segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXIII)

Capítulo XXIII

Duração do Purgatório - O Abade Cisterciense e o Papa Inocêncio III - João de Lierre - A irmã de São Vicente Ferrer

Na 'Vida de Santa Lutgarda', obra escrita pelo seu contemporâneo, Tomás de Cantimpre, é mencionado um religioso outrora fervoroso mas que, por excesso de zelo, foi condenado a quarenta anos do Purgatório. Este era um abade da Ordem Cisterciense, chamado Simão, que tinha por Santa Lutgarda grande veneração. A santa, por sua vez, seguiu de bom grado o seu conselho e, em consequência, formou-se entre eles uma espécie de amizade espiritual. Mas o abade, por sua vez, não era tão brando com os seus subordinados quanto era com a santa. 

Severo consigo mesmo, também foi severo em sua administração, e levou as suas exigências em matéria de disciplina até um rigor muito elevado, esquecendo a lição do Divino Mestre que nos ensina a ser mansos e humildes de coração. Tendo falecido, e enquanto Santa Lutgarda estava rezando fervorosamente e impondo a si penitências pelo repouso de sua alma, ele apareceu a ela e declarou que estava condenado a quarenta anos no Purgatório. Felizmente ele tinha em Lutgarda uma amiga generosa e poderosa. Ela redobrou as suas orações e austeridades e, tendo recebido de Deus a garantia de que a alma que partira logo seria libertada, a santa respondeu: 'Não cessarei de chorar; não deixarei de importunar a Vossa Misericórdia até vê-lo livre de suas dores'.

Uma vez que me referi a Santa Lutgarda, devo falar também da célebre aparição do Papa Inocêncio III? Reconheço que a leitura deste incidente me chocou, e gostaria de passá-lo olvidado pois relutei em pensar que um papa, e um papa assim, tivesse sido condenado a um Purgatório tão longo e terrível. Sabemos que Inocêncio III, que presidiu o célebre Concílio de Latrão em 1215, foi um dos maiores pontífices que já ocuparam a cátedra de São Pedro. Sua piedade e zelo o levaram a realizar grandes coisas da Igreja de Deus e da santa disciplina. Como, então, admitir que tal homem foi julgado com tanta severidade no Supremo Tribunal? Como conciliar esta revelação de Santa Lutgarda com a Divina Misericórdia? Quis, portanto, tratá-la como uma fantasia e procurei razões que apoiassem essa ideia. Mas descobri, pelo contrário, que a realidade desta aparição tem sido admitida pelos autores mais fidedignos, e nunca rejeitada por nenhum deles. Além disso, o biógrafo, Thomas de Cantimpre, é muito explícito e ao mesmo tempo muito reservado: 'Observe, leitor´' - escreve ele no final de sua narrativa - 'que foi da boca da própria piedosa Lutgarda que ouvi falar das faltas reveladas pelo defunto, e que omito aqui por respeito a tão grande papa'.

Além disso, considerando o evento em si, podemos encontrar alguma boa razão para questioná-lo? Não sabemos que Deus não faz distinção de pessoas – que até os papas aparecem diante do seu tribunal como os mais humildes dos fiéis – que todos os grandes e os humildes são iguais diante dele, e que cada um recebe de acordo com as suas obras? Não sabemos que aqueles que governam os outros têm uma grande responsabilidade e terão que prestar contas bastante severas? Judicium durissimum seu qui praesunt fietum julgamento mais severo será para aqueles que governam (Sb 6,6). É o Espírito Santo que o declara. Agora, Inocêncio III reinou por dezoito anos e durante os tempos mais turbulentos e, acrescentam os bolandistas, não está escrito que os julgamentos de Deus são inescrutáveis ​​e muitas vezes muito diferentes dos julgamentos dos homens? - Judicia tua abyssus multa (Sl 35,7). A realidade desta aparição não pode, então, ser razoavelmente questionada. Não vejo razão para omiti-la, visto que Deus não revela mistérios dessa natureza para nenhum outro propósito além de que eles sejam conhecidos para a edificação da sua Igreja.

O Papa Inocêncio III morreu em 16 de julho de 1216. No mesmo dia, apareceu a Santa Lutgarda em seu mosteiro em Aywieres, em Brabante. Surpresa ao ver o espectro envolto em chamas, ela perguntou quem seria e o que ele queria. 'Eu sou o Papa Inocêncio' - ele respondeu. 'Como é possível que você, nosso pai comum, esteja em tal estado?' 'É bem verdade: estou expiando três faltas que poderiam ter causado a minha perdição eterna. Graças à bem aventurada Virgem Maria, obtive o perdão, mas tenho que fazer expiação por eles. Infelizmente! Isto é terrível; e durará séculos se você não vier em meu auxílio. Em nome de Maria, que obteve para mim o favor de apelar para você, ajude-me'. Com essas palavras, desapareceu. Lutgarda anunciou a morte do papa às suas irmãs e todas juntas se dedicaram à oração e às obras penitenciais em favor da alma do augusto e venerado pontífice, cuja morte lhes foi confirmada algumas semanas depois por outra fonte.

Acrescentemos aqui um fato mais consolador, que encontramos na vida da mesma santa. Um pregador célebre, chamado John de Lierre, era um homem de grande piedade e bem conhecido da nossa santa. Ele havia feito um compromisso com ela, pelo qual mutuamente prometiam que aquele que morresse primeiro, com a permissão de Deus, deveria aparecer ao outro. João foi o primeiro a partir desta vida. Tendo empreendido uma viagem a Roma para tratar de certos assuntos de interesse dos religiosos, encontrou a morte entre os Alpes. 

Fiel à sua promessa, ele apareceu a Lutgarda no célebre claustro de Aywières. Ao vê-lo, a santa não teve a menor ideia de que ele estaria morto, e o convidou, de acordo com a Regra, a entrar no salão para que pudessem conversar. 'Não sou mais deste mundo' - respondeu ele - 'e venho aqui apenas em cumprimento da minha promessa.' Com essas palavras, Lutgarda caiu de joelhos e permaneceu por algum tempo bastante confusa. Então, erguendo os olhos para o seu abençoado amigo, perguntou: 'Por que você está vestido com tamanho esplendor? O que significa este manto triplo com o qual te vejo adornado'? 'A vestimenta branca' - respondeu ele - 'significa a pureza virginal, que sempre preservei; a túnica vermelha implica os trabalhos e sofrimentos que esgotaram prematuramente minhas forças e o manto azul, que cobre tudo, denota a perfeição da vida espiritual'. Ditas essas palavras, ele de repente deixou Lutgarda, que ficou dividida entre o arrependimento por ter perdido um amigo tão bom e a alegria que experimentara por causa de sua felicidade. 

São Vicente Ferrer, o célebre taumaturgo da Ordem de São Domingos, que pregou com tanta eloquência a grande verdade do Juízo de Deus, tinha uma irmã que não se comovia nem com as palavras e nem com o exemplo do seu santo irmão. Ela estava cheia do espírito do mundo, intoxicada com seus prazeres, e caminhou a passos rápidos em direção à sua eterna ruína. Entretanto, o santo rezou pela sua conversão, e sua oração foi finalmente respondida. A infeliz pecadora caiu mortalmente doente e, no momento da morte, voltando a si, fez a sua confissão com sincero arrependimento.

Alguns dias depois de sua morte, enquanto seu irmão celebrava o Santo Sacrifício, ela lhe apareceu no meio das chamas e presa dos mais intoleráveis ​​tormentos. 'Ai! meu querido irmão' - disse ela - 'estou condenada a sofrer esses tormentos até o dia do Juízo Final. Mesmo assim, você pode me ajudar. A eficácia do Santo Sacrifício é tão grande: ofereça para mim cerca de trinta missas, e assim posso esperar o resultado mais feliz'. O santo apressou-se a atender o seu pedido. Ele celebrou as trinta missas e, no trigésimo dia, viu sua irmã aparecer novamente cercada de anjos e subindo ao céu. Graças às virtudes do Sacrifício Divino, uma expiação de vários séculos foi reduzida a trinta dias.

Este exemplo nos mostra ao mesmo tempo que a duração das dores que uma alma pode incorrer e o poderoso efeito do Santo Sacrifício da Missa, quando Deus se agrada de aplicá-lo a uma alma. Mas esta aplicação, como todos os outros sufrágios, nem sempre se realiza ou, melhor dizendo, nem sempre se realiza na mesma plenitude.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

domingo, 16 de janeiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Cantai ao Senhor Deus um canto novo, manifestai os seus prodígios entre os povos! (Sl 95)

 16/01/2022 - Segundo Domingo do Tempo Comum

8. FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER


Neste segundo domingo do tempo comum, estamos com Jesus e Maria nas bodas de Caná. Não sabemos detalhes do evento, os nomes dos noivos ou do mestre de cerimônia, o tempo da celebração. Mas a presença de Jesus e de Maria naquela ocasião em Caná da Galileia são o testemunho vivo da santidade e das graças associadas àquela união matrimonial. Muitos teólogos manifestam inclusive que foi, neste enlace de santa vocação e harmonia, que Jesus elevou o casamento à condição de sacramento, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E o vinho veio a faltar. Nossa Senhora tem a clara percepção da situação constrangedora e aflitiva dos noivos e de suas famílias, porque faltou o vinho. É a Mãe que roga, que intercede, que suplica ao Filho Amado: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). Medianeira e intercessora de nossas aflições e angústias, de Caná até os confins da terra, Nossa Senhora leva a Jesus as súplicas de todos os seus filhos e filhas de todos os tempos. É ela que nos abre as portas da manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora, mediante a sua súplica de Mãe face à angústia humana: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo 2,5).

E eis que havia ali seis talhas de pedra, que foram 'enchidas até a boca' (Jo 2,7). E a água se fez vinho, nas mãos do Salvador. Da angústia, faz-se a alegria; da aflição, tem-se o júbilo; da ansiedade, nasce o alívio e a serenidade. Alegria, júbilo, alívio e serenidade que são os doces frutos da plena santificação. Este vinho nos traz a libertação do pecado e nos coloca nas sendas do céu, pois nos deleita com as graças da virtude, do santo juízo, da sabedoria de Deus. Mas nos cabe encher nossas talhas de água até a boca, prover os nossos corações do mais pleno amor humano, para que a santificação de nossas almas seja completa no coração de Deus.

'Este foi o o início dos sinais de Jesus' (Jo 2,11). Em Caná da Galileia e por Maria, mais que o primeiro milagre, a glória de Jesus foi manifestada à humanidade pecadora. O firme propósito pessoal em busca da virtude e da superação das nossas vicissitudes humanas é a água que será transformada no vinho pela graça e pela misericórdia de Deus em nossos corações aflitos e inquietos, enquanto não repousados na glória eterna. Enchei, portanto, as vossas talhas de água e fazei tudo o que Ele vos disser, com a intercessão de Maria. Eis aí a pequena e a grande via em direção ao Coração de Deus, que nos foi legada um dia em Caná da Galileia.

sábado, 15 de janeiro de 2022

SUAVE É O JUGO DO SENHOR

1. Jesus: Filho, mais me agradam a paciência e humildade nos reveses que a muita consolação e fervor nas prosperidades. Por que te entristece uma coisinha que contra ti disseram? Ainda que fosse maior, não te devias ter perturbado. Deixa passar isso agora, não é novidade; não é a primeira vez, nem será a última, se muito tempo viveres. Mas valoroso és, enquanto te não sucede alguma adversidade. Sabes até dar bons conselhos e acalentar os outros com tuas palavras; mas quando bate, de improviso, à tua porta a tribulação, logo te falta conselho e fortaleza. Considera tua grande fraqueza, que tantas vezes experimentas nas pequenas coisas; todavia, é para tua salvação que isso e semelhantes coisas acontecem.

2. Procura esquecer isso como melhor souberes e, se te impressionou, não te abale nem te perturbe muito tempo. Sofre ao menos com paciência o que não podes sofrer com alegria. Ainda que te custe ouvir esta ou aquela palavra e te sintas indignado, modera-te, e não deixes escapar da tua boca alguma expressão despropositada, com que os pequenos se poderiam escandalizar. Logo se acalmará a tempestade em teu coração, e a dor se converterá em doçura, com a volta da graça. Eu ainda vivo, diz o Senhor, pronto para te ajudar e consolar, mais do que nunca, se em mim confiares e me invocares com fervor.

3. Sê mais corajoso, e prepara-te para suportar coisas maiores. Nem tudo está perdido por te sentires a miúdo tribulado e gravemente tentado. Homem és e não Deus; carne és e não anjo. Como poderás tu perseverar sempre no mesmo estado de virtude, se tal não pôde o anjo no céu, nem o primeiro homem no paraíso? Eu sou que levanto os aflitos e os salvo, elevo à minha divindade os que conhecem as suas fraquezas.

4. A alma: Senhor, bendita seja a vossa palavra, mais doce na minha boca que um favo de mel (Sl 18,11; Sl 118,103). Que seria de mim em tantas tribulações e angústias, se vós me não confortásseis com vossas santas palavras? Contanto que chegue afinal ao porto de salvação, que importa o que e quanto tiver sofrido? Concedei-me bom fim, ditoso trânsito deste mundo. Lembrai-vos de mim, meu Deus, e conduzi-me pelo caminho reto ao vosso reino! Amém.

(Da Imitação de Cristo ; Livro III - Da Consolação Interior)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

Fala, pois, muitas vezes de Deus e experimentarás o que se diz de São Francisco - que, quando pronunciava o nome do Senhor, sentia a alma inundada de consolações tão abundantes que até sua língua e seus lábios se enchiam de doçura. Mas fala de Deus como de Deus, isto é, com um verdadeiro sentimento de respeito e de piedade e nunca fales dele manifestando uma ciência vã ou num tom de pregador, mas com espírito de caridade, mansidão e humildade. Imita, quanto a isto, a Esposa dos cantares, derramando o mel delicioso da devoção e das coisas divinas no coração do próximo, e pede a Deus em espírito que se digne deixar cair este orvalho santo nas almas das pessoas que te ouvem...  Jamais fales de Deus ou da devoção como assunto de diversão ou passatempo, mas sempre atenta e devotamente; digo isso para te prevenir contra uma espécie de vaidade muito perigosa em que acostumam incorrer muitas pessoas que fazem profissão de piedade, isto é, dizer a toda hora muitas palavras santas, como uma simples conversa e sem nenhuma atenção, e depois disso pensa-se que se é realmente tal como se deixou transparecer aos outros, o que infelizmente não se é de modo algum.

(São Francisco de Sales)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

VERSUS: BLASFÊMIA X BLASFÊMIA


'Hoje não há uma só blasfêmia ou imoralidade que seja proibida. Uma obra moderna pode consistir em uma dança desenfreada com a participação de todos os demônios e de todos os porcos. Pode incluir qualquer coisa e qualquer pessoa, exceto alguém capaz de exorcizar os demônios e espantar os porcos'.

(G. K. Chesterton)




'Quando ouvires o teu próximo blasfemar, repreende-o com veemência; se necessário, quebra-lhe a boca, santificando assim as tuas mãos'.

(São João Crisóstomo)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

'QUEM É PELO SENHOR, JUNTE-SE A MIM!'


Vede, Senhor Deus dos exércitos, os capitães que formam companhias completas, os potentados que ajuntam numerosos exércitos, os navegadores que reúnem frotas inteiras, os mercadores que se congregam em grande número nos mercados e nas feiras! Quantos bandidos, ímpios, ébrios e libertinos se unem em massa contra Vós todos os dias, e isto com tanta facilidade e prontidão! Basta soltar um assobio, rufar um tambor, mostrar a ponta embotada de uma espada, prometer um ramo seco de louros, oferecer um pedaço de terra amarela ou branca; basta, em poucas palavras, uma fumaça de honra, um interesse de nada, um mesquinho prazer animal que se tem em vista, para, num instante reunir os bandidos, ajuntar os soldados, congregar os batalhões, convocar os mercadores, encher as casas e os mercados, e cobrir a terra e o mar com uma multidão inumerável de réprobos, que, embora divididos todos entre si, ou pelo afastamento dos lugares, ou pela diversidade dos gênios, ou por seus próprios interesses, se unem, entretanto, e se ligam até à morte, para fazer-vos guerra sob o estandarte e sob o comando do demônio.

E Vós, grande Deus! embora haja tanta glória e tanto lucro, tanta doçura e vantagem em servir-Vos, quase ninguém tomará Vosso partido? Quase nenhum soldado se alistará em Vossas fileiras? Quase nenhum São Miguel clamará no meio de seus irmãos, cheio de zelo pela Vossa glória: Quis ut Deus? [Quem como Deus?]. Ah! permiti que brade por toda parte: fogo, fogo, fogo! socorro, socorro, socorro! Fogo na casa de Deus! Fogo nas almas, fogo até no santuário! Socorro, que assassinam nosso irmão! Socorro, que degolam nossos filhos! Socorro que apunhalam nosso bom Pai! Si quis est Domini, iungatur mihi [Quem é pelo Senhor, junte-se a mim!]

Venham todos os bons sacerdotes que estão espalhados pelo mundo cristão, os que estão atualmente na peleja, e os que se retiraram do combate para se embrenharem pelos desertos e ermos, venham todos esses bons sacerdotes e se unam a nós. Vis unita fit fortior [Uma força unida torna-se mais forte], para que formemos, sob o estandarte da Cruz, um exército em boa ordem de batalha e bem disciplinado, para de concerto atacar os inimigos de Deus que já tocaram a rebate: Exsurgat Deus et dissipentur inimici eius! [Levante-se Deus, e sejam dispersados os seus inimigos!].

Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o Vosso poder, em toda a Vossa misericórdia e justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a Vossa casa, defendam a Vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o Vosso sangue, para que só haja um aprisco e um pastor, e que todos Vos rendam glória em Vosso santo templo: Et in templo eius omnes dicent gloriam [E no seu templo todos dizem: Glória!]. Amém.

(Excertos da 'Oração Abrasada', de São Luís Maria Grignion de Montfort pedindo a Deus missionários para a sua Companhia de Maria)

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (122/124)

 

122. OITO CADÁVERES!

Há homens, que parecem feras. Entre os comunistas vermelhos há alguns desses homens. Foi no tempo do Movimento Nacional, que libertou a Espanha das garras do comunismo. O que vamos narrar passou-se perto de Cordoba. Triunfaram ali, desde os primeiros instantes, as hordas comunistas. Saíram como saem as feras de seus covis e, em poucas horas, mais de cem cadáveres de nobres e cristãos jaziam por terra junto aos muros do cemitério.

Enfureceram-se principalmente contra uma família de fé arraigada, de coração generoso e de fortuna regular. Jamais negaram os direitos dos operários. Jamais um pobre bateu às portas de sua casa e dali foi despedido sem auxílio. O pai, os filhos, as filhas, todos naquela numerosa família se distinguiam pela firmeza de suas crenças católicas.

➖ 'Agora, estes!' - bradaram aquelas feras humanas. E nadando em sangue, caiu o velho pai, homem fidalgo e distinto.. E nadando em sangue, caíram três filhos seus, jovens na flor da idade e nadando em sangue, caíram também dois genros, que eram o encanto de suas esposas e o orgulho da religião. Havia ainda outros dois jovens que eram noivos das duas filhas solteiras. 
➖ 'Agora, estes!' - rugiram aquelas hienas. E os dois caíram, também, nadando em sangue.

Oito cadáveres jaziam às portas daquela residência, onde até poucas horas viviam felizes aqueles corações cristãos. Oito cadáveres! Eram os seres mais amados, eram a esperança da família, eram o amor de todos... Oito cadáveres!

➖ 'Agora, estes!' - continuavam uivando aquelas feras sedentas de sangue humano. E em desordenado tropel penetraram naquela fidalga residência, espalhando-se por ela, roubando, saqueando, destruindo tudo o que encontravam. Enfim, cansados de tantas fadigas, estiraram-se nos sofás e cadeiras de braço, bebendo e cantando, estavam satisfeitos de sua obra. Oito cadáveres!

E a esposa? E as filhas casadas? E as solteiras? E os tenros e delicados netinhos? Não os esqueceram, aqueles vis criminosos. Trancaram-nos num quarto, dizendo-lhes que esperassem a decisão do povo: ao povo pertencia dispor o destino deles. E o povo dispôs que fossem enxotados de sua própria casa, que desde aquele momento passava a ser propriedade do comunismo.

E de sua casa teve de sair a infeliz família. Ia adiante a velha mãe, de cabelos brancos; atrás, as filhas casadas, carregando seus tenros filhinhos e, por fim, as filhas solteiras sem pai, sem irmãos, sem amores, sem um pedaço de pão e, assim, foram batendo de porta em porta e viram que as portas de muitas famílias que julgavam amigas se fecharam para elas. E por isso levavam a maldição da 'Casa do Povo'. Ó como foi triste, foi doloroso, foi revoltante! Foi, em suma, a obra do comunismo ateu, do qual nos livre a misericórdia de Deus.

123. BAILANDO COM O DIABO

Uma jovem francesa, que frequentava as salas de baile, atraída pela fama do santo Cura d'Ars, resolveu procurá-lo para se confessar. Vejamos como ela narrou o seu colóquio com o santo.
➖ Lembras-te - disse ele - da última vez que foste ao baile? Estava lá um moço que te parecia bonito, e te causou sentimentos de ciúme e de inveja, porque bailava somente com as outras e não se dignava dirigir-te um olhar sequer? 
➖ É verdade. Lembro-me, sim.
➖ Lembras-te que, em dado momento, ele retirou-se da sala, deixando-te desiludida, por não se ter dignado dançar contigo nem uma vez?
➖ Sim.
➖ E notaste, então, um pequeno fenômeno: duas como chamazinhas entre as solas dos sapatos dele e o pavimento da sala, quando se retirou. E não fizeste caso, atribuindo aquilo a uma ilusão de ótica do contraste entre as luzes e a obscuridade da porta de saída... lembras-te disso?
➖ Sim; lembro-me.
➖ Pois bem. Aquele que te parecia um rapaz encantador, que te causou tantos ciúmes, tanta inveja, tanto despeito... quem era?
➖ ....
➖ Aquele era o diabo. Dançou com aquelas que já lhe pertencem, com aquelas que não tem o menor escrúpulo da impureza. Contigo não quis dançar, porque ainda eras pura, e sabia que virias te confessar.
A moça ficou impressionadíssima com aquelas revelações do santo e prometeu que nunca mais iria a um baile. E tu, jovem leitora, não achas que contigo poderia acontecer?

124. UM PREFEITO LIVRE-PENSADOR LEVA NA CABEÇA

Há cerca de quarenta anos, estava em uma vila da Áustria o coronel Dobner von Dobenau com o seu batalhão. Ia estabelecer ali o seu quartel de inverno. A população alegrou-se com isso, pois esperava fazer bons negócios com os oficiais e soldados e contava, além disso, com o bom número de distrações. O prefeito da cidade, acompanhado de seus conselheiros municipais, saiu a saudar o coronel. Este era fervoroso católico e um de seus filhos era padre. Mas, ignorando essas circunstâncias, e julgando-o livre-pensador, o prefeito dirigiu-lhe longo discurso, insistindo na alegria que os habitantes da cidade sentiam com a presença da tropa que, certamente, viria quebrar a monotonia da estação hibernal. 

Não pôde deixar, porém, de mostrar o seu desagrado pelas práticas religiosas, dizendo:
➖ Uma só coisa desagradável há aqui, meu coronel. É que hoje, precisamente, os padres deram início a uma grande missão que vai durar mais de oito dias. Infelizmente não a podemos impedir, apesar de vermos na mesma um grande desmancha-prazeres. O batalhão deve, entretanto, consolar-se com o pensamento de que esses dias passarão e, logo depois, a alegria será muito maior.

Terminado o discurso, o coronel, carregando os sobrolhos, respondeu em tom seco:
- Senhor prefeito, não vejo na missão absolutamente nenhum desmancha-prazeres. Pelo contrário; eu só não assistirei aos sermões da missão, quando o serviço assim me permitir como meus oficiais, bem como toda a tropa, terão o prazer de me acompanhar. Eu só sinto não ter o poder, senhor prefeito, de mandar também a vós e aos vossos conselheiros a também ir a todos os sermões. As pregações não vos fariam mal nenhum; muito ao contrário, elas fariam imenso bem.
Após o seu destemido discurso, retirou-se friamente o coronel, deixando bastante desapontados e confusos os seus visitantes. E a lição foi bem merecida.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)