sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

TEMPO DE ADVENTO - PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Este nada, do qual dizemos que nada passa para a conta, é o que agora havemos de examinar. Pergunto: se nada passa para a conta, parece que também o nada pode ser chamado a Juízo? E se acaso for chamado, escapará da conta o nada por ser nada? Creio que todos estão dizendo que sim. Mas é certo, e de fé, que também o nada, por mais qualificado que seja, há de ser chamado a Juízo, e porque nada passa para a conta, nem o mesmo nada há de passar sem ela, e muito rigorosa. 

Ninguém foi mais qualificado na lei da natureza que Jó, e ninguém mais qualificado na lei da graça que São Paulo: e que dizia de si um e outro? Jó dizia que nada tinha feito contra Deus: Quia nihil impium fecerim. São Paulo dizia que nada havia na sua consciência, de que ela o acusasse: Nihil mihi conscius sum. E este nada de Jó, e este nada de São Paulo escaparam porventura da conta e do Juízo? Eles mesmos confessam, que de nenhum modo. Jó dizia que Deus o tinha posto a questão de tormento, como réu, para averiguar se o que ele tinha por nada, verdadeiramente era nada: Ut quoeras iniquitatem meam, ei peccatum meum scruteris, et scias, quia nihil impium fecerim. E São Paulo dizia, que ele se não dava por justificado do que na sua consciência reputava por nada, porque desse nada não havia ele de ser o juiz, senão Deus: Nihil mihi conscius sum, sed non in hoc justificatus sum; qui autem judicat me, Dominus est. Eis aqui quão manifesta e provada verdade é, que nada passa para a conta, pois até do mesmo nada a há de tomar Deus, e tão estreita. Mas qual é ou pode ser a razão por que onde dois homens tão grandes, tão qualificados e tão santos, como Jó e São Paulo, não reconhecem nada de culpa e para esta haja de arguir Deus e lhes pedir conta? 

A primeira razão é da parte de Deus (a qual só pode ignorar quem o não conhece), porque ainda nas coisas mais interiores nossas, conhece Deus muito mais de nós, do que nós de nós. Quando Cristo na mesa da última Ceia revelou aos apóstolos, que um deles o havia de entregar: Amen dico vobis, quia uns vestrum me traditurus est, diz o evangelista, que muito tristes todos com tal notícia, começou cada um a perguntar: Nunquid ego num, Domine? Porventura, Senhor, sou eu esse? Pedro, André, João e os demais, exceto Judas, bem sabia cada um de si, que não era o traidor, nem tal coisa lhe passara pelo pensamento; pois por que se não deixam estar muito seguros na boa fé da sua lealdade, mas pondo em dúvida o que não duvidavam, pergunta cada um a Cristo se é ele o traidor: Nunquid ego sum? 

Porque ainda que a própria consciência os não acusava, sabiam todos que sabia Cristo mais de cada um deles, do que eles de si. Eles conheciam-se, como homens, Cristo conhecia-os, como Deus. Esse foi o erro e engano de São Pedro, que estava à mesma mesa! Pedro disse, que se fosse necessário daria a vida por Cristo; Cristo pelo contrário disse, que três vezes o havia de negar naquela noite. E por que foi esta a verdade? Porque Pedro falou pelo que ignorava de si, e Cristo pelo que conhecia dele. Hoc illi Christus pracnuntiabat qued in se ipse ignorabat, diz Santo Agostinho. E como o juiz daquele dia conhece mais de nós, do que nós de nós, não é muito que ele nos condene pelo que nós ignoramos, e que no seu juízo seja culpa, o que no nosso parece inocência. 

A segunda razão é da parte nossa porque, assim como Deus sabe tanto de nós, assim nós sabemos muito pouco de Deus; e por isso as nossas razões não podem alcançar as suas. Um dia, depois de Cristo entrar triunfante em Jerusalém, vindo de Betânia para a mesma cidade, teve fome; e como visse ao longe uma figueira verde e copada, encaminhou as passos até ela, para ver se acaso tinha algum fruto: Si quid forte inveniret in ea. Mas porque não achou mais que folhas, lançou-lhe o Senhor maldição de que eternamente não desse fruta: Nunquam ex te fructus nascatur in sempiternum; e no mesmo momento se secou a árvore desde as folhas até as raízes. 

É porém muita de notar neste caso, coma nota São Marcos, que não era tempo de figos: Non enim erat tempus ficorum. Pois se não era tempo de aquela árvore ter fruto, por que a amaldiçoa Cristo, e a seca, não só para aquele ano, senão para sempre? Podia haver causa, ou desculpa mais natural de não ter fruto, que não ser tempo dele? Da árvore a que é comparado o justo, diz Davi, que dará o seu fruto no seu tempo: Et fructum suum dabit in tempore suo. Pois se é louvor nas melhores árvores darem a seu fruto, como foi culpa nesta não se achar nela fruto, quando não era tempo? O mesmo evangelista São Marcos diz que esta sentença de Cristo foi a resposta que o Senhor deu à árvore: Et respondens dixit ei: Jam non amplius in aeternum ex te fructum quisquam manducet

Se a sentença de Cristo foi resposta que deu à árvore, sinal é que a ouviu primeiro, e ela alegou de sua justiça. Reparem aqui os juízes, ou condenadores, que nem a um tronco irracional e insensível condena Deus sem o ouvir. Mas que é a que alegou a árvore? Alegou o mesmo texto do evangelista; e estava. como dizendo maduramente ao Senhor: Eu bem tomara estar carregada de frutos maduros e sazonados, para os oferecer a meu Criador; porém a causa e impedimento natural de me achar sem eles, é por não ser ainda chegado o tempo: Non erat tempus ficorum. E que sem embargo desta réplica, ao parecer tão justificada, a condenasse Cristo, e com condenação eterna: in sempiternum!

Assim foi. Mas com que fundamento, ou justiça? Entre todos os expositores da Escritura, mais letrados e de maior engenho, nenhum houve até agora que desse satisfação cabal a esta dúvida. E a razão de se lhe não achar razão, é porque as razões dos homens não alcançaram as de Deus, e onde não sabe descobrir culpa o juízo humano, a pode achar o divino. Por que não compreende o homem a Deus? Porque Deus é incompreensível. Pois também por isso os juízos humanos não compreendem os divinos, porque os divinos são incompreensíveis: Quam incomprehensibilia judicia ejus! 

Sobre estes dois princípios tão manifestos, um da ciência de Deus para conosco, outro da nossa ignorância para com Deus, fica satisfeita e emudecida toda a admiração de que Deus haja de julgar até o que reputamos por nada, e nesse mesmo nada haja de arguir e achar culpas de que pedir e tomar conta no dia do Juízo. Só resta um escrúpulo, que ainda não acaba de se aquietar, e não menos que acerca da justiça com que Deus nos haja de castigar pelo que não conhecemos. É verdade que Deus sabe de nós o que nós ignoramos de nós, mas essa mesma ignorância nossa não só parece que nos desculpa, mas nos livra de ser pecado o que não conhecemos como tal. Sem vontade não há culpa, sem conhecimento não há vontade; como logo pode ser pecado, e castigado como pecado o que eu não conheço? 

Bem tinha decifrado esta teologia o autor do nosso provérbio: 'Quem ignorantemente peca, ignorantemente vai ao inferno'. Uma só ignorância escusa do pecado, que é a invencível. Mas esta poucas vezes se acha. Os demais não só pecam no pecado, mas na ignorância com que o não conhecem. Não pecaram gravissimamente os judeus na morte de Cristo? E contudo diz São Pedro que eles e os seus príncipes o fizeram ignorantemente: Scio quia per ignorantiam fecistis, sicut et Principes vestri . E o mesmo Cristo quando disse: Pater, ignosce illis, non enim sciunt quid faciunt; justamente alegou por eles a ignorância, e pediu para eles o perdão. 

Se a ignorância os livrara do pecado, não tinham necessidade de perdão; mas pediu-lhes o Senhor o perdão, quando lhe confessou a ignorância, porque tão fora estiveram de ficar isentos do pecado, pela ignorância com que o cometeram, que antes a mesma ignorância lhes acrescentou um pecado sobre outro pecado. Um pecado, porque tiraram a vida. ao Messias não conhecido, e outro pecado, porque o não conheceram, tendo tanta obrigação como evidência para o conhecer. Isto mesmo é o que se vê hoje entre os que conhecem e adoram Cristo; e não por acontecimento raro, senão comumente; nem só nas vidas, serão também nas mortes. 

Quantos pecados vemos, e quão grandes, nem emendados na vida, nem confessados na morte, os quais não só Deus, mas todo o mundo está conhecendo, e só os mesmos que os cometem os não conhecem! Não os conhecem, porque a largueza e relaxação da vida escurece a consciência e cega a alma; não os conhecem, porque o amor-próprio sempre escusa e aligeira o que nos condena; não os conhecem, porque os interesses e conveniências deste mundo trazem consigo o esquecimento do outro; não os conhecem, porque os não querem examinar, nem consultar com quem deviam; não os conhecem, finalmente, porque com ignorância afetada os não querem conhecer para os não emendar: Noluit inteligere, ut bene ageret, vede agora se castigará Deus justamente no dia do Juízo os pecados não conhecidos, se por cometidos merecem um castigo, e por não conhecidos outro maior? 

Porém se até aquele dia estarão desconhecidos e sepultados nas trevas desta maliciosa e ignorante ignorância, então ressuscitarão, sairão à luz, porque o mesmo juiz universal, como diz São Paulo, com os resplendores de sua presença alumiará as consciências de todos os homens, e descobrirá manifestamente a cada um tudo o que nelas estava escondido e às escuras: Quoadusque veniat Domínus, qui et illuminabit abscondita tenebrarum. Por meio desta luz, desenganadas então, e assombradas as mesmas consciências do muito que verão sair debaixo do nada, que não viam ou não quiseram ver, nenhuma terá que estranhar, nem replicar à sentença, ainda que seja de eterna condenação, e todas dirão convencidas: Justus es, Domine, et rectum judicium tuum

(Excertos da obra 'Sermões', do Pe. Antônio Vieira)

O QUE JESUS BUSCOU NESTA TERRA? (II)

OS FRUTOS DE SUA PAIXÃO

Eis o segundo dos grandes interesses de Jesus. Sempre que possamos impedir que se cometa um pecado, por leve que seja, muito faremos pelos interesses de Jesus. Melhor poderemos apreciar a grandeza de um tal serviço, se fizermos esta reflexão: ainda que pudéssemos fechar para sempre o inferno, salvar todas as almas que lá estão sofrendo, despovoar o purgatório, e converter todos os homens do mundo em outros tantos santos como os bem aventurados apóstolos Pedro e Paulo, dizendo a mais leve mentira que fosse, não a deveríamos dizer; pois a glória de Deus sofreria mais com essa pequena mentira do que lucraria com tudo o mais.

Avaliai por isto quanto se faz pelos interesses de Jesus impedindo um pecado mortal! E todavia é isto tão fácil! Se todas as noites, antes de nos deitarmos, pedíssemos à Virgem Santa que oferecesse a Deus o precioso sangue de Seu querido Filho, a fim de se impedir um pecado mortal que ameaçasse ser cometido em qualquer parte do mundo durante a noite; e se renovássemos o mesmo pedido todas as manhãs, para o mesmo fim durante as horas do dia, não há dúvida que semelhante oferta, apresentada por tais mãos, não poderia deixar de obter a graça desejada; e assim cada um de nós poderia provavelmente impedir setecentos e trinta pecados mortais em cada ano.

Suponhamos agora que mil dentre nós querem fazer esta oferta e nela perseveram durante vinte anos; isto, que nenhum trabalho nos daria, seria bem meritório: teríamos impedido mais de quatorze milhões de pecados mortais. E se todos os membros da Confraria seguissem este exemplo, teríamos que multiplicar este número por dez. Ah! Deste modo, como os interesses de Jesus progrediriam no mundo, e que alegria, que felicidade nos não proporcionaríamos a nós mesmos!

Assim também todas as vezes que possamos resolver alguém, que o necessite, a confessar-se, ainda que não tenha a acusar senão pecados veniais, aumentamos o fruto da Paixão do nosso Redentor. Cada ato de contrição que qualquer pessoa faça, a instâncias nossas; cada oração que nós façamos com o fim de lhe alcançar esta graça, acrescenta os mesmos frutos. Cada nova austeridade, cada ligeira penitência que promovamos, dá o mesmo resultado. O mesmo aconteceria com os nossos esforços para fazermos apreciar a comunhão frequente.

Quando pudermos conseguir que alguém tome parte nas nossas devoções à Paixão de Nosso Senhor, que a leia ou a medite, daremos impulso aos interesses de Jesus. Disse algum santo (e, se me não falha a memória, foi Alberto o Grande) que uma só lágrima vertida pelos sofrimentos do nosso doce Salvador era mais preciosa aos Seus olhos, que um ano inteiro de jejum a pão e água. O que não seria, pois, se nós pudéssemos interessar os outros em juntarem as suas lágrimas às nossas, e unirem-se conosco no sentimento de uma terna piedade pela Paixão de Jesus! Oh! Quão grandes são os frutos de uma simples oração! Suavíssimo Jesus! Porque somos nós tão insensíveis, tão frios? Acendei em nós esse fogo que viestes trazer à terra!

(Excertos da obra 'Tudo por Jesus', do Pe. Frederico William Faber) 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O QUE JESUS BUSCOU NESTA TERRA? (I)

 A GLÓRIA DE DEUS

Estudando o nosso Divino Salvador, tal como nos é representado nos Santos Evangelhos, veremos que não há nada, se nos é permitido arriscar esta expressão, nada mais semelhante a uma paixão n’Ele dominante que o Seu tão vivo, tão ardente desejo da glória de Seu Pai. Desde o dia em que, na idade de doze anos, deixou Maria para ficar em Jerusalém, até à Sua última palavra na Cruz, essa dedicação à glória de Deus sobressai em cada página do livro sagrado. Assim como d’Ele se disse, numa ocasião, que o zelo da casa de Deus O devorava, assim nós podemos dizer que era devorado por uma fome e sede contínuas da glória de Seu Pai.

Era como se se houvesse perdido na terra a glória de Deus, e Ele houvesse vindo para a encontrar; e quão oprimido trouxe o coração enquanto a não encontrou! Foi este o exemplo que nos deu; e a Sua intenção, dando-nos a graça, é que a empreguemos em glorificar Seu Pai que está nos céus. Agora, lançando a vista pelo mundo e em volta de nós, poderemos deixar de ver quanto a glória de Deus está perdida na terra? O interesse de Jesus pede que a procuremos e que a encontremos. Sem falar desses escândalos públicos que dão os grandes pecadores, não será doloroso ver como Deus é esquecido, completamente esquecido pela maior parte dos homens?

Vivem como se Deus não existisse. Não se revoltam precisamente contra Ele, mas não pensam n’Ele, desconhecem-no, Deus é neste mundo, que Ele fez por Suas próprias mãos, como um objeto inoportuno. Foi posto de parte tão despreocupadamente como se faria a uma estátua antiga que se houvesse tornado caricata. Os sábios e os homens de estado estão de acordo neste ponto; a gente de negócios e os financeiros entenderam que era acertadíssimo nada dizerem a respeito de Deus, pois é difícil falar d’Ele ou mesmo ocupar n’Ele apenas o espirito, sem nos sentirmos dispostos o conceder-Lhe demasiado.

Ali está um obstáculo terrível, e poderíamos dizer um obstáculo insuperável, se não fosse a graça de Deus, para os interesses de Jesus. Oh! Quanto nos dilacera o coração semelhante espetáculo, e nos faz suspirar por uma outra vida! Pois, que fazer em tão desesperada situação? Mas alguma coisa devemos tentar. Quanto não poderão fazer os rosários devotamente rezados e as medalhas bentas? E não é infinito o poder de uma só missa? Depois, confessamo-lo com as lágrimas nos olhos, há um grande número de pessoas com reputação de piedosas, que estão longe de dispensarem à glória de Deus um quinhão suficientemente avultado: há muitas pessoas que manifestam devoção, e que aliás não lhe querem dar o primeiro lugar em todas as coisas.

Têm necessidade de luz para melhor conhecerem a glória de Deus; falta-lhes discernimento para descobrirem armadilhas do mundo e do demônio sob o véu da moderação e da prudência, por meio do qual estes dois inimigos de Deus se esforçam pelo privar da Sua glória; não têm coragem para afrontar a opinião do mundo, e firmeza para pôr sempre a sua vida em harmonia com a sua crença. Pobre gente! Convém sem dúvida aos interesses de Jesus, que essas pessoas se vejam a si mesmas e a tudo que as rodeia, tais quais são.

Aqui encontramos, pois, mais uma obra a executar. Oremos por todas as pessoas virtuosas, principalmente por aquelas que trabalham para o ser, a fim de que conheçam o que reverte em glória de Deus, e o que Lhe é oposto. Oh! Quantas perdas nos causa todos os dias esta falta de discernimento! Depois, existem ordens religiosas que, cada uma de sua maneira e conforme o fim da sua instituição, vão trabalhando com a benção da Igreja, na glória de Deus. Há bispos e padres que com uma singular perseverança e perfeição admirável dedicam os seus esforços a este único fim. Qual é também o alvo de uma infinidade de associações e confrarias que existem, senão a glória de Deus?

Temos de sofrer males, afrontar perigos e suportar escândalos; a sorte da Igreja é curvar hoje a cabeça ante o mundo e nele reinar amanhã. Ora, em tudo isto tem Jesus os Seus interesses, e é dever nosso tratar deles. Meia dúzia de homens que percorressem o mundo procurando somente a glória de Deus, poderiam transportar montanhas. É esta a promessa feita aos homens animados de fé viva. Por que não havemos de ser nós esses homens?

(Excertos da obra 'Tudo por Jesus', do Pe. Frederico William Faber)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

ANTÍFONAS DO Ó

As Antífonas do Ó são sete orações especialmente cantadas durante o tempo do Advento, particularmente ao longo da semana que antecede o Natal. A autoria das antífonas, que remontam aos séculos VII e VIII, tem sido comumente atribuída ao papa Gregório Magno. São sete orações extremamente curtas, sempre iniciadas pela interjeição Ó, correspondendo a sete diferentes súplicas manifestadas a Jesus Cristo, na expectativa do nascimento do Menino - Deus entre os homens, que é invocado sob sete diferentes títulos messiânicos tomados do Antigo Testamento. 

17 de dezembro

O Sapientia
quæ ex ore Altissimi prodisti,
attingens a fine usque ad finem,
fortiter suaviter disponens omnia:
Veni ad docendum nos viam prudentiae   


Ó Sabedoria
que saístes da boca do altíssimo
atingindo de uma a outra extremidade
e tudo dispondo com força e suavidade:
Vinde ensinar-nos o caminho da prudência 

18 de dezembro

O Adonai
et Dux domus Israel,
qui Moysi in igne flammæ rubi apparuisti
et ei in Sina legem dedisti:
Veni ad redimendum nos in brachio extento 


Ó Adonai
guia da casa de Israel,
que aparecestes a Moisés na chama do fogo
no meio da sarça ardente e lhe deste a lei no Sinai
Vinde resgatar-nos pelo poder do Vosso braço. 

19 de dezembro

O Radix Jesse
qui stas in signum populorum,
super quem continebunt reges os suum,
quem gentes deprecabuntur:
Veni ad liberandum nos; jam noli tardare 


Ó Raiz de Jessé
erguida como estandarte dos povos,
em cuja presença os reis se calarão
e a quem as nações invocarão,
Vinde libertar-nos; não tardeis jamais. 

20 de dezembro

O Clavis David
et sceptrum domus Israel:
qui aperis, et nemo claudit;
claudis et nemo aperit:
Veni, et educ vinctum de domo carceris,
sedentem in tenebris et umbra mortis 


Ó Chave de Davi
o cetro da casa de Israel
que abris e ninguém fecha;
fechais e ninguém abre:
Vinde e libertai da prisão o cativo
assentado nas trevas e à sombra da morte. 

21 de dezembro

O Oriens
splendor lucis æternæ, et sol justitiæ
Veni et illumina sedentes in tenebris
et umbra mortis. 


Ó Oriente
esplendor da luz eterna e sol da justiça
Vinde e iluminai os que estão sentados
nas trevas e à sombra da morte. 

22 de dezembro

O Rex gentium
et desideratus earum
lapisque angularis,
qui facis utraque unum:
Veni et salva hominem quem de limo formasti 


Ó Rei das nações
e objeto de seus desejos,
pedra angular
que reunis em vós judeus e gentios:
Vinde e salvai o homem que do limo formastes. 

23 de dezembro

O Emmanuel,
Rex et legifer noster,
exspectatio gentium,
et Salvador earum:
Veni ad salvandum nos, Domine Deus noster 


Ó Emanuel,
nosso rei e legislador,
esperança e salvador das nações,
Vinde salvar-nos,
Senhor nosso Deus.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

ASSIM FALOU O PADRE PIO


'Há, além disso, três virtudes que aperfeiçoam a pessoa devota no que diz respeito ao controle dos seus próprios sentidos. Estas são: a modéstia, a continência e a castidade. Em virtude da modéstia, a pessoa devota governa todos os seus atos exteriores. Com razão, então, São Paulo recomendou esta virtude a todos e declarou como é necessária e como se isso não bastasse, ele considera que esta virtude deveria ser óbvia para todos. Pela continência, a alma exercita a retenção de todos os sentidos: visão, tato, paladar, olfato e audição. Pela castidade, uma virtude que enobrece a nossa natureza e faz com que ela seja semelhante à dos Anjos, nós suprimimos a nossa sensualidade e a afastamos dos prazeres proibidos. Este é o retrato magnífico da perfeição cristã. Feliz aquele que possui todas estas belas virtudes, todas elas frutos do Espírito Santo que habita dentro de si. Essa alma não tem nada a temer e vai brilhar no mundo como o sol no céu'.

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Padre Pio não tolerava qualquer imodéstia no confessionário e sistematicamente despachava de imediato as mulheres que julgasse estarem indevidamente vestidas. As pessoas o censuravam, então, perguntando por que ele agia desta forma. 'Vocês não sabem', respondia ele 'a dor que me custa fechar a porta [do confessionário] a alguém. O Senhor tem me forçado a fazê-lo. Eu não chamo ninguém, nem recuso a ninguém. Existe Alguém que as chama, e que também as recusa. Eu sou apenas a Sua ferramenta inútil'.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

TEMPO DE ADVENTO - A PAZ DE ESPÍRITO

A paz, fruto do Espírito


Depois de refletir sobre a paz como dom de Deus em Cristo Jesus para toda a humanidade e sobre a paz como tarefa pela qual trabalhar, vamos agora falar da paz como fruto do Espírito. São Paulo coloca a paz em terceiro lugar entre os frutos do Espírito: 'O fruto do Espírito', diz ele, 'é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio' (Gl 5, 22).

Descobrimos o que são os 'frutos do Espírito' ao analisar, justamente, o contexto dessa ideia. O contexto é o da luta entre a carne e o espírito, isto é, entre o princípio que regula a vida do homem velho, cheio de concupiscências e desejos terrenos, e o que regula a vida do homem novo, guiado pelo Espírito de Cristo. Na expressão 'frutos do Espírito', 'Espírito' não indica o Espírito Santo em si mesmo, mas o princípio da nova vida, ou 'o homem que se deixa guiar pelo Espírito'.

Diferentemente dos carismas, que são obra exclusiva do Espírito, que os dá a quem quer e quando quer, os frutos são o resultado de uma colaboração entre a graça e a liberdade. Eles são, portanto, o que hoje queremos dizer por virtude, se dermos a essa palavra o sentido bíblico de um agir habitual 'segundo Cristo', ou 'segundo o Espírito', em vez do sentido filosófico aristotélico de um agir habitual 'de acordo com a reta razão'. Além disso, os dons do Espírito são diferentes de pessoa para pessoa, enquanto os frutos do Espírito são os mesmos para todos. Nem todos na Igreja podem ser apóstolos, profetas, evangelistas; mas todos indistintamente, do primeiro ao último, podem e devem ser caridosos, pacientes, humildes, pacíficos.

A paz fruto do Espírito é, portanto, diferente da paz como dom de Deus e da paz como tarefa pela qual trabalhar. Ela indica a condição habitual (habitus), o estado de ânimo e o estilo de vida de quem, mediante o esforço e a vigilância, chegou a certa pacificação interior. A paz fruto do Espírito é a paz do coração. E é dessa coisa tão bela e tão desejada que vamos falar hoje. Ela é diferente, sim, da tarefa de sermos pacificadores, mas nos ajuda maravilhosamente a atingir este objetivo. O título da mensagem do papa João Paulo II para a Jornada Mundial da Paz de 1984 era 'A paz nasce de um coração novo'. E Francisco de Assis, ao mandar os seus frades para todo o mundo, lhes recomendava: 'A paz que anunciais com a boca, tende-a primeiro nos vossos corações'.

A paz interior na tradição espiritual da Igreja



Alcançar a paz interior ou do coração foi um empenho de todos os grandes buscadores de Deus ao longo dos séculos. No Oriente, a começar pelos Padres do deserto, esse empenho se concretizou no ideal da hesychia, da quietude, que ousou propor uma perspectiva altíssima, se não até sobre-humana: retirar da mente todo pensamento, retirar da vontade todo desejo, retirar da memória toda lembrança, para deixar à mente só o pensamento de Deus, à vontade só o desejo de Deus e à memória só a lembrança de Deus e de Cristo (a mneme Theou). Uma luta titânica contra os pensamentos (logismoi), não só os maus, mas também os bons. Exemplo extremo desta paz obtida com uma guerra feroz veio a ser, na tradição monástica, o monge Arsênio, que, à pergunta 'o que devo fazer para me salvar?', ouviu a resposta de Deus: 'Arsênio, foge, cala e mantém-te em quietude' [literalmente, pratica a hesychia].

Mais tarde, essa corrente espiritual dará espaço à prática da oração do coração, ou oração ininterrupta, ainda hoje amplamente praticada na cristandade oriental e da qual 'os contos de um peregrino russo' representam a expressão mais fascinante. No início, porém, ela não se identificava com essa prática. Era uma maneira de se chegar à perfeita tranquilidade do coração; não uma tranquilidade vazia, um fim em si mesma, mas uma tranquilidade plena, semelhante à dos bem-aventurados, um começar a viver na terra a condição dos santos no céu.

A tradição ocidental perseguiu o mesmo ideal, mas de outras maneiras, acessíveis tanto àqueles que praticam a vida contemplativa quanto aos que praticam uma vida ativa. A reflexão começa com Agostinho. Ele dedica um livro inteiro da Cidade de Deus a refletir sobre as diversas formas da paz, dando a cada uma delas uma definição que fez escola até a nossa época, incluindo a da paz como tranquillitas ordinis, a tranquilidade da ordem. Mas é principalmente com o que diz nas Confissões que ele influenciou os traços do ideal da paz do coração.

Ele dirige a Deus, no início do livro e como que de passagem, palavras destinadas a ter uma ressonância imensa em todo o pensamento posterior: 'Fizeste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti'. Mais adiante, ele ilustra esta afirmação com o exemplo da gravidade. 'Na boa vontade está a nossa paz. Todo corpo, devido ao seu peso, tende ao lugar que lhe é próprio. Um peso não puxa somente para baixo, mas para o lugar que lhe é próprio. O fogo tende ao alto, a pedra ao chão, impulsionados ambos pelo seu peso a buscar o seu lugar… O meu peso é o meu amor; ele me leva para onde eu me levo'.

Enquanto estamos nesta terra, o lugar do nosso repouso é a vontade de Deus, o abandono aos seus quereres. 'Não se acha descanso se não se consente à vontade de Deus sem resistência'. Dante Alighieri resumirá este pensamento agostiniano em seu célebre verso: 'Na sua vontade está a nossa paz'. Só no céu é que esse lugar de repouso será Deus mesmo. Agostinho termina, por isto, a sua abordagem do tema da paz fazendo um elogio apaixonado à paz da Jerusalém do céu, que vale a pena ler para nos inflamarmos nós também do seu desejo: 'Há também a paz final … Naquela paz não é necessário que a razão domine os impulsos, porque eles não existirão, mas Deus dominará o homem, a alma espiritual o corpo e será tão grande a serenidade e a disponibilidade à submissão quanto é grande a delícia de viver e dominar. E então, em todos e em cada um, esta condição será eterna e teremos a certeza de que é eterna e, por isso, a paz de tal felicidade, ou seja, a felicidade de tal paz, será o sumo bem'.


A esperança desta paz eterna marcou toda a liturgia dos fiéis defuntos. Expressões como 'paz', 'na paz de Cristo', 'descanse em paz' são as mais frequentes nos túmulos dos cristãos e nas preces da Igreja. A Jerusalém celeste, com alusão à etimologia do nome, é definida como beata pacis visio, bem-aventurada visão de paz.

O caminho da paz



A concepção de Agostinho sobre a paz interior como adesão à vontade de Deus é confirmada e aprofundada pelos místicos. Meister Eckhart escreve: 'Nosso Senhor diz: ‘Somente em mim tereis a paz’ (cf. Jo 16,33). Quanto mais se penetra em Deus, mais se penetra na paz. Quem já tem o seu ‘eu’ em Deus tem a paz; quem tem o seu ‘eu’ fora de Deus não tem a paz'. Não se trata, pois, apenas de aderir à vontade de Deus, mas de não ter outra vontade senão a de Deus, de morrer de todo à própria vontade. A mesma coisa se lê, na forma de experiência vivida, em Santa Ângela de Foligno: 'A divina bondade, de duas vontades, fez só uma, de modo que não posso querer a não ser como Deus quer … Não me encontro mais na condição costumeira, mas fui conduzida a uma paz em que estou com Ele e contente de tudo'.

Outro desenvolvimento, mais ascético do que místico, é o de Santo Inácio de Loyola com a sua doutrina da 'santa indiferença'. Ela consiste em colocar-se em estado de total disponibilidade para acolher a vontade de Deus, renunciando, desde o começo, a toda preferência pessoal, como uma balança pronta a se inclinar para o lado que tiver o maior peso. A experiência da paz interior se torna assim o critério principal em todo discernimento. Deve ser considerada em conformidade com o querer de Deus a escolha que, após prolongada ponderação e oração, for acompanhada de maior paz do coração.

Nenhuma corrente espiritual saudável, porém, nem no Oriente, nem no Ocidente, jamais pensou que a paz do coração seja uma paz barata e sem esforço. A seita do 'livre Espírito' tentou argumentar o contrário na Idade Média, assim como o movimento quietista no século XVII, mas ambos foram condenados pela hierarquia e pela consciência da Igreja. Para manter e aumentar a paz do coração é preciso domar, momento a momento, em especial no início, uma revolta: a da carne contra o espírito.

Jesus tinha dito de mil maneiras: 'Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo'; 'quem ama a própria vida a perderá, mas quem perder a sua vida a encontrará' (Mc 8, 34). Existe uma falsa paz que Jesus diz que veio para tirar, e não para trazer à terra (cf. Mt 10, 34). Paulo traduzirá tudo isso em uma espécie de lei fundamental da vida cristã: 'Os que vivem segundo a carne gostam do que é carnal; os que vivem segundo o espírito apreciam as coisas que são do espírito. Ora, a aspiração da carne é a morte, enquanto a aspiração do espírito é a vida e a paz. Porque o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, nem o pode. Os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus ... Se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis' (Rm 8, 5-13).

A última frase contém um ensinamento importantíssimo. O Espírito Santo não é a recompensa para os nossos esforços de mortificação, mas o que os torna possíveis e frutuosos; não só no final, mas também no início do processo: 'Se, mediante o Espírito, fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis'. Neste sentido é que se diz que a paz é fruto do Espírito; é o resultado do nosso esforço, possibilitado pelo Espírito de Cristo. Uma mortificação voluntarista e confiante demais em si mesma pode se tornar, ela própria, uma obra da carne (e se tornará com frequência).

Entre aqueles que ilustraram ao longo dos séculos este caminho para a paz do coração, destaca-se, pela concretude e pelo realismo, o autor da Imitação de Cristo. Ele imagina uma espécie de diálogo entre o Divino Mestre e o discípulo, como entre um pai e seu filho: Mestre - 'Meu filho, hei de ensinar-te o caminho da paz e da verdadeira liberdade' ; Discípulo - 'Faze, Senhor, como dizes; de bom grado escutarei teus ensinamentos'; Mestre - 'Cuida, meu filho, de fazer a vontade dos outros em vez da tua própria. Escolhe sempre ter menos que mais. Procura sempre ocupar o lugar mais baixo e ser inferior a todos. Deseja sempre, e ora, para que em ti se faça inteiramente a vontade de Deus. O homem que assim procede entra no reino da paz e da tranquilidade'.

Outro meio sugerido ao discípulo é evitar a vã curiosidade: 'Filho, não sejas curioso; não te afanes inutilmente. Que te importa aquilo ou isto? ‘Tu, segue-me’ (Jo 21,22). Que te importa que tal pessoa seja assim ou diferente, ou que a outra aja e diga isso ou aquilo? Não terás que responder pelos outros, mas renderás contas de ti mesmo. Eis que eu conheço a todos, vejo tudo o que acontece sob o sol e sei a condição de cada um: o que pensa, o que quer, a que mira a sua intenção. Tudo deve ser, portanto, colocado em minhas mãos. E tu, mantém-te em paz segura, deixando os outros se agitarem a seu critério: o que eles fizerem recairá sobre eles, pois a mim não podem enganar' [Imitação de Cristo].

'Paz porque em ti tem confiança'



Sem a pretensão de substituir esses meios ascéticos tradicionais, a espiritualidade moderna enfatiza outros meios mais positivos para se manter a paz interior. O primeiro é a confiança e o abandono em Deus. 'Tu lhe assegurarás a paz, paz porque em ti tem confiança', lemos em Isaías (26, 3). Jesus, no Evangelho, motiva o seu convite a não temermos e a não nos inquietarmos com o amanhã no fato de que o Pai Celestial sabe do que precisamos, ele que alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo (cf. Mt 6, 5).

Esta é a paz de que Santa Teresa do Menino Jesus se tornou mestra e modelo. Um exemplo heroico desta paz que vem da confiança em Deus também vem do mártir do nazismo Dietrich Bonhöffer. Preso e em aguardo da execução, ele escreveu alguns versos que se tornaram um hino litúrgico em muitos países anglo-saxônicos: 'Envoltos em maravilha por forças amigas, esperamos confiantes o porvir. Deus está conosco de noite e de manhã, estará conosco em cada novo dia'.

Um estudioso franciscano, Eloi Leclerc, em seu livro A sabedoria de um pobre, relata como Francisco de Assis encontrou a paz num momento de profunda perturbação. Ele estava entristecido com a resistência de alguns ao seu ideal e sentia o peso da responsabilidade pela numerosa família que Deus lhe tinha confiado. Partiu de Verna e foi a São Damião para se encontrar com Clara. Clara o escutou e, para dar-lhe ânimo, apresentou-lhe um exemplo: 'Suponhamos que uma de nossas irmãs viesse pedir-me desculpas por ter quebrado um objeto. Bem, eu lhe faria, sem dúvida, uma observação e lhe daria, como de costume, uma penitência. Mas se ela viesse dizer-me que havia posto fogo ao convento e que tudo foi queimado ou quase, creio que, neste caso, eu nada teria a dizer. Eu me surpreenderia perante um evento maior que eu. A destruição do convento é um fato grande em demasia para que eu possa ficar por ele profundamente perturbada. O que o próprio Deus construiu não pode basear-se na vontade ou no capricho de uma criatura humana. O edifício de Deus se alicerça em bases muito mais sólidas'.

Francisco compreendeu a lição e respondeu: 'O porvir desta grande família religiosa que o Senhor confiou aos meus cuidados constitui um fato importante demais para que possa depender de mim sozinho e das minhas frágeis forças e para que eu fique por ele perturbado. É um fato de Deus. Bem o disseste. Mas reza para que esta palavra floresça em mim como semente de paz'. O Pobrezinho retornou resserenado para junto dos seus, repetindo para si mesmo ao longo do caminho: 'Deus existe e isto basta! Deus existe e isto basta!'. Não é um episódio historicamente documentado, mas interpreta bem, no estilo dos Fioretti, um momento da vida de Francisco.

Nós nos aproximamos do Natal e eu gostaria de destacar o que considero o meio mais eficaz para conservarmos a paz do coração: a certeza de sermos amados por Deus. 'Paz na terra aos homens por Deus amados', ou, literalmente, 'Paz na terra aos homens do (divino) beneplácito (eudokia)' (Lc 2, 14). A Vulgata traduzia esse termo como 'boa vontade' (bonae voluntatis), entendendo com ela a boa vontade dos homens, ou os homens de boa vontade. Mas é uma interpretação errada, hoje reconhecida por todos como tal, embora, por deferência à tradição, o Glória da Missa continue dizendo, pelo menos em alguns idiomas, 'e paz na terra aos homens de boa vontade'. As descobertas de Qumran trouxeram a prova definitiva. 'Homens, ou filhos, da benevolência' é como são chamados, em Qumran, os filhos da luz, os eleitos da seita. Trata-se dos homens que são objeto da benevolência divina.

Para os essênios de Qumran, 'o divino beneplácito' discrimina; aplica-se somente aos adeptos da seita. No Evangelho, 'os homens da divina benevolência' são todos os homens, sem exceção. É como dizer 'os homens nascidos de mulher': não se quer dizer que alguns nasceram de mulher e outros não; o que se quer é caracterizar a todos os homens de acordo com a sua maneira de vir ao mundo. Se a paz fosse concedida aos homens pela sua 'boa vontade', seria limitada a poucos, àqueles que a merecem; mas, como ela é concedida pela boa vontade de Deus, pela graça, é oferecida a todos.

Assueta vilescunt, diziam os latinos; as coisas repetidas muitas vezes perdem vigor, e isto acontece, infelizmente, também com as palavras de Deus. Temos que fazer com que isto não aconteça neste Natal. As palavras de Deus são como fios elétricos desencapados. Se os tocamos, levamos um choque; já se não houver corrente ou estivermos de luvas isolantes, podemos manejá-los como quisermos e não receberemos choque algum. O poder e a luz do Espírito estão sempre em ato, mas depende de nós recebê-los, por meio da fé, do querer e da oração. Quanta força, quanta novidade continham aquelas palavras, 'Paz na terra aos homens amados pelo Senhor', quando foram proclamadas pela primeira vez! Devemos renovar o nosso ouvido, como o ouvido dos pastores que as ouviram pela primeira vez e, 'sem demora', se puseram a caminho.

São Paulo nos indica um modo de superar todas as nossas ansiedades e reencontrar toda vez a paz de coração, mediante a certeza de sermos amados por Deus. Escreve ele: 'Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas? ... Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? ... Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou' (Rm 8, 31-37). 

A perseguição, os perigos, a espada não são uma lista abstrata ou imaginária; são os motivos de angústia que ele experimentou, de fato, na vida; ele os descreve amplamente na segunda carta aos coríntios (2 Cor 11, 23). O apóstolo os revisa na mente e constata que nenhum é forte o suficiente para resistir à comparação com o pensamento do amor de Deus. Implicitamente, o Apóstolo nos convida a fazer o mesmo: olhar para a nossa vida tal como ela se apresenta, trazer à tona os medos e motivos de tristeza aninhados nela e que não nos deixam aceitar serenamente a nós mesmos: aquele complexo, aquele defeito físico ou moral, aquele insucesso, aquela lembrança dolorosa; expor tudo isso à luz do pensamento de que Deus nos ama e concluir com o Apóstolo: 'Em todas estas coisas, posso ser mais do que vencedor, pela virtude daquele que me amou'.

Da sua vida pessoal, o Apóstolo passa, logo em seguida, a considerar o mundo ao seu redor. Ele escreve: 'Pois estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem outra qualquer criatura nos poderá apartar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor' (Rm 8, 37-39).

Ele observa o 'seu' mundo, com os poderes que o tornavam ameaçador: a morte com o seu mistério, a vida presente com as suas seduções, as forças astrais ou infernais que incutiam tanto terror ao homem velho. Somos convidados, nós também, a fazer o mesmo: olhar, à luz do amor de Deus, para o mundo que nos rodeia e que nos faz ter medo. O que Paulo chama de 'altura' e 'profundidade' são para nós o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o universo e o átomo. Tudo está pronto para nos esmagar; o homem é fraco e sozinho num universo muito maior do que ele e, além disso, ainda mais ameaçador agora, com as atuais descobertas científicas, as guerras, as doenças incuráveis, o terrorismo... Mas nada disso pode nos separar do amor de Deus. Deus existe e isto basta!

Santa Teresa de Ávila nos deixou uma espécie de testamento, que nos convém repetir toda vez que precisarmos reencontrar a paz do coração: 'Nada te perturbe, nada te assuste; tudo passa, Deus não muda; a paciência consegue tudo; a quem tem Deus, nada falta. Só Deus basta'. Que o Natal de nosso Senhor, Santo Padre, veneráveis padres, irmãos e irmãs, seja realmente para nós, como dizia São Leão Magno, 'o natal da paz'! Das três dimensões da paz: a paz entre o céu e a terra, a paz entre todos os povos e a paz em nossos corações.

(Pregações do Advento, do Pe Raniero Cantalamessa, tradução de Zenit)

domingo, 13 de dezembro de 2015

'QUE DEVEMOS FAZER?'

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo do Advento


Neste domingo, Terceiro Domingo do Advento, mais uma vez, a mensagem profética que ressoa pelos tempos vem da boca de João Batista. Em Betânia, além do Jordão, diante da expectativa da chegada do Messias e da interrogação dos sacerdotes e dos levitas sobre a sua identidade, João Batista foi sucinto e categórico em suas respostas: 'Eu não sou o Cristo'. 'Eu não sou Elias'. 'Eu não sou o Profeta'. E sintetiza tudo: 'Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias' (Lc 3, 16). Eis o primado de João: Jesus vem, a sua Vinda é iminente: alegrai-vos todos porque o céu vai tocar a terra e fazer novas todas as coisas.

Eis o Advento do Senhor: depois da vigilância e da conversão, vivenciados nos domingos anteriores, segue agora o ressoar das trombetas da legítima alegria cristã neste terceiro domingo. Sim, alegria cristã, alegria plena do amor de Cristo, proclamada nas palavras do Profeta Sofonias: 'alegra-te e exulta de todo o coração, cidade de Jerusalém!' (Sf 3, 14) e também na Carta de São Paulo aos Filipenses: 'Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos' (Fl 4, 4). Neste deleite da graça, esparge-se a luz do entendimento da fé e amolda-se suavemente a paz divina ao coração humano que palpita inquieto enquanto não repousar definitivamente em Deus.

Eis, então, a pergunta das multidões ansiosas, confiantes, vigilantes, convertidas - a João Batista: 'Que devemos fazer?' (Lc 3, 10). Assim perguntaram os levitas e os sacerdotes, assim perguntaram os soldados, assim perguntaram os cobradores de impostos. E, assim, perguntamos nós e os homens de todos os tempos, no sentido de experimentarmos verdadeiramente a alegria do Senhor, a paz definitiva, a fé que move montanhas e inquieta os corações humanos. A resposta de Jesus é essa: 'Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei' (Jo 15,12). Eis aí a alegria cristã em plenitude, porta que nunca se abre para dentro, à espera que o bem se realize e a luz de fora inunde o nosso interior de graças e bênçãos; não, esta travessia de santidade impõe abrir o nosso coração ao outro, amor de doação que se nutre do bem que se faz e não do bem que se usufrui. Conhecedores desta verdade, poderemos efetivamente compreender, nos umbrais da verdadeira alegria cristã no Senhor, as palavras testamentais de Paulo: 'não sou eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim' (Gal 2,20).