quarta-feira, 22 de junho de 2016

A PLENITUDE DO AMOR

Irmãos caríssimos, o Senhor definiu a plenitude do amor com que devemos amar-nos uns aos outros, quando disse: 'Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos' (Jo 15,13). Daqui se conclui o que o mesmo evangelista João diz em sua epístola: 'Jesus deu a sua vida por nós. Portanto, também nós devemos dar a vida pelos irmãos' (1Jo 3,16), amando-nos verdadeiramente uns aos outros, como ele nos amou até dar a sua vida por nós. É certamente a mesma coisa que se lê nos Provérbios de Salomão: 'Quando te sentares à mesa de um poderoso, olha com atenção o que te é oferecido; e estende a tua mão, sabendo que também deves preparar coisas semelhantes' (Pr 23,1-2).

Ora, a mesa do poderoso é a mesa em que se recebe o corpo e o sangue daquele que deu a sua vida por nós. Sentar-se à mesa significa aproximar-se com humildade. Olhar com atenção o que é oferecido, é tomar consciência da grandeza desta graça. E estender a mão sabendo que também se devem preparar coisas semelhantes, significa o que já disse antes: assim como Cristo deu a sua vida por nós, também devemos dar a nossa vida pelos irmãos. É o que diz o apóstolo Pedro: 'Cristo sofreu por nós, deixando-nos um exemplo, a fim de que sigamos os seus passos' (1Pd 2,21). Isto significa preparar coisas semelhantes. Foi o que fizeram, com ardente amor, os santos mártires. Se não quisermos celebrar inutilmente as suas memórias e nos sentarmos sem proveito à mesa do Senhor, no banquete onde eles se saciaram, é preciso que, como eles, preparemos coisas semelhantes.

Por isso, quando nos aproximamos da mesa do Senhor, não recordamos os mártires do mesmo modo como aos outros que dormem o sono da paz, ou seja, não rezamos por eles, mas antes pedimos para que rezem por nós, a fim de seguirmos os seus passos. Pois já alcançaram a plenitude daquele amor acima do qual não pode haver outro maior, conforme disse o Senhor. Eles apresentaram a seus irmãos o mesmo que por sua vez receberam da mesa do Senhor.

Não queremos dizer com isso que possamos nos igualar a Cristo Senhor, mesmo que, por sua causa, soframos o martírio até o derramamento de sangue. Ele teve o poder de dar a sua vida e depois retomá-la; nós, pelo contrário, não vivemos quanto queremos, e morremos mesmo contra a nossa vontade. Ele, morrendo, matou em si a morte; nós, por sua morte, somos libertados da morte. A sua carne não sofreu a corrupção; a nossa, só depois de passar pela corrupção, será por ele revestida de incorruptibilidade, no fim do mundo. Ele não precisou de nós para nos salvar; entretanto, sem ele nós não podemos fazer nada. Ele se apresentou a nós como a videira para os ramos; nós não podemos ter a vida se nos separarmos dele.

Finalmente, ainda que os irmãos morram pelos irmãos, nenhum mártir derramou o seu sangue pela remissão dos pecados de seus irmãos, como ele fez por nós. Isto, porém, não para que o imitássemos, mas como um motivo para agradecermos. Portanto, na medida em que os mártires derramaram seu sangue pelos irmãos, prepararam o mesmo que tinham recebido da mesa do Senhor. Amemo-nos também a nós uns aos outros, como Cristo nos amou e se entregou por nós.

('Tratado do Evangelho de São João', de Santo Agostinho)

domingo, 19 de junho de 2016

'E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?'

Páginas do Evangelho - Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum


Jesus encontra-se em oração em um lugar retirado. O Filho de Deus, em sua condição humana, suplicando graças à Trindade Santa, da qual constitui a Segunda Pessoa, constitui um mistério insondável. E Jesus reza sozinho, em profunda meditação, como a indicar, com soberana clareza, que a revelação extraordinária que será dada a seguir - a identidade do Cristo - perpassa pela oração profunda e pelos mistérios da graça. E, neste espírito de profundo recolhimento interior, que antecede grandes revelações, Jesus indaga aos seus discípulos: 'Quem diz o povo que eu sou?' (Lc 9, 18).

Neste 'certo dia', as mensagens e as pregações públicas de Jesus estavam consolidadas; os milagres e os poderes sobrenaturais do Senhor eram de conhecimento generalizado no mundo hebraico; multidões acorriam para ver e ouvir o Mestre, dominados pela falsa expectativa de encontrar um personagem mítico e um Messias dominador do mundo. Na oração profunda, Jesus afasta-se do júbilo fácil do mundo e das multidões errantes, que O tomam por João Batista, por Elias, por um dos antigos profetas. E se aproxima intimamente daqueles que haverão de ser os primeiros apóstolos da Igreja nascente, compartilhando-lhes na pergunta do juízo de fé:  'E vós, quem dizeis que eu sou?' (Lc 9, 20), a resposta à sua identidade salvífica, saída da boca de Pedro: 'O Cristo de Deus' (Lc 9, 20).

Sim, Jesus é o Cristo de Deus e o seu reino não é deste mundo. Ante a confissão de Pedro, Jesus revela a sua origem e a sua missão e faz o primeiro anúncio de sua Paixão, Morte e Ressurreição: 'O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia' (Lc 9, 22). E, um passo além, faz o testemunho da cruz, pela privação do mundo: 'Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará (Lc 9, 33-24).

Eis aí o legado definitivo de Jesus aos homens de sempre: a Cruz de Cristo é o caminho da salvação e da vida eterna. Tomar esta cruz, não apenas hoje ou em momentos específicos de grandes sofrimentos em nossas vidas, mas sim, todos os dias, a cada passo, em cada caminho, é a certeza de encontrá-lO na glória e da plenitude das bem-aventuranças. A Cruz de Cristo é a Porta do Céu. 

quinta-feira, 16 de junho de 2016

FIDELIDADE E PENITÊNCIA

Enquanto estamos aqui na terra, façamos penitência. Com efeito, somos argila na mão do artífice. Se o oleiro, tendo feito um vaso, e, em suas mãos, este se entorta ou quebra, de novo torna a fazê-lo. Se, porém, decidiu pô-lo no forno, nada mais há que fazer. Assim também nós, enquanto estamos no mundo e temos tempo, façamos, de coração, penitência pelos pecados cometidos, para sermos salvos pelo Senhor.

Porque depois de sairmos do mundo já não mais poderemos reconhecer os nossos pecados nem fazer penitência. Por este motivo, irmãos, se fizermos a vontade do Pai, mantivermos casto nosso corpo e guardarmos os preceitos do Senhor, alcançaremos a vida eterna. O Senhor disse no evangelho: 'Se não fordes fiéis no pouco, quem vos confiará o muito? Pois eu vos digo: quem é fiel no pouco também será fiel no muito' (Lc 16,10-11). Quis dizer: Guardai casto o corpo e imaculado o caráter, para que sejamos dignos de receber a vida.

E ninguém venha dizer que a carne não será julgada nem ressurgirá. Confessai: em que fostes salvos, em que recobrastes a vista, se não foi vivendo ainda nesta carne? Convém-nos, portanto, proteger a carne como templo de Deus. Tal qual fostes chamados no corpo, assim no corpo ireis. Cristo Senhor, que nos salvou, era antes só espírito e fez-se carne e assim nos chamou. Do mesmo modo também nós receberemos a recompensa neste corpo. 

Amemo-nos, pois, uns aos outros, para entrarmos todos no reino de Deus. Enquanto temos tempo de ser curados, entreguemo-nos a Deus médico, dando-lhe a paga. Que paga? A penitência brotada de um coração sincero. Com efeito, ele prevê todas as coisas e conhece o que se passa em nosso íntimo. Louvemo-lo, pois, não só de boca, mas de coração, para que nos receba como filhos. De fato o Senhor disse: 'Meus irmãos são aqueles que fazem a vontade de meu Pai' (Lc 8,21-).

(Homília de um autor desconhecido do século II)

terça-feira, 14 de junho de 2016

NOSSA SENHORA DE TODOS OS NOMES (5)

5. NOSSA SENHORA DA BOA VIAGEM

Os habitantes de antigas povoações portuguesas situadas na orla marítima e associadas às atividades de navegação, bem como das vilas que representaram importantes entrepostos de grandes rotas terrestres, uma vez sujeitos a toda sorte de riscos e perigosos em suas constantes e demoradas viagens, recorriam sempre à proteção divina e da Virgem Maria, invocando-a sob nomes como Nossa Senhora da Ajuda ou Nossa Senhora da Boa Viagem. Era, pois, Nossa Senhora da Boa Viagem a companhia segura dos marinheiros, comerciantes e viajantes portugueses em suas incursões de além-mar e por terras distantes, devoção que levaram também a estes lugares remotos, em agradecimento ao bom termo de tais andanças e navegações.

Em geral, a imagem de Nossa Senhora trazida na viagem era alocada no altar de uma pequena capela construída em local privilegiado e de grande fluxo de viajantes, que se tornava então, ponto obrigatório de parada e de invocação pela continuidade de 'uma boa viagem'. Com este nome, Nossa Senhora passava a ser a padroeira dos viajantes locais e tal devoção se espalhou rapidamente por diferentes países e lugares. 

No Brasil, essa prática devocional à Nossa Senhora da Boa Viagem começou na Bahia e Pernambuco (cujo bairro da Boa Viagem assimilou por inteiro o nome da própria devoção) e depois se estendeu pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e outros estados. Em Belo Horizonte, a devoção assumiu a própria condição de padroeira da capital mineira (comemoração em 15 de agosto), sendo erigida em 1923, data em que a cidade foi oficializada como arcebispado, uma catedral dedicada à Nossa Senhora da Boa Viagem. 

Na iconografia tradicional, Nossa Senhora da Boa Viagem é representada sobre nuvens, trazendo a cabeça coberta por véu e coroa; na mão esquerda, leva o Menino Jesus e, na mão direita, segura uma nau. Existem, entretanto, muitas variantes da imagem tradicional. A imagem instalada no altar mor da Catedral de Belo Horizonte, por exemplo, é do século 18 e representa a Virgem com o braço direito sobre o peito e o esquerdo apontando para o alto, tendo na base três querubins e uma meia lua. 


Oração a Nossa Senhora da Boa Viagem

Virgem Santíssima, Senhora da Boa Viagem, esperança infalível dos filhos da Santa Igreja, sois guia e eficaz auxílio dos que transpõem a vida por entre os perigos do corpo e da alma. Refugiando-nos sob o vosso olhar materno, empreendemos nossas viagens certos do êxito que obtivestes quando vos encaminhastes para visitar vossa prima Santa Isabel.

Em ascensão crescente na prática de todas as virtudes transcorreu a vossa vida, até o ditoso momento de subirdes gloriosa para os céus; nós vos suplicamos pois, ó Mãe querida: velai por nós, indignos filhos vossos, alcançando-nos a graça de seguir os vossos passos, assistidos por Jesus e José, na peregrinação desta vida e na hora derradeira de nossa partida para a eternidade. Amém.

DOS CUIDADOS COM OS MORTOS (III)

SANTO AGOSTINHO

PARTE II


CAPÍTULO VII

Existe no coração humano um sentimento natural que não permite ninguém detestar sua própria carne. Assim, se alguém vem a saber que, após a sua morte, seu corpo não receberá as honras de sepultura, conforme o costume da cada raça e nação, sente-se perturbado como homem. Teme que seu corpo, antes da morte, não atinja o destino pretendido após a morte.

É isto que lemos no livro dos Reis (1Rs 13,21-22), quando Deus envia um profeta a outro profeta (um homem de Deus) que havia transgredido a Sua Palavra, para anunciar-lhe que seu corpo, como castigo, não seria levado à sepultura de seus pais. Eis o que diz as Escrituras: 'Aquele profeta disse ao homem de Deus que tinha vindo de Judá: Eis o que diz o Senhor: porque não obedeceste à Palavra do Senhor e não guardaste o mandamento que o Senhor, teu Deus, havia te imposto, voltando e comendo pão e tomando água, o teu cadáver não será levado ao sepulcro de teus pais'.

Medindo a importância desta punição em relação ao Evangelho - onde está escrito que, estando morto o corpo, os membros nada devem temer - não podemos dizer que isso tenha sido uma punição, exceto se considerarmos o amor que todo homem tem por sua própria carne: o profeta, em vida, com certeza sentiu temor e tristeza com a ideia de um tratamento que não poderia sentir após a morte. E era justamente essa a sua punição; esse sentimento de dor diante da ideia do que sofreria o seu corpo, ainda que, de fato, não viesse a sofrer em absoluto no momento em que a ameaça se concretizasse.

Ora, o Senhor quis apenas punir a desobediência do seu servo, não por má vontade, mas por ter sido enganado pela mentira de um outro profeta. Não se pode pensar que a mordida da fera selvagem o tenha matado para que a sua alma fosse lançada no inferno, pois o mesmo leão que o agredira montou guarda de seu corpo, sem fazer mal algum ao jumento que assistia destemidamente ao funeral do seu dono, ao lado da terrível fera. Esse fato notável é sinal de ter sofrido o profeta tal morte como castigo temporal e não como punição eterna.

O Apóstolo lembra que muitos são punidos com doença ou morte por causa de seus pecados, fazendo esta observação: 'Se nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; mas com seus julgamentos, o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o mundo' (1Cor 11,31-32).
O velho profeta, que enganara o homem de Deus, sepultou-o com muita honra e tomou os procedimentos necessários para que, mais tarde, ele mesmo fosse sepultado junto a aquele. Esperava que aqueles ossos encontrariam graça quando chegasse o tempo em que, conforme a profecia do homem de Deus, Josias, rei de Judá, exumaria os ossos de muitos mortos para profanar com eles os altares sacrílegos erguidos aos ídolos. Contudo, passados mais de 300 anos, Josias poupou o sepulcro onde havia sido enterrado o homem de Deus que predissera esse fato. E, assim, graças a esse homem de Deus, a sepultura do profeta que o enganara não foi violada.

O efeito que leva alguém a odiar a própria carne o havia feito prever o destino do seu corpo, mesmo tendo matado sua alma por uma mentira. Cada um ama sua própria carne por instinto. Assim, um profeta sofreu à ideia de que não iria repousar no sepulcro de seus pais e o outro tomou o cuidado de prover à segurança de seus ossos, fazendo-se enterrar em sepulcro que ninguém haveria de violar.

CAPÍTULO VIII

Porém, os mártires venceram esse apego ao próprio corpo em sua luta pela verdade. Não é de surpreender que tenham desprezado as honras reservadas aos seus despojos. Só estariam insensíveis a elas após a morte, pois enquanto viviam e tinham sensibilidade, não se deixaram vencer pelo suplício.
O Senhor não permitiu ao leão tocar no cadáver daquele homem de Deus, morto por essa mesma fera assassina que logo depois se tornou seu guardião (1Rs 13,24).

Do mesmo modo, Deus poderia, se quisesse, ter afastado os cadáveres de seus fiéis dos cães aos quais foram jogados. Ele poderia, de mil maneiras, dominar a crueldade dos carrascos, impedindo-os de queimar aqueles corpos e dispersar suas cinzas. Porém, foi necessário que essa provação se acrescentasse ainda à múltipla diversidade das tribulações, a fim de que a firmeza da ferocidade da perseguição, armada contra o corpo deles, não temesse diante da privação das honras fúnebres do sepultamento.

Em outras palavras: era necessário que a fé na ressurreição não fosse abalada pela destruição do corpo. Logo, todas essas provações foram permitidas para que os mártires, após demonstrarem tão grande coragem nos sofrimentos, se tornassem ainda mais fervorosos para confessar a Cristo, tornando-se testemunhas também desta verdade: os que matam o corpo, nada mais podem fazer. Qualquer que seja o tratamento imposto aos corpos sem vida, em nenhum efeito resultará pois sendo o corpo desprovido de vida, que se separou dele, nada mais pode sentir. E aquele que o criou nada pode perder.

Mas enquanto tratavam com tanta crueldade os corpos das vítimas - e os mártires suportavam com grande coragem tais tormentos - entre os irmãos erguia-se grande lamentação. Estavam aflitos por não terem a liberdade para prestar os deveres fúnebres aos santos, como é de justiça. A vigilância dos guarda proibia-os de subtrair às escondidas algum resto mortal desses mártires, como nos atesta a mesma História [História Eclesiástica, de Eusébio]. Após sua morte, os mártires não padeciam mais nenhum sofrimento, nem mesmo do esfacelamento dos seus membros, nem das chamas que transformaram em cinzas os seus ossos, e nem da dispersão destas cinzas. Mas os cristãos eram atormentados por grande dor e piedade por não poderem sepultar a mínima porção de suas relíquias. Eles sentiam em sua misericordiosa compaixão todos os sofrimentos que aqueles mortos não mais podiam experimentar.

CAPÍTULO IX

Foi graças a esse sentimento de misericordiosa compaixão, que acabo de citar, que o rei Davi louvou e bendisse aqueles que caridosamente forneceram uma sepultura aos ossos secos de Saul e Jônatas (2Sm 2,4-6). Mas que tipo de caridade se pode testemunhar para com aqueles que nada mais sentem? Seria, por acaso, retornar àquela concepção de que os falecidos privados da sepultura não podem cruzar o rio do Hades? 

Rejeitamos essa ideia contrária à fé cristã! De outra maneira, teríamos que considerar que o pior castigo imposto aos mártires fora justamente o fato de terem sido privados da sepultura e, nesse caso, a Verdade os teria enganado ao dizer: 'Não temais aqueles que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer' 9Lc 12,4), pois os seus perseguidores teriam conseguido impedir-lhes de chegar à morada tão desejada. Isso tudo é de uma falsidade evidente: os fiéis nada sofrem por estarem privados da sepultura da mesma forma como os infiéis nada aproveitam por a receberem.

Perguntemo-nos, então, por que aqueles que enterraram Saul e seu filho Jônatas foram louvados, por executarem uma obra de misericórdia, e abençoados pelo piedoso rei Davi. Ocorre que os corações piedosos obedecem a uma boa inspiração quando, levados pelo sentimento de que 'ninguém odeia a própria carne', sofrem ao verem os cadáveres dos outros receberem maus cuidados, pois não gostariam que seu próprio corpo sem vida recebessem tal tratamento. E o que desejam que lhes proporcionem quando não mais existirem, cuidam de proporcionar aos que já não existem, enquanto eles mesmos ainda gozam dos sentidos.

('De Cura pro Mortuis Gerenda' - O Cuidado Devido aos Mortos, de Santo Agostinho - Parte III)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

13 DE JUNHO - SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA



SÍNTESE BIOGRÁFICA

1195: Nasce em Lisboa, filho de Maria e Martinho de Bulhões. É batizado com o nome de Fernando. Reside na frente da Catedral.

1202: Com sete anos de idade, começa a frequentar a escola, um privilégio raro na época.

1209: Ingressa no Mosteiro de São Vicente, dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, perto de Lisboa. Torna-se agostiniano. 

1211: Transfere-se para Coimbra, importante centro cultural, onde se dedica de corpo e alma ao estudo e à oração, pelo espaço de dez anos.

1219: É ordenado sacerdote. Pouco depois conhece os primeiros franciscanos, vindos de Assis, que ele recebe na portaria do mosteiro. Fica impressionado com o modo simples e alegre de viver daqueles frades.

1220: Chegam a Coimbra os corpos de cinco mártires franciscanos. Fernando decide fazer-se franciscano como eles. É recebido na Ordem com o nome de Frei Antônio, enviado para as missões entre os sarracenos de Marrocos, conforme deseja.

1221: Chegando a Marrocos, adoece gravemente, sendo obrigado a voltar para sua terra natal. Mas uma tempestade desvia a embarcação arrastando-a para o sul da Itália. Desembarca na Sicília. Em maio do mesmo ano participa, em Assis, do capítulo das Esteiras, uma famosa reunião de cinco mil frades. Aí conhece o fundador da Ordem, São Francisco de Assis. Terminado o Capítulo, retira-se para o eremitério de Monte Paolo, junto aos Apeninos, onde passa 15 meses em solidão contemplativa e em trabalho braçal. 

1222: Chamado de improviso a falar numa celebração de ordenação, Frei Antônio revela uma sabedoria e eloquência extraordinárias, que deixam a todos estupefatos. Começa a sua epopéia de pregador itinerante.

1224: Em brevíssima Carta a Frei Antônio, São Francisco o encarrega da formação teológica dos irmãos. Chama-o cortesmente de 'Frei Antônio, meu bispo'.

1225: Depois de percorrer a região norte da Itália, passa a pregar no sul da França, com notáveis frutos. Mas tem duras disputas com os hereges da região.

1226: É eleito custódio na França e, um ano depois, provincial dos frades no norte da Itália.

1228: Participa, em Assis, do Capítulo Geral da Ordem, que o envia a Roma para tratar com o Papa de algumas questões pendentes. Prega diante do Papa e dos Cardeais. Admirado de seu conhecimento das Escrituras, Gregório IX o apelida de 'Arca do Testamento'.

1229: Frei Antônio começa a redigir os 'Sermões', atualmente impressos em dois grandes volumes.

1231: Prega em Pádua a famosa quaresma, considerada como o momento de refundação cristã da cidade. Multidões acorrem de todos os lados. Há conversões e prodígios. Êxito total! Mas Frei Antônio está exausto e sente que seus dias estão no fim. Na tarde de 13 de junho, mês em que os lírios florescem, Frei Antônio de Lisboa morre às portas da cidade de Pádua. Suas últimas palavras são: 'Estou vendo o meu Senhor'. As crianças são as primeiras a saírem pelas ruas anunciando: 'Morreu o Santo'.

1232: Não tinha bem passado um ano desde sua morte, quando Gregório IX o inscreveu no catálogo dos santos.

1946: Pio XIII declara Santo Antônio Doutor da Igreja, com o título de 'Doutor Evangélico'.

MILAGRE DOS PEIXES


Certa vez quando o Frei Antônio pregava o Evangelho na cidade de Rímini, Itália, os moradores locais não queria escutá-lo e começaram a ofendê-lo a ponto de ameaçá-lo de agressão física. Santo Antônio saiu da praça e caminhou em direção à praia e, dando as costas aos seus detratores, falou em voz alta. 'Escutai a Palavra de Deus, vós que sois peixes e vives no mar, já que os infiéis não a querem ouvir.' Diversos peixes agruparam-se à beira da praia e, postando suas cabeças para fora d’água, ficaram em posição como de escuta das palavras do santo: 'Bendizei ao Senhor, vós que sois também criaturas de Deus!' E aqueles que presenciaram este milagre espantoso creram e se converteram ao cristianismo!

EXCERTOS DE UM SERMÃO: 'A CEGUEIRA DAS ALMAS '
(SERMÃO DO DOMINGO DA QUINQUAGÉSIMA) 

3. Um cego estava sentado, etc. Omitidos todos os outros cegos curados, só queremos mencionar três: o primeiro é o cego de nascença do Evangelho, curado com lodo e saliva; o segundo é Tobias que cegou com excremento de andorinhas, e se curou com fel de peixe; o terceiro é o bispo de Laodicéia, ao qual diz o Senhor no Apocalipse: Não sabes que és um infeliz e miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que me compres ouro provado no fogo, para te fazeres rico, e te vestires com roupas brancas, e não se descubra a  tua nudez, e unge os teus olhos com um colírio, para que vejas. Vejamos o que significa cada uma destas coisas.

O cego de nascença significa, no sentido alegórico, o gênero humano, tornado cego nos protoparentes. Jesus restituiu-lhe a vista, quando cuspiu em terra e lhe esfregou os olhos com lodo. A saliva, descendo da cabeça, significa a divindade, a terra, a humanidade; a união da saliva e da terra é a união da natureza humana e divina, com que foi curado o gênero humano. E estas duas coisas significam as palavras do cego sentado à borda do caminho e a clamar: 'Tem piedade de mim (o que diz respeito à divindade), Filho de David' (o que se refere à humanidade).

4. No sentido moral, o cego significa o soberbo. A este respeito lemos no profeta Abdias: 'Ainda que te eleves como a águia e ponhas o teu ninho entre os astros, eu te arrancarei de lá, diz o Senhor'. A águia, voando mais alto que todas as aves, significa o soberbo, que deseja a todos parecer mais alto com as duas asas da arrogância e da vanglória. É a ele que se diz: 'Se entre os astros, isto é, entre os santos, que neste lugar tenebroso brilham como astros no firmamento, puseres o teu ninho, isto é, a tua vida, dali te arrancarei, diz o Senhor'. 

O soberbo, pois, esforça-se por colocar o ninho da sua vida na companhia dos santos. Donde a palavra de Job: 'A pena do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhantes às penas da cegonha e do falcão, isto é, do homem justo'. E nota que o ninho em si tem três caracteres: No interior é forrado de matérias brandas; externamente é construído de matérias duras e ásperas; é colocado em lugar incerto, exposto ao vento. Assim a vida do soberbo tem interiormente a brandura do deleite carnal, mas é rodeada no exterior por espinhos e lenhas secas, isto é, por obras mortas; também está colocada em lugar incerto, exposta ao vento da vaidade, porque não sabe se de tarde ou se de manhã desaparecerá. E isto é o que se conclui: 'De lá eu te arrancarei, ou seja, arrancar-te-ei para te lançar no fundo do inferno, diz o Senhor'. Por isso, escreve-se no Apocalipse: 'Quanto ela se glorificou e viveu em delícias, tanto lhe dai de tormentos'.

5. E nota que este cego soberbo é curado com saliva e lodo. Saliva é o sêmen do pai derramado na lodosa matriz da mãe, onde se gera o homem miserável. A soberba não o cegaria se atendesse ao modo tão triste da sua concepção. Daí a fala de Isaías: 'Considerai a rocha donde fostes tirados. A rocha é o nosso pai carnal; a caverna do lago é a matriz da nossa mãe. Daquele fomos cortados no fétido derrame do sêmen; desta fomos tirados no doloroso parto. Por que te ensoberbeces, portanto, ó mísero homem, gerado de tão vil saliva, criado em tão horrível lago e ali mesmo nutrido durante nove meses pelo sangue menstrual?' Se os cereais forem tocados por esse sangue não germinarão, o vinho novo azedará, as ervas morrerão, as árvores perderão os frutos, a ferrugem corroerá o ferro, enegrecerão os bronzes e se dele comerem os cães, tornar-se-ão raivosos e, com as suas mordeduras, farão enlouquecer as pessoas. 

domingo, 12 de junho de 2016

O PERDÃO DOS PECADOS

Páginas do Evangelho - Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum


Orgulho e preconceito. O Evangelho deste domingo nos fala sobre o perdão dos pecados e destes dois grandes pecados em particular. Que se aninhavam como duas serpentes insidiosas no coração de Simão, o fariseu. Primeiro, o orgulho medido e contado na pose de anfitrião de um jantar que era mero pretexto para uma exposição pública de Jesus, em sua casa e para o seu distorcido juízo particular. Em segundo lugar, o preconceito exposto no pensamento maldoso em relação à mulher pecadora e ao próprio Jesus: 'Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora' (Lc 36, 39).

Em outro coração, no coração da mulher pecadora, também havia muito pecado. Mas o perfume do frasco de alabastro que havia trazido para ungir os pés de Jesus, ungira antes, pela graça divina, o seu coração ambientado no pecado da concupiscência. O sopro da inquietude de outrora tornara-se agora um caudal de arrependimento e de remorso tão profundos, que a virtude aflorara vigorosa e definitiva na lama endurecida de tanto pecado. E tal conversão estupenda nasceu de um amor sem medidas e a medida de tanto amor submergiu de uma vez os escombros de toda uma vida em pecado: 'Por esta razão, eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados porque ela mostrou muito amor. Aquele a quem se perdoa pouco, mostra pouco amor' (Lc 36, 47).

E Jesus, comovido diante de tanto amor de virtude, outrora camuflado em um amor de perdição, faz publicamente não um, mas dois testemunhos da conversão extraordinária daquela mulher: 'Teus pecados estão perdoados (Lc 36, 48) e 'Tua fé te salvou. Vai em paz! (Lc 36, 50). Naquele jantar, naquele evento na casa de Simão, dois corações tangidos pelo pecado encontraram juntos a misericórdia de Deus: um a encontrou no reconhecimento sincero de sua enorme fragilidade e na súplica ardente de perdão ao Pai; o outro foi apenas testemunha dela e a perdeu nos labirintos abismais do próprio orgulho e na teia espinhosa e difusa dos preconceitos humanos.