quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: SOFRIMENTOS PURIFICADORES, REDENTORES E APOSTÓLICOS


Na minha opinião, o que torna os nossos sofrimentos do Purgatório tão longos e aterrorizantes são as faltas conscientes, as infidelidades voluntárias cometidas direta ou indiretamente, as resistências, tudo enfim que distorce a conformidade entre a nossa vontade corrompida e a vontade de Deus. Nas almas que conseguem atingir um grau suficientemente elevado de união mística, o despojamento de tudo o que foi criado pode ser feito na terra com uma impressão de sacrifício muito dolorosa por duas razões. 

Em primeiro lugar, por mais purificada e santa que uma alma possa nos parecer, ela ainda pode ter, aos olhos de Deus e aos seus próprios olhos, vínculos humanos que a retêm e aos quais deve renunciar a todo o custo. Os sábios modernos nos dizem que, em cada centímetro cúbico de água, existem de sete a oito bilhões de micro-organismos que, entretanto, são invisíveis para nós. A mesma coisa acontece espiritualmente, porque não vemos aqueles átomos que, aos olhos da santidade de Deus, parecem montanhas, e realmente o são: 'Pouco importa que um pássaro esteja preso por um fio delgado ou por um fio grosso, porque, apesar de delgado, enquanto não se desfizer dele, estará tão preso para voar como preso por um fio grosso' [São João da Cruz], tradução para a linguagem e para o sofrimento humano do horror que tem Deus pelo menor pecado.

Num segundo caso, a alma pode estar realmente purificada. E mesmo que sofra, não se sente separada de Deus. A profunda alegria que a domina não pode perder-se. Essa alegria coexiste com a dor mais intensa. É como quando Jesus conservava a visão beatífica no Getsêmani e na Cruz. As provações, sofrimentos e tentações de todos os tipos que sobrevêm já não são mais purificadoras, mas redentoras. Vistas assim, têm a aparência de provas e tentações para iniciantes, mas são apostólicas, pois são almas que se oferecem pelas outras almas e que sofrem exatamente o que a alma pecadora ou iniciante tenderia a sofrer naquele estado. É este o caso de São Vicente de Paulo que padeceu por dois anos, segundo creio, uma terrível tentação contra a fé. Ou ainda a última provação de Santa Teresa do Menino Jesus, que resultou em um novo florescimento de fé no mundo, sendo que ela certamente já estava purificada. Ou a da Venerável Maria da Encarnação, quando se ofereceu por seu filho e por outra alma. Este brilho apostólico é verdadeiro, mas não é infalivelmente atendido para uma dada pessoa em particular.

Segundo São João da Cruz, a alma elevada ao matrimônio espiritual atingiu o estado da perfeição, embora ainda possa aumentar a caridade como homem que alcançou o seu pleno desenvolvimento. Pode ainda merecer e produzir frutos cada vez mais saborosos e abundantes, porém, a sua purificação está consumada, e o arcabouço interno das graças, das virtudes e dos dons terminou.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)