sábado, 10 de outubro de 2020

A BÍBLIA EXPLICADA (XXIII): A TRAVESSIA DO MAR VERMELHO

O Senhor disse a Moisés: 'Dize aos israelitas que mudem de direção e venham acampar diante de Piairot, entre Magdol e o mar, defronte de Baal Sefon: acampareis defronte desse lugar, perto do mar. O faraó vai pensar: os israelitas perderam-se no país, e o deserto fechou-lhes a passagem. Endurecerei o coração do faraó, e ele os perseguirá; mas eu triunfarei gloriosamente sobre o faraó e sobre todo o seu exército, e os egípcios saberão que eu sou o Senhor' (Ex 14, 1-4).


Na epopeia da saída e fuga do Egito, o povo de Israel foi personagem de um dos mais extraordinários eventos narrados nos textos bíblicos, a chamada 'travessia do Mar Vermelho', descrito e detalhado no Livro do Êxodo. A jornada inicial é bem conhecida: os israelitas, liderados por Moisés, deixam o Egito em direção ao Monte Sinai. Durante o dia, Deus provê uma coluna de nuvens para guiar o seu povo na direção correta. À noite, é uma coluna de fogo que os guiam, provendo luz e condições seguras para a continuidade da jornada mesmo após o pôr-do-sol.

Cerca de três dias após o Êxodo, o Faraó se arrepende amargamente de ter permitido a saída dos israelitas de seu país e decide partir ao encalço deles, de forma a capturá-los e fazê-los retornar à força como mão de obra escrava do Egito. Neste ímpeto de fúria, mobiliza-se de imediato um poderoso exército e o próprio Faraó assume a liderança das suas tropas na perseguição aos israelitas. Tem-se, assim, um anfiteatro de uma grande escapada, o grande Êxodo: de um lado, um poderoso exército egípcio sob  comando do próprio Faraó; de outro, um enorme contingente de israelitas irmanados numa jornada exaustiva de dia e de noite para fugir do Egito.


Um primeiro aspecto marcante a ser destacado é relativo ao arrependimento do Faraó após três dias da saída do povo israelita. Isso depois de uma sucessão de pragas terríveis impostas ao povo egípcio (as águas do Nilo transformadas em sangue, o tormento dos piolhos sobre as pessoas e das nuvens de gafanhotos devastando as plantações, chagas afligindo homens e animais, a morte dos primogênitos, etc). Como explicar tamanha arrogância do Faraó diante de tantas tragédias consumadas, que incluíram a perda do seu próprio filho (Ex 12, 29)? Este sentimento extremado de vingança foi permitido por Deus que 'endureceu o coração do Faraó', pois nem a morte dos primogênitos tinha sido suficiente para aplacar a ira santa de Deus contra o povo egípcio (a pena do pecado público aplicado a todo um povo) pelos crimes do Faraó, que havia ordenado que todos os meninos hebreus recém-nascidos fossem atirados e afogados nas águas do rio Nilo (Ex 1,22), suscitando dor e sofrimento indescritíveis às mães enlutadas. De tal horror e gravidade contra pequeninos inocentes, é que pela mesma medida e com igual morte, haveria de perecer todo o exército egípcio em perseguição aos israelitas.

Um segundo aspecto a ser realçado é a aparente contradição da ordem dada por Deus aos israelitas em fuga: em vez de avançarem na escapada, eles teriam não apenas que tomar uma ação de recuo, como também interromperem a jornada e acamparem 'defronte de Baal Sefon', perto do mar. A razão da ordem de Deus está explicitada no próprio texto bíblico: o recuo seria interpretado pelo Faraó como uma indicação de que os judeus estavam perdidos e confusos e que ficaram sem saída, aprisionados entre o deserto e o Mar de Juncos (ou Mar Vermelho). 


Com efeito, a ordem de Deus teria sido analisada pelos israelitas mais descrentes como constituindo uma absurda insensatez: nesse contexto, os israelitas ficariam definitivamente encurralados entre o mar e as montanhas em torno, uma vez que o único caminho de acesso até a região agora era o trajeto óbvio de um poderoso exército egípcio de perseguição. Foi exatamente por isso é que se produziu tanto alarde e que, diante a desconfiança de muitos judeus, Moisés repreendeu o temor deles e os suscitou a confiar plenamente em Deus: 'O Senhor combaterá por vós; quanto a vós, nada tereis a fazer' (Ex 14, 15). É neste cenário de apreensão e prostração do povo israelita que Deus vai demandar um portentoso milagre à frente deles, e por isso os induziu a montarem um acampamento 'perto do mar'.



O cenário do confronto se impõe, mas por uma noite inteira será contido. A coluna de nuvens se interpõe entre os dois contingentes e impede o avanço do exército egípcio que é, assim, obrigado a levantar acampamento à espera do dia seguinte. Os israelitas esperam e têm diante de si o Mar Vermelho como barreira inexpugnável. Mas não é por acaso que se encontram diante Piairot, entre Magdol e o mar, defronte de Baal Sefon: neste ponto específico, a passagem do Mar Vermelho, além de estreita, é particularmente rasa: uma muralha se ergue do fundo do mar e alcança quase a superfície oceânica. Mais ainda, constitui uma frente de exposição contínua à ação dos fortes ventos de leste tão comuns na região. 



Deus preparara com ciência divina e humana a trajetória final do percurso do seu povo escolhido e, assim, ordena a Moisés: 'levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e fere-o, para que os israelitas possam atravessá-lo a pé enxuto' (Ex 14, 16). A ciência humana trabalhou com a mobilização dos impetuosos ventos do leste que abriram uma passagem entre as águas e a ciência divina fez secar e endurecer de imediato o leito marinho, por onde passou o povo israelita sem dificuldades ou obstáculos, de forma controlada e protegida, por uma noite inteira. Os ventos não pararam de soprar fortemente e, assim, a travessia foi completa. 


Se Deus não tivesse utilizado um fenômeno físico, os egípcios nunca teriam continuado a perseguição aos judeus sob uma inexplicável cortina de águas. Acreditaram no que viam (e eventualmente até podiam conhecer): os ventos abriram uma passagem nas águas para os israelitas em fuga e também para os egípcios em perseguição. Por isso, muito cedo ainda, buscaram ir além do possível na perseguição desenfreada, avançando ao longo da passagem marinha formada diante deles. Os ventos continuavam a soprar fortemente e a passagem se mantinha, mas não havia mais leito seco e enrijecido: o avanço era lento, difícil e descontrolado: colunas se adiantavam, grupos ficam retidos mais atrás, os cavalos ficavam atolados, as bigas afundavam no terreno fofo e encharcado, conformando um caos no domínio estreito de um abismo prestes a sucumbir. 

E Deus disse a Moisés: 'Estende tua mão sobre o mar, e as águas se voltarão sobre os egípcios, seus carros e seus cavaleiros' (Ex 14, 26). Os ventos cessaram de pronto e a justiça divina se abateu sobre o Faraó e o exército egípcio, consumando-se o fim de uma dinastia de opressão e livrando para sempre o povo de Israel da escravidão. Expedições recentes neste local do Mar Vermelho comprovam à exaustão a veracidade destes eventos bíblicos: foram achados muitos objetos como rodas de bigas, ferraduras e ossos de homens e cavalos, muitos felizmente protegidos de maiores deteriorações pela cobertura de bancos de corais.


(vestígios de rodas e registro das bigas egípcias da época)

(fragmentos de ossos e de cascos de cavalos)