sábado, 9 de outubro de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XVII)

Capítulo XVII

Dores do Purgatório - Bem aventurada Quinziani  - O Imperador Maurício

Na vida da bem-aventurada Stephana Quinziani, freira dominicana (Auctore Franc. Seghizzo; cf. Merv., 42; Marchese, 2 de janeiro), é feita menção a uma irmã chamada Paula, que faleceu no convento de Mântua, após um longa vida de virtude eminente. O corpo foi levado para a igreja e exposto no coro diante os religiosos. Durante a recitação do ofício, a bem aventurada Quinziani ajoelhou-se próximo ao esquife, recomendando a Deus as almas das religiosas falecidas, que lhe eram muito queridas. 

De súbito, a falecida deixou cair o crucifixo que havia sido colocado entre as mãos e, estendendo o braço esquerdo, agarrou com força a mão direita da Irmã Quinziani, como o esforço final feito a  uma mão amiga de um pobre doente sob o ardor escaldante da febre. Assim permaneceu por um tempo considerável e então, removendo o braço, rearrumou-se outra vez no caixão. 

As religiosas, perplexas diante tal prodígio, pediram uma explicação à Irmã Quinziani. Ela respondeu então que, enquanto a falecida pressionava a sua mão, uma voz inarticulada havia falado ao fundo do seu coração, dizendo: 'Ajudai-me, querida irmã, socorrei-me na terrível tortura que sofro. Ó se conhecêsseis a severidade do Juiz que deseja todo o nosso amor, o grau de expiação que nos exige pelas menores faltas antes de nos admitir à recompensa! Se soubésseis o quão puros devemos ser para ver a face de Deus! Rezai, rezai e fazei penitência por mim, que não posso mais me ajudar!'. A bem aventurada Quinziani, tocada pela oração da amiga, impôs-se toda espécie de penitências e boas obras, até que soube, por uma nova revelação, que Irmã Paula havia sido libertada dos seus sofrimentos e entrado na glória eterna.

A conclusão natural que se segue dessas terríveis manifestações da Justiça Divina é que devemos nos apressar em dar satisfação por nossos pecados nesta vida. Certamente um criminoso condenado a ser queimado vivo não recusaria uma dor mais leve, se a escolha fosse sua. Suponha que lhe seja dito: 'Você pode livrar-se desse terrível castigo com a condição de jejuar por três dias a pão e água'; ele ousaria recusar? Aquele que porventura preferisse a tortura do fogo à penitência leve, não seria considerado alguém que teria perdido a razão? Assim, pois, preferir o fogo do Purgatório à penitência cristã é uma loucura infinitamente maior. 

O imperador Maurício entendeu isso e agiu com sabedoria. A história relata que este príncipe, não obstante suas boas qualidades, que o tornaram querido por São Gregório Magno, já perto do final de seu reinado cometeu uma falta grave, a qual expiou por um arrependimento exemplar (Berault, Histoire Eccles., Ano 602). Tendo perdido uma batalha contra o Khan - rei dos Avari - ele se recusou a pagar o resgate dos prisioneiros, embora tenha sido pedido nesse intento um valor bastante baixo por cada um deles. Essa recusa mesquinha provocou no conquistador bárbaro uma ira tão violenta que ele ordenou imediatamente o massacre de todos os prisioneiros, cerca de doze mil soldados romanos. Caindo em si, o imperador reconheceu a sua culpa e a sentiu tão agudamente, que enviou dinheiro e oferendas para as principais igrejas e mosteiros, implorando a Deus a graça de puni-lo nesta vida e não na próxima. 

E as suas orações foram ouvidas. No ano de 602, o general Pierre - irmão do imperador - resolveu obrigar as suas tropas a passar o inverno na margem oposta do rio Danúbio, o que motivou um motim e a deposição do general, sendo proclamado em seguida como imperador, Focas, um simples centurião. A cidade imperial seguiu o exemplo do exército e o imperador Maurício foi obrigado então a fugir durante a noite, após ter sido privado de todas as honras da realeza, que agora serviam apenas para aumentar os seus temores. 

No entanto, foi reconhecido e preso, junto com a sua esposa, cinco de seus filhos e três filhas - ou seja, quase toda a sua família, exceção feita ao seu filho mais velho, que havia sido coroado como imperador e que, assim, escapou da morte. Maurício e seus cinco filhos foram massacrados impiedosamente perto da Calcedônia. A carnificina começou pela morte dos príncipes, que foram todos mortos diante dos olhos do infeliz pai, sem mesmo uma palavra dele de revolta contra Deus. Lembrando as dores do outro mundo, ele se considerou feliz por sofrer na vida presente, e durante todo o massacre ele não falou outras palavras senão as do salmista: 'Vós sois justo, ó Senhor, e Vosso julgamento é justo' (Salmo 118).

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A TERRA QUE VEMOS...


A Terra que vemos não nos satisfaz. É apenas um começo. Não é mais do que uma promessa de um porvir; nem mesmo na sua maior alegria, quando se cobre de todas as suas flores e mostra os seus tesouros escondidos da forma mais atrativa, mesmo então isso não nos basta. Sabemos que há nela muito mais coisas do que as que conseguimos ver.

Um mundo de santos e de anjos, um mundo glorioso, o palácio de Deus, a montanha do Senhor, a Jerusalém celeste, o trono de Deus e de Cristo: todas essas maravilhas eternas, preciosíssimas, misteriosas e incompreensíveis se escondem por detrás do que vemos. O que vemos não é senão a camada exterior do reino eterno e é nesse reino que fixamos os olhos da nossa fé.

Mostra-Te, Senhor, como no tempo da tua natividade, em que os anjos visitaram os pastores; que a tua glória se expanda como as flores e a folhagem se desenvolvem nas árvores. Pelo teu poder, transforma o mundo visível nesse mundo mais divino que ainda não vemos. Que aquilo que vemos seja transformado naquilo em que cremos.

Por mais brilhantes que sejam o sol, o céu, as nuvens, por mais verdejantes que sejam as folhas e os campos, por mais doces que sejam os cantos dos pássaros, sabemos que isso não é tudo e que não queremos tomar a parte pelo todo. Essas coisas procedem de um centro de amor e de bondade que é o próprio Deus, mas não são a sua plenitude. Falam do céu, mas não são o céu. São apenas, de certa forma, raios dispersos, um tênue reflexo da sua imagem; são apenas migalhas que caem da mesa.

(Cardeal J.H. Newman, 'The Invisible World')

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

  

A palavra Rosário vem do latim Rosarium, que significa 'Coroa de Rosas'. Nossa Senhora é a Rosa das rosas, Rainha das rainhas, sendo chamada, então, Rosa Mística (como é invocada na Ladainha Lauretana), Rainha das Rosas de todas as devoções, Nossa Senhora do Rosário. Se, a cada Ave Maria, adorna-se a Mãe de Deus com uma rosa espiritual, o Rosário adorna Maria com uma Coroa de todas as Rosas.

O Santo Rosário é a oração mais perfeita e o instrumento mais poderoso que nos é concedido pela Divina Providência para vencer o pecado e as tentações diabólicas. Com o rosário, recordamos o memorial da Paixão de Jesus Cristo e meditamos os mistérios de gozo, dor e glória de Jesus e Maria. Pelo Rosário, a terra se une aos céus, e nós a Nossa Senhora, no louvor ao Senhor nosso Deus. Com o Rosário, alcançamos a paz de coração e a salvação eterna da alma. Pelo Rosário, obtemos a remissão pela culpa e pela pena dos nossos pecados, tornamo-nos herdeiros dos méritos infinitos da Paixão de Jesus e invocamos sobre nós e nossas famílias as graças extraordinárias da Misericórdia Divina. 

A origem do Rosário é antiga, mas se formalizou por meio de uma famosa aparição de Nossa Senhora a São Domingos de Gusmão. No seu ferrenho combate e conversão dos seguidores da seita herética dos albigenses, São Domingos defrontou-se com terríveis dificuldades e perseguições, devido à dureza espiritual daquelas almas. Retirou-se, então, em oração, para um lugar ermo situado nos arredores de Toulouse e suplicou a intercessão da Virgem Maria para os bons propósitos de tão dura missão. 

As suas preces extremadas foram atendidas e o santo recebeu uma aparição de Nossa Senhora que lhe entregou o Rosário (também chamado Saltério de Maria, em referência aos 150 salmos de Davi), ensinando-o como rezá-lo e assegurando ser esta a arma mais poderosa para se ganhar as almas para o Céu. Este evento, respaldado por numerosos documentos pontifícios, é narrado na obra 'Da Dignidade do Saltério', do Bem-Aventurado Alain de la Roche (1428 – 1475), célebre pregador da Ordem Dominicana. Com o Rosário em punho, São Domingos pregou incansavelmente na França, Itália e Espanha a devoção que a própria Senhora do Rosário lhe havia ensinado, convertendo os hereges e os tíbios, e erradicando por completo naqueles países a heresia albigense.


Graças, louvores e indulgências sem conta estão associadas à oração devota do Santo Rosário. Rezai-o sempre, rezai-o todos os dias! O maior milagre que o Rosário pode nos proporcionar é nos fazer plenamente dignos das promessas de Cristo e nos elevar de criaturas humanas na terra a herdeiros diretos do Céu ainda nesta vida.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

PÉROLAS AO TEMPO


O tempo é uma nuvem sinistra, carregada de tempestades, de raios e trovões; é uma nuvem que toma todas as formas e desaparece. A Sagrada Escritura compara o tempo:

👉 a uma balança que sobe e baixa

👉 a uma gota de orvalho ao amanhecer

👉 à fumaça

👉 à sombra

👉 a uma flor que murcha logo

👉 a um grão de areia

👉 ao nada

👉 a uma teia de aranha

👉 a um fantasma

👉 à vaidade (Sl 38, 7)

👉 ao vento

👉 a uma rápida torrente que logo seca

👉 a um mensageiro rápido

👉 a um navio que corta as ondas

👉 a um pássaro em pleno voo

👉 a uma flecha lançada (Sb 5, 9-12)


... e os meios para se empregar bem o nosso tempo (de viajante ou estrangeiro nesta terra):

👉 o cristão deve recordar que é estrangeiro na terra; e há de portar-se como um estrangeiro

👉 o viajante tudo vê, sem, contudo, apegar-se a nada; e o mesmo há de fazer o cristão

👉 o viajante vai e acede a outro lugar; recordemos que é preciso que façamos o mesmo

👉 o viajante dirige retamente ao seu objetivo, contentando-se com o alimento e o vestuário; não se ocupa senão de sua viagem: assim devemos agir também nós

👉 o estrangeiro deseja sua pátria; imitemo-lo

👉 o viajante sofre com calor, fome, sede etc.; o mesmo nós devemos também fazer

👉 o viajante procura não ter tropeços nem dificuldades; por isso conduz-se com honradez e justiça; a ninguém insulta; porta-se convenientemente com todo o mundo: tal é também o dever do cristão

👉 o estrangeiro considera a todos os homens como estranhos, seu coração está em sua pátria, seu espírito com seus parentes, seus filhos, seus amigos: tal deve ser também a conduta do homem que crê

👉 o viajante leva uma capa e um bastão; o cristão deve levar sua cruz e revestir-se da capa da oração, da penitência e da modéstia; deve revestir-se de Jesus Cristo

👉 o viajante não vai inutilmente sobrecarregado; leva somente o necessário: o bom exemplo do tempo exige também isto no cristão

👉 o viajante não se detém em seu caminho, senão avançando para chegar ao final de sua viagem; façamos o mesmo.

(Cornelius à Lapide)

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: DEUS, CENTRO ÚLTIMO DA ALMA


Da mesma forma que, como se costuma dizer, a pedra tende pelo seu peso para o centro da terra e nela cairia por si mesma, como para o lugar do seu repouso definitivo, assim também a nossa alma tende a Vós, meu Deus, com todo o peso do seu amor. Nesse movimento que a conduz a Vós, podemos considerar alguns lugares sucessivos, que são como marcos ou pontos de descanso provisórios, a partir dos quais a alma se lança novamente à frente, ó meu Deus, com uma visão mais clara do seu fim, com um amor mais impaciente e maiores desejos de encontro, que dão à sua marcha uma aceleração misteriosa. 

Mas, de estágio em estágio, de lugar em lugar, de ponto a ponto, a alma finalmente há de chegar até Vós. E então o seu movimento se conclui e não há mais razão de ser, pois a alma chegou ao final dos seus desejos e do seu caminho. Ela chegou onde tinha que chegar. E então repousa ali, na posse final e definitiva do seu Tesouro e do seu Tudo.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

domingo, 3 de outubro de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor te abençoe de Sião, cada dia de tua vida' (Sl 127)

 03/10/2021 - Vigésimo Sétimo Domingo do Tempo Comum

45. 'O QUE DEUS UNIU...'


No Livro do Gênesis, Deus nos revelou a verdadeira dimensão do matrimônio, a criação do elo único e indissolúvel entre um homem e uma mulher: 'Depois, da costela tirada de Adão, o Senhor Deus formou a mulher e conduziu-a a Adão. E Adão exclamou: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem”. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne' (Gn 2, 22- 24). 

Esta dimensão original havia se perdido no labirinto das paixões humanas. A criatura, recorrente na sua ânsia de saciar seus interesses e paixões mais comezinhas, tomara para si atributos de posse e domínio nas relações humanas, deturpando o caráter sagrado e de profunda harmonia e completude que deveriam existir entre um homem e uma mulher quando 'se tornam uma só carne'. E a carta de divórcio prescrita por Moisés era o prêmio à dissolução dos costumes e ao repúdio à Lei de Deus, para satisfazer os interesses puramente mundanos dos 'duros de coração'. 

Jesus, então, ante a malícia dos fariseus, outros tantos 'duros de coração', vai ratificar a concepção original da sacralidade do sacramento do matrimônio: 'No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não separe!' (Mc 10, 6 - 9). O que Deus uniu, o homem não separe! Eivada em graça pelo sacramento, o matrimônio instaura uma união santa, definitiva, monogâmica, indissolúvel. A decisão de compartilhar a santidade a dois não admite ressalvas: 'Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se casar com outro, cometerá adultério' (Mc 10, 11 - 12).

O matrimônio cristão pressupõe uma família cristã; os pais sendo 'uma só carne' geram os filhos para compartilharem com eles a mesma graça santificante, que se distribui entre todos igualmente no seio de uma família de Deus. Porque, mais do que pais e filhos, somos irmãos em Cristo e, no abandono completo tal como crianças inocentes que se entregam à Santa Vontade de Deus, tornamo-nos merecedores das heranças eternas: 'Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele' (Mc 10, 15).