segunda-feira, 24 de maio de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: CONTEMPLAÇÃO FELIZ OU CONTEMPLAÇÃO DOLOROSA

Pode haver uma contemplação feliz ou uma contemplação dolorosa e, às vezes, essa segunda pode ocultar parcialmente os fenômenos místicos. Mas parece que, mesmo na contemplação dolorosa, há consciência da união, pelo menos no íntimo maior da alma, porque sem isso os santos não poderiam suportar o peso do sofrimento que Deus lhes impõe.

Parece não haver santo canonizado em que não se tenha reconhecido esta ação mística de Deus. Pode-se desejar a ação direta dos dons do Espírito Santo, no sentido de que obrigam a alma ao exercício máximo da caridade. Muitos autores alertam acertadamente contra a sensibilidade às consolações espirituais, mas consolações superiores não devem ser incluídas nesta desconfiança geral, desde que não se apegue demasiado nelas.

É possível viver habitualmente na presença de Deus sem que os dons do Espírito Santo se movam conscientemente como tal e sem que seja necessário que tenhamos luzes especiais e estejamos conscientes delas. Mas o inverso também pode ser verdadeiro. Eu diria então que é possível ser contemplativo sem ser muito virtuoso e que é possível ser virtuoso mesmo sem ser contemplativo. Depende de tantas coisas... Das faculdades alcançadas pela ação de Deus, das reações do temperamento, do caráter, da vontade...

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)

domingo, 23 de maio de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai!' (Sl 103)

 23/05/2021 - Solenidade de Pentecostes

26. 'RECEBEI O ESPÍRITO SANTO'

 

Emitte Spiritum tuum et creabuntur. Et renovabis faciem terrae

'Enviai, Senhor, o vosso espírito criador e será renovada toda a face da terra'

Originalmente, Pentecostes representava uma das festas judaicas mais tradicionais de 'peregrinação' (nas quais os israelitas deviam peregrinar até Jerusalém para adorar a Deus no Templo), sempre celebrada 50 dias após à Páscoa e na qual eram oferecidas a Deus as primícias das colheitas do campo. No Novo Pentecostes, a efusão do Espírito Santo torna-se agora o coroamento do mistério pascal de Jesus Cristo, na celebração da Nova Aliança entre Deus e a humanidade redimida.

Eis que os apóstolos encontravam-se reunidos, com Maria e em oração constante, quando 'todos ficaram cheios do Espírito Santo' (At 2, 4), manifestado sob a forma de línguas de fogo, vento impetuoso e ruídos estrondosos, sinais exteriores do poder e da grandeza da efusão do Novo Pentecostes. Luz e calor associados ao fogo restaurador da autêntica fé cristã; ventania que evoca o sopro da Verdade de Deus sobre os homens; reverberação que emana a força da missão confiada aos apóstolos reunidos no cenáculo e proclamada aos apóstolos de todos os tempos.

O Paráclito é derramado numa torrente de graças, distribuindo dons e talentos, porque 'Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos' (1 Cor 12, 4-6). Na simbologia dos vários membros de um mesmo corpo, somos mensageiros e testemunhas de Cristo no meio dos homens, na identidade comum de Filhos de Deus partícipes e continuadores da missão salvífica de Cristo: 'Como o Pai me enviou, também Eu vos envio' (Jo 20, 21).

No Espírito Consolador, não somos mais meros expectadores de uma efusão de graças e dons tão diversos, mas apóstolos e testemunhas, iluminados e portadores da Verdade, pela qual será renovada a face da terra e pelo qual será apagada a mancha do pecado no mundo: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23).

sábado, 22 de maio de 2021

22 DE MAIO - SANTA RITA DE CÁSSIA

 


A santa, que padeceu uma vida doméstica de sofrimentos e provações, tornou-se a advogada dos desesperados e a padroeira das causas impossíveis. Filha única de pais já envelhecidos - Antonio Mancini e Amata Ferri - Margherita (que ficou Rita) nasceu no vilarejo de Roccaporena, na região de Cascia, na Úmbria (centro da Itália) em 1381. Inclinada à vida religiosa, cedeu às tratativas paternas e aos rigores da época, desposando, logo após a adolescência um homem chamado Paulo Ferdinando, com o qual teve dois filhos.

Sua vida matrimonial, entretanto, foi um período de enormes provações e humilhações em relação ao marido, sempre violento e agressivo. Depois de muitas orações pelo marido, este se converteu e passaram a formar uma igreja doméstica até que uma tragédia a desfez por completo: Paulo foi assassinado numa ato de vingança devido às suas desavenças passadas. Outra tragédia se anunciava: os dois filhos estavam decididos a vingar a morte do pai. Rita preferiu perdê-los do que eles ao Céu e ofereceu as suas vidas a Deus antes de cometerem tal crime. Com efeito, cerca de um ano após a morte do pai, ambos faleceram, arrependidos do sentimento de vingança.

Rita ficou, então, sozinha no mundo e buscou, sem sucesso, a vida religiosa, por já ter vivido uma união matrimonial por 18 anos. A opção por converter-se em uma monja agostiniana foi-lhe repetidamente negada. Entregando a sua vocação nas mãos de Deus e sobrecarregando-se em orações, alcançou a causa impossível por um milagre extraordinário. Certa feita, foi conduzida por três pessoas à capela interna do mosteiro, totalmente fechado e a altas horas da noite: São João Batista (também concebido na velhice dos pais), Santo Agostinho (fundador da ordem agostiniana) e São Nicolau de Tolentino (religioso agostiniano). Diante do relato e dos fatos sobrenaturais, Rita foi aceita na ordem, dedicando o resto da sua vida aos votos de pobreza, obediência e castidade. 

A sua extrema capacidade de servir, obedecer e aceitar mesmo o que aparentemente poderia ser improvável pode ser compreendido no milagre que transformou um ramo seco, regado periodicamente e com grande diligência pela santa, numa videira que produziu muitos e muitos frutos. Ou, quase no final de sua vida, com a roseira que, sob os seus cuidados, floriu viçosa em pleno inverno rigoroso. Por 15 anos, estigmatizada, padeceu os sofrimentos e as dores de uma ferida repugnante na testa, que expelia pus e que exalava mau odor, o que a a levou a uma vida de isolamento e de absoluto confinamento numa cela do convento.

Aos 76 anos, Santa Rita de Cascia (adaptado como Cássia) faleceu no convento, em 22 de maio de 1457, sem deixar quaisquer registros escritos, mas os exemplos heroicos de uma vida de santidade. Morta, a ferida tornou-se limpa e passou a exalar um odor perfumado. Foi beatificada em 1627, ocasião em que o seu corpo mostrou-se no mesmo estado quando da sua morte, mais de cento e cinquenta anos antes. Seu corpo atualmente repousa no Santuário de Cascia, desde 18 de maio de 1947, numa urna de prata e cristal.  Exames médicos recentes efetuados no corpo confirmaram os traços de uma ferida óssea (osteomielite) na testa. A santa das causas impossíveis foi canonizada em 24 de maio de 1900, sob o pontificado do Papa Leão XIII.

(urna de cristal com o corpo de Santa Rita de Cássia)

Santa Rita de Cássia, rogai por nós!

sexta-feira, 21 de maio de 2021

PARA VIVER A DIVINA MISERICÓRDIA UM DIA POR SEMANA²

  

Ó Sangue e Água que jorrastes do Coração de Jesus como fonte de misericórdia para nós,
eu confio em Vós!

'Fala ao mundo da Minha Misericórdia, que toda a humanidade conheça a Minha insondável misericórdia. Este é o sinal para os últimos tempos; depois dele virá o dia da justiça. Enquanto é tempo, recorram à fonte da Minha Misericórdia'

Intenção do Dia - Segunda Semana

conformar a minha vontade à Santa Vontade de Deus em tudo, com todos, o tempo todo

dai-me, Senhor, provar da água pura / que jorra do vosso lado ferido / minha alma tem sede de Vós / ó Deus de misericórdia infinita

quinta-feira, 20 de maio de 2021

A SANTIDADE SEGUNDO CARLO ACUTIS

Carlo Acutis (1991 - 2006)

Há algo extraordinário na santidade de pessoas absolutamente comuns. Carlo Acutis, Chiara Badano e Anne-Gabrielle Caron são referências e modelos de santidade extraordinária para uma juventude que não se espelha nos falsos valores de um mundo atual cada vez menos cristão.

Carlo Acutis viveu apenas 15 anos nessa terra e nunca realizou feitos portentosos. Mas a sua vida simples, cotidiana e comum foi absolutamente extraordinária, não apenas como fruto de uma doação singular às graças divinas, mas pelo empenho de viver a santidade à perfeição. Tal propósito incluía amar como Jesus amava, praticar a caridade como regra cotidiana de vida, colocar-se à disposição do próximo com enorme generosidade e sem se preocupar com retribuição alguma. Praticava a oração e a eucaristia quase diária e transformava uma fé viva e autêntica em obras constantes de caridade: 'a tristeza é o olhar voltado para si; a felicidade é o olhar voltado para Deus'. 


Carlo nasceu em Londres, filho de pais italianos em viagem de trabalho - Andrea Acutis e Antonia Salzano – em 3 de maio de 1991, sendo batizado em seguida. Pouco depois - em setembro de 1991 - a família retornou à Itália e Carlo passou a viver em Milão, onde fez seus estudos e onde, em contato como um estudante de engenharia de computação, desenvolveu enorme habilidade nessa área, particularmente na elaboração de sites e desenvolvimento de programas utilizando linguagens computacionais como C++ e HTML. Neste contexto, desenvolveu um projeto de apresentação, por meio de um site especialmente desenvolvido por ele, de uma resenha, com uma rica exposição de imagens, dos principais milagres eucarísticos conhecidos no mundo. 

A síntese de sua via espiritual era a amizade com Deus: a alegria de viver na presença de Deus, o cuidado em não ofender a Divina Vontade, o empenho extremado em estar disponível a todas as graças, particularmente na posse da eucaristia diária e, caso não possível, na prática da comunhão espiritual frequente. Tudo emanado da prática da caridade constante, da cordialidade extrema ao próximo e do bom dia aos porteiros dos prédios vizinhos, aos cuidados em servir e alimentar, no anonimato e no despojamento, os moradores de rua. Tudo por Jesus e para Jesus, ou como ele próprio dizia: 'a conversão é simplesmente um olhar para o Alto'.

Em outubro de 2006, foi internado por causa de uma suposta gripe, posteriormente diagnosticada como uma leucemia particularmente agressiva. Aceitou serenamente a provação, afirmando: 'Ofereço ao Senhor os sofrimentos que terei que sofrer, pelo papa e pela Igreja, para não ter que passar pelo Purgatório e poder ir diretamente para o Céu'. Faleceu em 12 de outubro de 2006 no hospital de San Gerardo, em Monza, após ter recebido a eucaristia e a unção dos enfermos. O seu funeral já foi um reflexo da sua santidade precoce. O seu corpo foi sepultado no túmulo da família em Ternengo e, em fevereiro de 2007, transferido para o cemitério municipal de Assis, conforme seu próprio desejo, mesmo antes de passar pela doença. Em 10 de outubro de 2020, foi beatificado em Assis pelo Papa Francisco. Cerca de 10 dias antes, havia sido feita a exumação do seu corpo, constatando-se que o mesmo permanecia intacto a quaisquer processos de decomposição desde a época da sua morte.


quarta-feira, 19 de maio de 2021

SOBRE A SANTIDADE DO SOFRIMENTO


É fácil santificar as provações quando compreendemos o papel da dor no plano divino. 'Quem fará, com que minha oração seja ouvida', dizia Jó, 'e que Deus me conceda aquilo que espero, isto é, que Ele se digne esmagar-me, pondo fim aos meus dias à mercê de sua vontade e me reste ainda este consolo, e que exulte sob os golpes de uma dor implacável, por não haver contestado os decretos do Santo dos Santos?' (Jó 6, 8-10). Que Deus satisfaça, portanto, sua justiça, contente a sua santidade, exerça o seu poder, e que sua própria bondade proceda livremente, mergulhando-me na dor e retirando dessa mesma dor todos os benefícios que encerra.

São os atributos de Deus que exigem o sofrimento da criatura humana e o fazem servir aos desígnios da sabedoria eterna. Diante da desordem terrível que é o pecado, a justiça incorruptível reclama uma expiação; não pode desistir de seus direitos; Deus deixaria de ser Deus se não castigasse o pecado. Jó, como todos aqueles a quem a santidade da vida valeu grandes esclarecimentos, compreendia a equidade da sentença divina, que condena o homem pecador ao sofrimento. 

Como todas as almas perfeitas, sentia em si um vivo desejo de pagar suas dívidas à justiça divina. As mesmas luzes da graça revelavam-lhe ainda a pureza que o Deus infinitamente santo reclama de seus amigos e desejava ser purificado pelo sofrimento. Sabia também que a Sabedoria Incriada atinge seus fins por vias inteiramente opostas às dos homens e conduz à felicidade pelo sofrimento. Sabia que o Deus infinitamente poderoso e infinitamente bom podia procurar-lhe, por este meio, os mais preciosos bens. Como não pedir então ao Senhor que fosse até ao fim, e completasse nele sua obra, amarga, sem dúvida, porém benfazeja. Esse homem justo não deseja contradizer os decretos do Deus santo, pois se os planos divinos são sabedoria e bondade, pode o homem, infelizmente, fazê-los fracassar, ou, ao menos, impedir-lhe a plena realização. Jó deseja, portanto, e pede que não seja obstáculo aos desígnios do seu Deus.

Deus ficará satisfeito e nisto encontrará a sua glória. Que importa, pois, que eu gema; que importa que uma mísera criatura sofra, se Deus for glorificado, que importa que um ser, um nada, seja esmagado, se Deus ficar contente! Haveria quem protestasse e, para agrado do rei, fosse esmagado um pobre vermezinho, de cujo corpo moído exalasse suave perfume? Ou quem criticasse o consumo de grãos de incenso, queimados para aromatizar uma igreja, deleitar os fiéis e honrar a Deus? Pois bem, somos nós esses vermezinhos, esses pobres grãos de incenso; devemos considerar-nos felizes se, por meio de sofrimentos santamente suportados, fizéramos subir até ao trono de nosso Deus um delicioso perfume.

Tais os pensamentos a que devemos recorrer quando a dor nos oprime, em vez de recordar os fatos que nos entristecem, ou reanimar inutilmente uma ferida que o tempo cicatrizará. Quem maltratasse por prazer uma ferida sua e lhe rasgasse continuamente os tecidos que se refazem, procederia como um louco. Não é menos insensato quem repassa constantemente na memória, as causas de seus sofrimentos, as faltas de seus irmãos para com ele, as injustiças de que se julga vítima, ou os golpes da Providência que o fere. 

Ao contrário, devemos humilhar-nos e reconhecer que tais sofrimentos estão muito aquém do que merecemos, pois, se viéssemos a morrer, passaríamos por um rigoroso purgatório para expiar nossos pecados. Merecemos ser lançados ao fogo; como então podemos nos queixar? Nossas pobres almas, tão manchadas pelo pecado, pelo apego a nós mesmos e a toda espécie de imperfeições, precisam ser purificadas pelo sofrimento para se tornarem agradáveis aos olhos do Deus infinitamente santo. Há em nós como que uma marca que nos desfigura e não pode ser arrancada sem uma acerba dor.

E é este o pensamento que torna as almas humildes cada vez mais pacientes, enquanto que a falta de resignação indica um orgulho recôndito. Deus é justo quando nos experimenta; sua bondade, porém, brilha ainda mais que a sua justiça. Com efeito, Ele quer que essa dor, ao lavar e purificar as almas, lhes dilate, ao mesmo tempo, a beleza e os méritos. A dor passa, o mérito perdura; tantas outras penas já passaram, de que nem sequer nos lembramos. Deus, porém, conservou-lhes a lembrança, a fim de recompensar. Momentaneum et leve tribulationis nostrae aeternum gloriae pondus operatur in nobis [a nossa tribulação momentânea e  ligeira nos proporciona um peso eterno de glória (2Cor 4,17)]. Nossas penas são passageiras e leves, mas, no grande dia em que se fixar a nossa sorte; cada qual produzirá, e para sempre, novo esplendor de glória.

Deus é justo e santo, Deus é bom quando nos experimenta. Se, na dor, elevarmos para Ele o olhar, de nosso coração partirá um fiat generoso, que será um ato de amor perfeito. Talvez o esforço passageiro despendido será de efeito transitório e a lembrança do sofrimento nos perseguirá, mau grado nosso. A dor, afastada um momento pela resignação, voltaria ao coração; um novo esforço, porém, produzirá novo ato de submissão. Se fitarmos outra vez os olhos nas grandezas e perfeições de Deus, na sua bondade e santidade infinitas, faremos então outro ato de amor. Tantas vitórias alcançadas sobre a natureza, cem por dia talvez, tantos passos dados no caminho do amor e da perfeição.

(Excertos da obra 'O Caminho que leva a Deus', do Cônego Augusto Saudreau)

terça-feira, 18 de maio de 2021

O TEMPO DE DEUS

O que é o Tempo de Deus? Aqueles que isto perguntam ainda não te compreendem, ó sabedoria de Deus (Ef 3,10); ó luz das mentes, ainda não compreendem como são feitas as coisas que por meio de ti e em ti são feitas, e esforçam-se por saborear as realidades eternas, mas o seu coração esvoaça ainda nos movimentos passados e futuros das coisas, continuando vazio (Sl 5,10). 

Quem poderá deter o tempo e fixá-lo, a fim de que ele pare e por um momento capte o esplendor da eternidade sempre fixa, e a compare com os tempos nunca fixos, e veja que a eternidade é incomparável, e veja que um longo tempo não é longo senão a partir de muitos momentos que passam e não podem alongar-se simultaneamente; veja, pelo contrário, que, no que é eterno, nada é passado, mas tudo é presente, enquanto nenhum tempo é todo ele presente: e veja que todo o passado é obrigado a recuar a partir do futuro, e que todo o futuro se segue a partir de um passado, e que todo o passado e futuro são criados e derivam daquilo que é sempre presente? Quem poderá deter o coração do homem, a ponto de ele parar e ver como a eternidade, que é fixa, nem futura nem passada, determina os tempos futuros e passados? Será que, porventura, a minha mão consegue isto, ou que a minha boca, que se manifesta falando, realiza tão grande intento?

E tu não precedes os tempos com o tempo: se assim fosse, não precederias todos os tempos. Mas precedes todos os passados com a grandeza da tua eternidade sempre presente, e superas todos os futuros porque eles são futuros, e quando eles chegarem, serão passado; tu, porém, és o mesmo e os teus anos não têm fim (Sl 101,28; Hb 1,12). 

Os teus anos não vão nem vêm: os nossos vão e vêm, para que todos venham. Os teus anos existem todos ao mesmo tempo, porque não passam, e os que vão não são excluídos pelos que vêm, porque não passam: enquanto os nossos só existirão todos, quando todos não existirem. Os teus anos são um só dia (Sl 89,4; 2Pe 3,8), e o teu dia não é todos os dias, mas um ‘hoje’, porque o teu dia de hoje não antecede o de amanhã; pois não sucede ao de ontem. O teu hoje é a eternidade: por isso, geraste co-eterno contigo aquele a quem disseste: 'Eu hoje te gerei' (Sl 2,7; At 13,33; Hb 1,5; 5,5). Tu fizeste todos os tempos e tu és antes de todos os tempos, e não houve tempo algum em que não havia tempo.

(Do Livro das Confissões, de Santo Agostinho)