípios', mas 'no princípio Deus criou o céu e a terra' (Gn 1,1).

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.