quinta-feira, 16 de novembro de 2017

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (I)

PRIMEIRA PARTE

DEUS

Criador e Soberano Senhor de todas as coisas

I

DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Há Deus?
Sim, Senhor (II*).

Por que o dizeis?
Porque, se não o houvesse, não poderia existir coisa alguma (II, 3).

Como o demonstrais?
Mediante o seguinte raciocínio: O que necessariamente há de receber de Deus o ser não existiria, se Deus não existisse. Assim é que coisa alguma pode existir, exceto o mesmo Deus, se não recebe Dele a existência. Logo, se não houvesse Deus, não poderia existir coisa alguma.

E como demonstrais que nenhuma coisa pode existir, exceto o mesmo Deus, se não recebe Dele a existência?
Desenvolvendo o mesmo raciocínio: O que existe e pode não existir, depende, em última análise, de alguma coisa que existe necessariamente, e a esta alguma coisa chamamos Deus. Assim é que nada do que existe, exceto Deus, existe por si mesmo, isto é, em virtude de forçosa exigência de sua natureza. Logo, há de, necessariamente, receber de Deus a existência.

Por que dizeis que nada do que existe, exceto Deus, existe por si mesmo ?
Porque nenhum ser que necessita de alguma coisa, existe em virtude de exigências de sua natureza. Assim é que todos os seres, exceto Deus, necessitam de alguma coisa. Logo nenhum pode existir por si mesmo.

Por que os seres que necessitam de alguma coisa não podem existir por si mesmos?
Porque, o que existe por si mesmo, não depende, nem pode depender de coisa alguma, nem de pessoa alguma; e o que forçosamente necessita de alguma coisa ou pessoa, dessa coisa ou pessoa depende.

E por que o ser que existe por si mesmo não depende, nem pode depender de qualquer pessoa ou coisa?
Porque no fato de existir per se já vai incluída a posse atual de todas as perfeições, por virtude de sua natureza e com absoluta independência: Não pode, portanto, receber coisa alguma de fora.

Portanto, a existência dos seres contingentes é prova evidente da existência de Deus?
Assim é.

Que fazem, por consequência, os que o negam?
Sustentam a verdade da seguinte proposição: O ser que tudo necessita, de nada tem necessidade.

Isto, porém, não é contraditório?
Evidentemente: Como é possível negar a existência de Deus sem se contradizer?

É, portanto, uma loucura negar a existência de Deus?
De verdadeira loucura se pode qualificar.

II

NATUREZA E ATRIBUTOS DE DEUS

Quem é Deus?
Um Espírito em três Pessoas; Criador e Soberano Senhor de todas as coisas.

Que quereis dizer quando dizeis que Deus é espírito?
Quero dizer que não tem corpo como nós, que está, absolutamente, isento de matéria e de qualquer elemento estranho ao seu ser (III, 14).

Que consequências se derivam destes princípios?
Resulta que Deus é, no sentido mais absoluto e transcendental, o Ser por essência e as restantes coisas são seres particulares, são tais seres e não o Ser. (III, 4).

Deus é perfeito?
Sim, Senhor; porque nada lhe falta (VII, 1).

É bom?
É a própria bondade, como princípio e fim de todos os amores (VI).

É infinito?
Sim, Senhor; porque coisa alguma pode limitá-lo.

Está em toda a parte?
Sim, porque tudo quanto existe, Nele e por Ele existe (VII).

É imutável?
Sim, porque nada pode adquirir (IX).

É eterno?
Sim, porque Nele não há sucessão (X).

Quantos deuses há?
Um só (XI).

Existem em Deus os referidos atributos?
Sim, Senhor, e se não os possuísse não seria o Ser por essência.

Podeis demonstrá-lo?
Sim, Senhor; Deus não seria o ser por essência, se não fosse o que existe per se, ou como dissemos, por necessidade de sua natureza. O que existe per se concentra em si mesmo todos os modos do ser; é, portanto perfeito e, sendo perfeito, necessariamente há de ser bom. É, além disso, infinito, condição indispensável para que nenhum ser tenha ação sobre Ele e o limite, e se é infinito possui o dom da ubiquidade. É imutável, porque, se mudasse, havia de ser em busca de uma perfeição que lhe faltasse. Sendo imutável, é eterno, porque o tempo é sucessão e toda sucessão revela mudança. Sendo perfeito em grau infinito, não pode haver mais do que um; se houvesse dois seres infinitamente perfeitos, nada teria um que o outro não possuísse, não haveria meios de distingui-los e seriam, portanto um (III-XI).

Podemos ver a Deus enquanto vivemos neste mundo?
Não, Senhor; não o consente o nosso corpo mortal (XI, 11).

Poderemos vê-lo no céu?
Sim, Senhor; com os olhos da alma glorificada (XII, 1-10).

De quantos modos podemos conhecer a Deus neste mundo?
De dois: por meio da fé e da razão (XII-12-13).

Que coisa é conhecer a Deus por meio da razão?
É conhecê-Lo, mediante as criaturas, obras de suas mãos (XII, 12).

E conhecê-Lo pela Fé?
É conhecê-Lo, sabendo o que Ele é, pelo que nos revelou de Si mesmo (XII, 13).

Qual destes dois modos de conhecimento é mais perfeito?
Indubitavelmente, o da fé, dom sobrenatural que nos mostra Deus com uma claridade como jamais o pode conjeturar a razão humana; e ainda que, devido à imperfeição de nosso entendimento percebemos esta claridade, manchada de sombras e obscuridades impenetráveis, é todavia dela, como aurora do dia feliz da visão perfeita, que se constituirá a nossa Bem-aventurança no céu (XII, 15).

As palavras e proposições que usamos para falar de Deus expressam alguma coisa de positivo, determinado e real?
Sim, Senhor; porque, se bem que tenham sido inventadas para designar as perfeições das criaturas, podem empregar-se para manifestar o que em Deus corresponde a essas perfeições (XIII, 1-4).

Têm o mesmo sentido aplicadas a Deus e às criaturas?
Sim, Senhor; porém, com alcance diverso: quer dizer que, aplicadas às criaturas, manifestam plenamente a natureza e as perfeições que expressam; porém, usadas para designar perfeições divinas, se bem que em Deus existe realmente quanto de positivo encerra o seu significado, não alcançam expressá-lo de modo supereminente como está em Deus (XIII, 1-4).

Por conseguinte, Deus é inefável, qualquer que seja a nossa linguagem e a sublimidade das expressões que usemos para falar Dele?
É inefável: apesar disso, não pode ter o homem ocupação mais digna e proveitosa do que a de falar de Deus e dos seus atributos, apesar do confuso e impreciso de nossa linguagem, durante esta vida mortal (XIII, 6, 12).

III

OPERAÇÕES DIVINAS

Qual é a vida íntima de Deus?
A sua vida consiste em conhecer-se e amar-se (XIV - XXVI).

Deus sabe todas as coisas?
Sim, Senhor (XIV, 5).

Sabe tudo o que se passa no mundo?
Sim, Senhor (XIV, 11).

Conhece todos os segredos dos corações?
Sim, Senhor (XIV, 10).

Conhece o futuro?
Sim, Senhor (XIV, 13).

Em que vos fundais para atribuir a Deus tão profunda ciência?
Em que ocupando Deus o grau supremo do imaterial, possui inteligência infinita; é impossível, portanto, que ignore coisa alguma, presente, passada, futura e possível, visto que não há ser que pertença, quer à ordem entitativa quer à operativa, que não dependa da sua ciência, como o efeito da sua causa (XIV, 1-5).

Logo em Deus há também vontade?
Sim, porque a vontade é inseparável do entendimento (XIX, 1).

Logo, todos os seres dependem da vontade divina?
Sim, Senhor; visto que a vontade de Deus é causa primeira e suprema de todas as coisas (XIX, 4-6).

Ama Deus a todas as criaturas?
Sim porque as criaturas são obra do seu amor (XX, 2).

Produz o amor de Deus algum efeito nas criaturas?
Sim, Senhor.

Que efeito produz?
O de dar-lhes todo o bem que possuem (XX, 3, 4).

Deus é justo?
É a mesma justiça (XXI, 1).

Por que dizeis que Deus é a mesma Justiça?
Porque dá a todos o que exige a natureza de cada um (XXI, 1-2).

A Justiça divina reveste alguma modalidade especial a respeito dos homens?
Sim, Senhor.

Em que consiste?
Em que Deus premia os bons e castiga os culpados (XXI, 1 ad 3).

Recebem os homens neste mundo o merecido prêmio ou castigo?
Em parte, sim, mas nunca por inteiro.

Onde recompensa Deus por inteiro os justos e castiga os pecadores?
No céu os primeiros e os segundos no inferno.

Há em Deus misericórdia?
Sim, Senhor (XXI, 3).

Em que consiste a misericórdia divina?
Consiste em que Deus dá a cada coisa mais do que exige a sua natureza e também em que dá aos justos mais do que lhes é devido, e castiga os pecadores com pena inferior à que merecem as suas culpas (XXI, 4).

Governa Deus este mundo?
Sim, Senhor.

Como se chama o governo de Deus no mundo?
Chama-se Providência (XXI, 1).

A Providência Divina estende-se a todas as coisas?
Sim, porque não há nada no mundo que Deus não tenha previsto e predeterminado desde toda a Eternidade (XXII, 2).

Estende-se aos seres inanimados?
Sim, porque fazem parte da obra de Deus (XXII, 2 ad 4).

Atinge também os atos livres do homem?
Sim, Senhor (XXII, 2, ad 4).

Explicai como.
Os atos livres, de tal maneira estão sujeitos às disposições da Providência Divina, que coisa nenhuma pode o homem fazer, se Deus a não ordena ou a permite, pois a liberdade não lhe confere independência a respeito de Deus (Ibid.).

Tem nome especial a Providência Divina em relação aos justos?
Chama-se Predestinação.

Que quer dizer predestinado?
O homem que há de gozar no Céu a bem-aventurança da glória (XXIII, 2).

Que nome recebem os que não hão de gozar da bem-aventurança?
O de réprobos ou não eleitos (XXIII, 3).

Por que uns hão de ser felizes e os outros não?
Porque os predestinados foram eleitos do Senhor, ou amados com amor de preferência, em virtude do qual governa Deus o curso da sua vida de tal modo que chegarão a conseguir a felicidade eterna (XXIII, 3).

E por que não alcançarão os réprobos a mesma felicidade?
Porque não foram amados com o amor dos predestinados (XX, 3).

Não haverá nisso injustiça por parte de Deus?
Não, Senhor; porque Deus a ninguém deve por justiça a bem-aventurança eterna, e os que a conseguem só a alcançarão a título de graça (XXIII, 3 ad 2).

E os que não hão de alcançá-la, serão castigados pelo fato de não a possuir?
Serão castigados por não a possuir, porém, só em razão das culpas em virtude das quais se tornaram indignos de recebê-la (XXIII, 3).

Como podem ser culpados de não a haver recebido?
Podem sê-lo, e, com efeito, o são, porquanto Deus a oferece a todos: porém, os homens que, debaixo do império dos decretos divinos, conservam a liberdade, podem aceitar o oferecimento ou recusá-lo, pondo em seu lugar outro fim (Ibid.).

Ofendem com isso a Deus?
Tão gravemente, que merecem duro castigo, visto que, ao fazê-lo, caem voluntariamente em grave pecado pessoal (Ibid.).

Os que aceitam o oferecimento e conseguem a glória, a quem devem o ter correspondido ao chamamento de Deus?
À virtude causal do decreto predestinante (XXIII, 3 ad 2).

É eterna a predestinação por parte de Deus?
Sim, Senhor, (XXIII, 4).

Que significa a predestinação a respeito dos eleitos?
Significa que Deus assinalou a cada um o seu lugar na glória, e, mediante a graça, o porá em condições de possuí-la (XXIII, 5-7).

Que devem fazer os homens ante o pavoroso mistério da predestinação absoluta por parte de Deus?
Abandonar-se inteiramente à ação da graça e convencer-se, na medida do possível, que os seus nomes estão escritos no livro dos predestinados (XXIII, 8).

Deus é Todo-Poderoso?
Sim, Senhor (XXV, 1-6).

Por que?
Porque, sendo o ser por essência, a Ele há de estar submetido tudo quanto existe ou possa existir (XXV, 3).

Deus é feliz?
É a mesma felicidade porque goza infinitamente do Bem infinito, que é Ele mesmo (XXVI, 1-4).

IV

DAS PESSOAS DIVINAS

Que quereis dizer quando afirmais que Deus é um espírito em três Pessoas?
Que há Nele três Pessoas, cada uma das quais se identifica com Deus, e possui os atributos da divindade (XXX, 2).

Quais são os nomes das três Pessoas divinas?
Pai, Filho e Espírito Santo.

Quem é o Pai?
O que, sem ter tido princípio, gera o Filho e dá origem ao Espírito Santo.

Quem é o Filho?
O gerado pelo Pai, e do qual, conjuntamente com o Pai, procede o Espírito Santo.

Quem é o Espírito Santo?
O que procede do Pai e do Filho.

As Pessoas divinas são distintas de Deus, em si mesmo?
Não Senhor.

São distintas entre si?
Sim, Senhor.

Que quereis dizer, quando afirmais que as Pessoas divinas são distintas entre si?
Que o Pai não é o Filho, nem o Espírito Santo; que o Filho não é o Pai, nem o Espírito Santo e que o Espírito Santo não é o Pai, nem o Filho.

Podem separar-se as Pessoas divinas?
Não, Senhor.

Estão unidas desde a eternidade?
Sim, Senhor.

Possui o Pai, com relação ao Filho, tudo o que temos visto que há em Deus?
Sim, Senhor.

E o Filho com relação ao Pai?
Também.

E o Pai e o Filho com relação ao Espírito Santo?
Também.

E o Espírito Santo com relação ao Pai e ao Filho?
Sim, Senhor.

Logo, são três Deuses com conexões eternas?
Não, Senhor; são três Pessoas que se identificam com Deus, apesar do que, permanecem realmente distintas.

As Pessoas divinas formam sociedade?
Sim, e a mais perfeita de quantas existem (XXXI, 3 ad 1).

Por que?
Porque, sendo três, cada uma delas possui de modo infinito a perfeição, a duração, a ciência, o amor, o poder, a felicidade, e todas e cada uma, constituem a sua própria Bem-aventurança no seio da divindade.

Como sabemos que há três Pessoas em Deus?
Porque Ele mesmo no-lo revelou.

Pode a razão humana, sem o auxílio da fé, perscrutar a existência das Pessoas divinas?
Não, Senhor (XXXII, 1, 2).

Como se chamam as verdades inacessíveis à inteligência e que só pela fé conhecemos?
Chamam-se mistérios.

É, por conseguinte, um mistério, a existência das Pessoas divinas?
É mistério e o mais profundo de todos.

Que nome tem?
Mistério da Santíssima Trindade.

Poderemos chegar a compreendê-lo?
Sim, e com seu conhecimento seremos eternamente felizes.

Poderemos nesta vida entrever alguma coisa dos admiráveis segredos do mistério da Santíssima Trindade, estudando a natureza das operações dos seres espirituais?
Sim, Senhor; dois são os atos imanentes do ser espiritual: entender e amar, e em cada um se estabelecem relações de princípio a termo, e de termo a princípio de operação. Daqui se deduz, conforme o que ensina a fé, que o Pai, no ato de entender, é princípio, porquanto diz e pronuncia um verbo, e o Verbo tem relação de termo, dito ou pronunciado. O mesmo sucede no ato de amor. O Pai e o Filho formam um princípio de amor, com relação ao Espírito Santo, que é o termo.

Em que qualidade divina se funda o mistério da Santíssima Trindade?
Na fecundidade e riqueza infinitas da divina natureza, em virtude da qual se estabelecem em Deus misteriosas processões de origem (XXVIII, 1).

Como se chamam as processões de origem?
Geração e Processão (XXVIII, 1, 3).

Que se deduz da existência da geração e processão?
Que entre os dois termos de cada processão há relação real constituída pelos mesmos termos.

Quantas e quais são as relações em Deus?
São quatro: Paternidade, Filiação, Inspiração Ativa e Processão ou Inspiração Passiva (XXVIII, 4).

Relação é o mesmo que Pessoa Divina?
Sim, Senhor (XL, 1).

Por que sendo quatro as relações, não são mais que três as pessoas?
Porque a relação chamada inspiração ativa, não só não se opõe, relativamente, à Paternidade e à Filiação, mas convém a uma e a outra; portanto, as Pessoas constituídas pela Paternidade e pela Filiação, podem e devem ser sujeito da inspiração ativa, a qual não constitui Pessoa, senão que convém conjuntamente às pessoas do Pai e do Filho (XXX, 2).

Guardam ordem entre si as Pessoas divinas?
Sim, guardam a ordem de origem, em virtude da qual o Pai pode enviar o Filho, e o Filho enviar o Espírito Santo (XLII, XLIII).

As ações divinas (excetuando os atos de noção, de gerar e inspirar) são comuns às três Pessoas?
Sim, Senhor; assim o conhecer e amar de Deus, é um só ato realizado pelas três pessoas, e bem assim todas as ações divinas que produzam algo de extrínseco à divindade (XXXIX, XLI).

Não há, apesar disso, alguns atos que se atribuem especialmente a determinadas Pessoas?
Sim, Senhor; atribuem-se-lhes, em virtude de certa conveniência entre aqueles atos e os caracteres distintivos da Pessoa: assim, por apropriação, se atribui ao Pai a Onipotência, ao Filho a Sabedoria, e a Bondade ao Espírito Santo, ainda que os três são igualmente poderosos, sábios e bons (XXXIX, 7, 8; XLV, 6).

Logo, sempre que falamos de Deus em relação com o mundo, entendemos falar Dele como uno na essência e trino em Pessoas?
Sim, Senhor; exceto quando falamos da Pessoa do Verbo no Mistério da Encarnação (XLV, 6).

* referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular).

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

DA MÍSERA AFEIÇÃO ÀS COISAS DO MUNDO

Para atingir o estado sublime de união com Deus, é indispensável à alma atravessar a noite escura da mortificação dos apetites, e da renúncia a todos os prazeres deste mundo. As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. A luz é incompatível com as trevas, como no-lo afirma São João ao dizer que as trevas não puderam compreender a luz (Jo 1, 5).

A alma enamorada das grandezas e dignidades ou muito ciosa da liberdade de seus apetites está diante de Deus como escrava e prisioneira e como tal — e não como filha — é tratada por Ele, porque não quis seguir os preceitos de sua doutrina sagrada que nos ensina: 'Quem quer ser o maior deve fazer-se o menor, e o que quiser ser o menor seja o maior'. A alma não poderá, portanto, chegar à verdadeira liberdade de espírito que se alcança na união divina; porque sendo a escravidão incompatível com a liberdade, não pode esta permanecer num coração de escravo, sujeito a seus próprios caprichos; mas somente no que é livre, isto é, num coração de filho. Neste sentido Sara diz a Abraão, seu esposo, que expulse de casa a escrava e seu filho: 'Expulsa esta escrava e seu filho, porque o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac' (Gn 21, 10).

Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união de Deus. Toda a glória e todas as riquezas das criaturas, comparadas à infinita riqueza que é Deus, são suma pobreza e miséria. Logo a alma afeiçoada à posse das coisas terrenas é profundamente pobre e miserável aos olhos do Senhor, e por isto jamais alcançará o bem-aventurado estado da glória e riqueza, isto é, a transformação em Deus; porque há infinita distância entre o pobre e indigente, e o sumamente rico e glorioso.

A Sabedoria divina, ao se queixar das almas que caem na vileza, miséria e pobreza, em consequência da afeição que dedicam ao que é elevado, grande e belo segundo a apreciação do mundo, fala assim nos Provérbios: 'A vós, ó homens, é que eu estou continuamente clamando, aos filhos dos homens é que se dirige a minha voz. Aprendei, ó pequeninos, a astúcia e vós, insensatos, prestai-me atenção. Ouvi, porque tenho de vos falar acerca de grandes coisas. Comigo estão as riquezas e a glória, a magnífica opulência, e a justiça. Porque é melhor o meu fruto que o ouro e que a pedra preciosa, e as minhas produções melhores que a prata escolhida. Eu ando nos caminhos da justiça, no meio das veredas do juízo, para enriquecer aos que me amam e para encher os seus tesouros' (Pv 8, 4-6.18-21). 

A divina sabedoria se dirige aqui a todos os que põem o coração e a afeição nas criaturas. Chama-os de 'pequeninos' porque se tornam semelhantes ao objeto de seu amor, que é pequeno. Convida-os a ter prudência e a observar que ela trata de grandes coisas e não de pequenas como eles. Com ela e nela se encontram a glória e as verdadeiras riquezas desejadas, e não onde eles supõem. A magnificência e justiça lhe são inerentes; e exorta os homens a refletir sobre a superioridade de seus bens em relação aos do mundo. Ensina-lhes que o fruto nela encontrado é preferível ao ouro e às pedras preciosas; afinal, mostra que sua obra na alma está acima da prata mais pura que eles amam. Nestas palavras se compreende todo gênero de apego existente nesta vida.

(Excertos da obra 'Subida do Monte Castelo', de São João da Cruz)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

FÁTIMA EM FATOS E FOTOS (XV)

71. Qual foi o fator primordial da santificação de Francisco Marto?

O ponto central da espiritualidade do Francisco Marto foi o sentido de reparação, a compreensão intuitiva de que a prática do bem pode consolar os pecados cometidos contra Deus. Os pastorinhos receberam de Deus uma luz extraordinária sobre o mistério do pecado e o castigo eterno do inferno; eles viram as almas que se condenam, e foram convidados a rezar e a fazer penitência reparadora. Esta visão marcou-os profundamente; daí por diante a sua grande preocupação era a visão do inferno, não por medo pessoal de lá caírem, mas por caridade para com os muitos incautos que ofendem a Deus e se condenam. 


Francisco foi ainda mais longe: todo o seu empenho passou a ser primariamente destinado a consolar Nosso Senhor. Este carisma da graça o absorveu por completo no pouco tempo de vida que lhe restou após as aparições da Virgem. Francisco Marto tinha apenas 10 anos de idade quando se afastou da rotina do mundo e passou a viver fazendo oração e penitência pela salvação dos pecadores, por causa das almas que ofendem a Deus, sentindo-se especialmente atraído pelo amor divino e na entrega completa e definitiva à sua missão na terra: esta foi a missão de Francisco, o Consolador: consolar Nosso Senhor dos nossos pecados!

72. Como e quando ocorreu a morte de Francisco?

Nossa Senhora havia prometido que levaria Francisco e Jacinta 'em breve' para o Céu [Segunda Aparição]. Assim, quando Francisco ficou doente em outubro de 1918, vítima da epidemia da gripe pneumônica que assolava Portugal inteiro, teve certeza de que Nossa Senhora estava a cumprir fielmente a sua promessa e, longe de se penalizar, enfrentou com nobreza e mortificação completa a enfermidade que foi longa e penosa.

(quarto onde faleceu Francisco Marto)

O quadro clínico da doença avançou rapidamente para um estágio grave de broncopneumonia, que fez o pequeno jazer prostrado por longo tempo na cama. Pela época do Natal e da passagem do Ano Novo, apresentou uma sensível melhora apenas para, em seguida, cair novamente doente, condição esta que então se agravou continuamente até a sua morte, ocorrida no dia 04 de abril de 1919, por volta das dez horas da noite. No dia anterior, havia recebido a comunhão por deferimento especial do Padre Manuel Bento Moreira, pároco de Fátima, uma vez que ainda não tinha feito a Primeira Comunhão. E, nesta ocasião, vai revelar à Lúcia um testamento de graças: 'hoje sou mais feliz que tu, porque tenho dentro do meu peito Jesus escondido'.

Foi sepultado no cemitério de Fátima, em campa rasa e num funeral sem quaisquer pompas, com o seu terço entre as mãos. Em 17 de fevereiro de 1952, seus restos mortais foram exumados e reconhecidos pelo pai pelo terço que colocara em suas mãos e posteriormente transladados para a o transepto direito da Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em 13 de março de 1952. A lápide contém a seguinte inscrição: 'Francisco Marto, a quem Nossa Senhora apareceu'.

(túmulo de Francisco Marto)

73. Quais foram os fatores primordiais da santificação de Jacinta Marto?

Os fatores essenciais da espiritualidade de Jacinta Marto eram a compaixão, especialmente pelos que sofriam e pelos que viviam afastados de Deus, e um amor extremado a Jesus e Maria, que a levou a se impor, mesmo criança, como uma cópia fiel das virtudes da Virgem Santíssima. Mais que os outros videntes, ela ficou profundamente impressionada pela visão do inferno e pelo mistério da eternidade e, desde então, estabeleceu uma senda de sacrifícios e mortificações pela conversão dos pecadores.


No enfrentamento de sua dolorosa doença, manteve inabalável estas crenças e esse propósito de santificação plena, numa atitude de fortaleza e perseverança extremas, marcadas pela paciência, aceitação compassiva de suas dores e pela alegria de servir-se delas para a conversão dos pecadores. Esse conhecimento íntimo da noção do pecado como ofensa ao Senhor e a necessidade imperiosa de salvação das almas são os postulados fundamentais da espiritualidade elevada de Jacinta, de quem a própria Lúcia escreveu: 'Jacinta era também aquela a quem, me parece, a Santíssima Virgem deu a maior plenitude de graças, conhecimento de Deus e da virtude. Ela parecia refletir em tudo a presença de Deus'.

74. Como e quando ocorreu a morte de Jacinta?

Jacinta adoeceu no mesmo período que Francisco, cerca de um ano depois das aparições da Cova da Iria. Depois de um longo tempo aparentemente estagnada, a doença evoluíra para uma pneumonia bronquial e depois para um abcesso nos pulmões, efeitos que lhe causaram muito sofrimento. Em julho de 1919, foi transferida para um hospital de Ourém, retornando a Aljustrel em agosto, bastante magra e debilitada. Novamente em Fátima, tal como Francisco, pareceu ter uma melhora súbita para, em seguida, recair na gravidade da doença. Teve visões particulares de Nossa Senhora nesta ápoca, a última delas em dezembro de 1919, que revelou a Lúcia as palavras ditas pela Virgem nos seguintes termos: 'Disse-me que vou para Lisboa, para outro hospital... que, depois de sofrer muito, morro sozinha, mas que não tenha medo que Ela vai lá me buscar para o Céu.' Isso era algo praticamente inimaginável pois os Marto de Aljustrel estavam longe de ter os recursos necessários para viabilizar o tratamento longo e demorado da filha em um hospital de Lisboa.


(quarto onde ficou doente Jacinta Marto)

Contudo, foi exatamente isso que ocorreu por iniciativa do Cônego Manuel Formigão, com o auxílio financeiro do Dr. Eurico Lisboa, do Barão de Alvaiázere e de outras pessoas abastadas da capital. A menina  foi acolhida temporariamente no Orfanato de Nossa Senhora dos Milagres (atual Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, junto ao Jardim da Estrela), o qual foi fundado e dirigido pela Madre Maria da Purificação Godinho. Constatada a gravidade do caso (Jacinta padecia de pleurisia, inflamação avançada das membranas pulmonares), foi transferida para o Hospital de Dona Estefânia em 2 de fevereiro de 1920, para se submeter à delicada cirurgia de drenagem do pus e das inflamações, apenas com anestesia local, sob coordenação do Dr. Castro Freire, sem sucesso. Padeceu dores violentas nos dias subsequentes e, sob uma nova visão da Virgem que lhe anunciou a morte iminente, pediu e recebeu os sacramentos da confissão do Padre Pereira dos Reis, da Igreja dos Anjos, que lhe prometeu trazer a comunhão na manhã seguinte. Mas não houve tempo pois naquela mesma noite, em torno das 10:30h, Jacinta faleceu.


(Dr. Eurico Lisboa e enfermeiras Leonor da Assunção e Aurora Gomes que cuidaram de Jacinta)

Coberta com um vestido branco e um manto azul, como as cores de Nossa Senhora, o sepultamento foi previsto inicialmente para Lisboa, ficando o corpo disponível para visitação pública para um enorme contingente de pessoas entre os dias 21 até a manhã de 24 de fevereiro, onde todos testemunharam o odor agradável exalado do corpo, mesmo após três dias de sua morte. Com a intervenção do Barão de Alvaiázere, que ofereceu um jazigo de sua propriedade em Vila Nova de Ourém, o local do sepultamento foi alterado para aquele local, sendo realizado em 24 de fevereiro de 1920. Em 12 de setembro de 1935, os seus restos mortais foram trasladados para o cemitério de Fátima, data em que a urna foi aberta e revelado o seu rosto incorrupto. Em 01 de maio de 1951, os restos mortais de Jacinta foram depositados no transepto esquerdo da Basílica de Nossa Senhora do Rosário em Fátima.

(rosto incorrupto e túmulo de Jacinta, ao lado do túmulo de Lúcia)


75. Como e quando se deram os processos de canonização de Francisco e Jacinta Marto?

Embora a fama de santidade dos dois pastorinhos fosse reconhecida por muitos logo após as suas mortes, somente muitos anos depois, com a descoberta do corpo incorrupto de Jacinta em setembro de 1935 e a posterior publicação das chamadas 'Memórias de Lúcia', tornou-se possível estabelecer a dimensão da fé heroica dos videntes de Fátima e dar início aos pedidos para investigação da santidade das duas crianças. 

Os processos de canonização de Francisco e Jacinta Marto foram introduzidos pelo Bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, em 1952, sendo nomeado Postulador o Cônego João Pereira Venâncio em ambos os processos. Os processos foram concluídos em 2 de julho de 1979 e em 3 de agosto de 1979, para a Jacinta e Francisco respectivamente. Como o Cônego João Pereira Venâncio fora nomeado bispo em 1954 e assumira a Diocese de Leiria em 1958, ele nomeou para novo Postulador das Causas dos dois pastorinhos o sacerdote húngaro Luís Kondor, que ocupará esta função desde 1960 até 2009, ano do seu falecimento.

Em 1979, os processos foram encaminhados à Roma e, depois de um longo debate sobre a possibilidade da espiritualidade de uma criança alcançar maturidade de fé – já que, até então, apenas se canonizara crianças cristãs martirizadas – a Congregação para a Causa dos Santos emite um parecer sobre a 'idoneidade dos adolescentes para o exercício heroico das virtudes e do martírio', no qual se mostra favorável à possibilidade da canonização de crianças no uso da razão. Com esse parecer favorável, as Positio sobre as virtudes do Francisco e da Jacinta foram redigidas e apresentadas à Congregação para a Causa dos Santos em 1988. A 13 de Maio de 1989, o Santo Padre João Paulo II decretou solenemente a Heroicidade de Virtudes dos Servos de Deus Francisco e Jacinta Marto, concedendo-lhes o título de Veneráveis.

A 22 de junho de 1999, foi aprovado um milagre de cura pela intercessão de Francisco e de Jacinta, abrindo-se, assim, o caminho da beatificação de ambos por meio de um único processo que culminou com a beatificação dos videntes em Fátima, em 13 de maio de 2000, ano jubilar, pelo Papa João Paulo II. Com a confirmação de um segundo milagre em março de 1917, considerado como resultado da intercessão direta dos videntes de Fátima e que envolveu a cura inexplicável de uma criança brasileira vítima de grave acidente com traumatismo crânio-encefálico (evento ocorrido em 2013), cumpriu-se a exigência complementar para a canonização das duas crianças, evento que ocorreu finalmente na data do centenário das aparições, em 13 de maio de 2017.

(missa da canonização dos videntes em 13/05/2017)

Francisco e Jacinta Marto foram canonizados numa missa presidida pelo Papa Francisco, em Fátima, com o recinto do santuário tomado por uma multidão de fiéis. A canonização teve lugar logo no início da missa. O bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, começou por fazer ao papa a petição nos seguintes termos:  'inscreva os beatos Francisco Marto e Jacinta Marto no catálogo dos santos e, como tais, sejam invocados por todos os cristãos'. Em seguida, D. António Marto apresentou uma biografia sucinta de cada um dos novos santos. 

Seguiu-se a litania dos santos, em que a Igreja pede a intercessão de uma longa lista de santos e santas e a leitura, pelo papa, da fórmula tradicional de canonização:  'Para honra da Santa e Indivisível Trindade, para exaltação da fé católica e incremento da vida cristã, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e nossa, depois de termos longamente refletido, implorado várias vezes o auxílio divino e ouvido o parecer de muitos irmãos nossos no Episcopado, declaramos e definimos como santos os beatos Francisco Marto e Jacinta Marto e inscrevemo-los no Catálogo dos Santos, estabelecendo que, em toda a Igreja, sejam devotamente honrados entre os santos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo'. Eram 10h26 do dia 13/05/2017 quando Francisco e Jacinta foram declarados os santos não-mártires mais jovens da Igreja Católica.


As imagens oficiais dos dois santos são da pintora Sílvia Patrício e são baseadas em fotografias das crianças feitas em 1917, incluindo-se cores às vestes da época e atributos adicionais como o terço nas mãos, a candeia e os detalhes nas auréolas em formato de peças de ourivesaria; na de Francisco, aparecem a silhueta do Anjo de Fátima e as espécies eucarísticas; na de Jacinta, as figuras do Papa e da Virgem Maria, representada pelo seu Imaculado Coração.

domingo, 12 de novembro de 2017

PALAVRAS DE FÁTIMA (IV)

A PARÁBOLA DAS DEZ VIRGENS

Páginas do Evangelho - Trigésimo Segundo Domingo do Tempo Comum


No Evangelho deste domingo, Jesus nos exorta a praticar a vigilância constante em relação à hora da nossa morte pois ela há de vir na hora mais inesperada: 'ficai vigiando, pois não sabeis qual será o dia nem a hora' (Mt 25, 13). No fim da nossa vida, não haverá mais tempo para prover-nos tributos de salvação e então, no Juízo Particular, Deus vai nos pedir contas da nossa vigilância à Sua Santa Vontade, do cumprimento de nossas ações cristãs e do acervo das graças recebidas e dos talentos aproveitados ou não. Neste momento tremendo de nossa existência, seremos julgados previdentes ou imprevidentes pelo Pai e merecedores ou não do Reino dos Céus.

São palavras de salvação, porque a única coisa realmente importante para o homem é a salvação eterna de sua alma, expressas sob a forma da parábola das dez virgens (Mt 25, 1 - 13) que esperam a chegada do noivo, que tarda a chegar. O ingresso no Reino de Deus se assemelha às núpcias das festas de casamento daquele tempo em que a entrada da esposa na casa do esposo era um evento singular, marcado pela condução ritual da noiva por um certo número de virgens auxiliares. 

Na narração evangélica, estas virgens são dez ao todo, cinco delas previdentes e outras cinco imprevidentes. As primeiras, prevendo uma eventual demora do noivo (o Senhor), guardaram uma provisão de óleo para manterem acesas as suas lâmpadas qualquer que fosse a hora que o noivo chegasse; ao contrário, as virgens imprudentes, não tendo o mesmo cuidado, viam angustiadas o óleo ser consumido e as suas lâmpadas prestes a se apagarem. E então recorrem desesperadamente às primeiras para que estas lhes forneçam o óleo necessário, o que lhes é negado peremptoriamente. Na morte, na nossa morte, não teremos tempo nem acesso a 'óleos' alheios, a provisão dos nossos méritos será fruto tão somente daquilo que efetivamente levarmos desta vida. 

Diante de Deus, cada um de nós deverá responder por si, como resultado de um julgamento pessoal e intransferível. Ou apresentamos as lâmpadas acesas da graça, providas pelo óleo abundante da fé, para merecermos entrar no Reino de Deus ou ficaremos às escuras diante da porta fechada e da terrível sentença do juiz eterno: 'Não vos conheço!' (Mt 25, 12): 'Não vos conheço, porque não seguistes os meus mandamentos, não vivestes segundo os meus princípios e leis, não vos tornastes na terra herdeiros dos Céus!'

sábado, 11 de novembro de 2017

AS 10 CLASSES DOS SANTOS DA IGREJA

I. Santos do Antigo Testamento: começando pelos primeiros Patriarcas, passando pelos profetas e terminando com o último santo deste período, que foi São João Batista, do qual o Senhor disse: 'entre os nascidos de mulher não há maior do que João. Entretanto, o menor no Reino de Deus é maior do que ele' (Lc 7, 28). 

II. Santos mártires: o primeiro santo e mártir foi Santo Estêvão, o protomártir, que foi apedrejado até a morte na porta de Jerusalém que leva seu nome, embora os muçulmanos a denominem como Porta dos Leões, pois existem dois leões gravados nas paredes de pedra que flanqueiam essa porta. Desde os tempos mais primitivos do cristianismo, a palma do martírio era considerada referência clara de santidade, o que continua sendo verdade até os tempos de hoje. No século XX, temos o exemplo do martírio dos Cristeros no México e as muitas vítimas das perseguições nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e, ainda hoje, são muitos os mártires católicos pelas perseguições nos países comunistas e pelo fanatismo islâmico.

III. Santos confessores e ascetas: santos que não receberam a palma do martírio de modo cruento, mas a obtiveram de modo incruento, que existiram desde sempre e que existem ainda nos tempos atuais. Eles são os cristãos que vivem heroicamente a sua fé, seja através de uma vida de afastamento do mundo, como eremitas ou recolhidos em mosteiros, ou como simples cristãos leigos e anônimos, com os quais, muitas vezes, convivemos cotidianamente em nossas vidas.

IV. Santos fundadores de ordens ou movimentos religiosos: pessoas singulares que foram  chamados pelo Senhor para criar verdadeiros impérios do cristianismo, a partir do nada, mas confiantes absolutos nos desígnios divinos e no cumprimento estrito da Vontade de Deus. São santos como São Francisco de Assis, São Domingos de Gusmão, Santa Teresa de Jesus ou Santo Inácio de Loyola ou, mais recentemente, São Josemaría Escrivá de Balaguer.

V.  Santos místicos:  são aqueles que receberam expressamente a ação direta e imediata de Deus na alma, juntamente com a consciência que a alma tem de tal feito e, por isso, o termo 'místico' designa os estados mais avançados do processo 'contemplativo'. O misticismo é a tomada de posse de nosso ser por Deus, o que traz consigo uma modificação de nossa psicologia, nossa consciência e nosso comportamento, de maneira sensível, embora não possamos conhecê-la ou expressá-la. Para Royo Marín, o misticismo não é um estado extraordinário e anormal reservado para alguns aristocratas do espírito, mas o caminho natural que todas as almas devem percorrer para alcançar a completa expansão e desenvolvimento da graça santificante, recebida na forma de uma semente ou germe no sacramento do batismo. Muitos outros tipos de santos podem ser incluídos também nesta classe, por exemplo, Santa Teresa de Jesus.

VI. Santos doutores da Igreja: são homens e mulheres ilustres que, pela sua santidade, pela ortodoxia de sua fé, e principalmente pelo seu eminente sa­ber teológico, atestado por diferentes obras e escritos, foram honrados com tal título por desígnio da Igreja (num total de 36 santos até hoje). Entre eles, se incluem Santo Ambrósio (o primeiro santo doutor da Igreja), São Tomás de Aquino, São João da Cruz e Santo Afonso Maria de Ligório. Quatro foram as mulheres declaradas doutoras da Igreja: Santa Catarina de Siena, Santa Teresa de Ávila, Santa Teresa de Lisieux e Santa Hildergada de Bingen.

VII. Santos missionários: são aqueles que, impulsionados por um extremado zelo apostólico, buscaram, em vez do isolamento e reclusão, uma vida de intensa e contínua atividade apostólica e missionária no mundo. exemplos destes santos são  os irmãos Cirilo e Metódio que evangelizaram a Europa Oriental, São Bonifácio que deixou a Inglaterra para evangelizar a Alemanha e São Francisco Xavier que converteu milhares de pessoas ao cristianismo na Índia e no Extremo Oriente.

VIII.  Santos humanistas: são homens que levaram a estrita observância aos preceitos da fé cristã em todas as suas variadas e múltiplas atividades humanas. Exemplo típico desta classe de santos foi São Tomas More, que foi advogado, político, homem de negócios, chanceler da Inglaterra, escritor, filósofo e mártir da Igreja.

IX. Santos excêntricos: são aqueles que totalmente imersos na vida em Deus, despojam-se de todo respeito humano e concessões às normas regulares da conduta humana convencional. João Batista morava no deserto e se alimentava de gafanhotos. Outros viveram isolados como nômades em cavernas ou em outros ambientes igualmente ermos e rústicos. Outro exemplo típico desta classe é São Simeão Estilita, um asceta cristão sírio, que viveu no cimo de uma coluna de pedra, amarrado por correntes, durante 37 anos de sua vida.

X. Santos anônimos: são aqueles que alcançaram a santidade no completo anonimato no mundo, vivendo e convivendo com os homens, entre nós. Têm como característica singular, com raras exceções, o convívio formal e o desconhecimento dos próximos. São santos de todos os tempos. Buscam cotidianamente cumprir em suas vidas a Santa Vontade de Deus, em meio às suas atividades humanas específicas e são vistos, portanto, como fulano ou beltrano, e referidos pela sua profissão ou atuação, mas que são santos porque, em sua vida terrestre, já se postulam como cidadãos do Céu.

(Texto do autor deste blog, com base em texto publicado originalmente em espanhol no blog de Juan del Carmelo)