sábado, 19 de novembro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XLIV)

 

Capítulo III

Consolação das Almas - Santo Estanislau de Cracóvia e a Ressurreição de Peter Miles

Este contentamento em meio ao sofrimento mais intenso não pode ser explicado senão pelas divinas consolações que o Espírito Santo infunde nas almas do Purgatório. O Espírito Divino, por meio da fé, da esperança e da caridade, dispõe estes dons à disposição dos enfermos que devem submeter-se a um tratamento muito penoso, mas cujo efeito é o de restabelecer-lhes a saúde perfeita. O doente sofre mas ama o seu sofrimento salutar. O Espírito Santo, o Consolador, dá um contentamento semelhante às almas santas. 

Temos disso um exemplo singular na pessoa de Peter Miles, que foi ressuscitado dos mortos por Santo Estanislau de Cracóvia, mas que preferiu retornar ao Purgatório a viver novamente na terra. O célebre milagre desta ressurreição aconteceu em 1070. Vejamos como tal fato é relatado na Acta Sanctorum de 7 de maio. Santo Estanislau era bispo de Cracóvia quando o duque Boleslas II governava a Polônia. Ele não deixou de lembrar a este príncipe dos seus deveres, os quais violou escandalosamente  diante de todo o seu povo.

Boleslas irritou-se com a santa liberdade do prelado e, para se vingar, incitou contra ele os herdeiros de um certo Peter Miles, que morrera três anos antes, depois de ter vendido um pedaço de terra à igreja de Cracóvia. Os herdeiros acusaram o santo de ter usurpado o terreno, sem o ter pago ao proprietário. Estanislau declarou que havia pago pelo terreno, mas como as testemunhas que deveriam tê-lo defendido foram subornadas ou intimidadas, ele foi denunciado como usurpador da propriedade alheia e condenado a fazer restituição. Então, vendo que nada tinha a esperar da justiça humana, elevou o seu coração a Deus e recebeu então uma inspiração repentina. Ele pediu um prazo de três dias, prometendo fazer Peter Miles comparecer pessoalmente, para que ele testemunhasse a compra legal e o pagamento do terreno.

O prazo foi concedido a ele em desprezo. O santo fez jejum e recolheu-se em profunda oração a  Deus para assumir a defesa da sua causa. No terceiro dia, depois de ter celebrado a Santa Missa, saiu acompanhado pelo seu clero e de muitos fiéis, ao local onde o homem havia sido sepultado. Por suas ordens, a sepultura foi aberta; e nada continha além de ossos. Ele os tocou com o seu báculo e, em nome dAquele que é a Ressurreição e a Vida, ordenou que o morto se levantasse. De repente, os ossos se reuniram, cobriram-se de carne e, à vista do povo estupefato, viu-se o morto pegar o bispo pela mão e caminhar em direção ao tribunal. Boleslas, com a sua corte e uma imensa multidão, aguardava o resultado com a mais viva expectativa. 'Eis a testemunha - disse o santo a Boleslas - 'ele vem, príncipe, para dar testemunho diante de ti; interrogue-o pois e ele te responderá'. É impossível descrever a estupefação do duque, dos seus conselheiros e de toda a multidão. Peter Miles afirmou então que havia sido pago pelo terreno; em seguida, voltando-se para os seus herdeiros, repreendeu-os por terem acusado o piedoso prelado contra todos os direitos da justiça; e então ele os exortou a fazer penitência por um pecado tão grave.

Foi assim que a iniquidade, que se acreditava já certa de sucesso, foi confundida. Agora vem a circunstância que diz mais respeito ao nosso assunto e à qual desejamos nos referir. Desejando realizar este grande milagre para a glória de Deus, Estanislau propôs ao defunto que, se desejasse viver mais alguns anos, obteria para ele este favor de Deus. O homem respondeu que não tinha tal desejo. Ele estava no Purgatório, mas preferia voltar para lá imediatamente e suportar as suas dores do que expor-se à condenação nesta vida terrestre. Ele pediu ao santo apenas que implorasse a Deus que o tempo dos seus sofrimentos fosse reduzido, para que pudesse entrar mais cedo na morada dos eleitos. Depois disso, e acompanhado pelo bispo e uma grande multidão, Peter Miles voltou ao seu túmulo, deitou-se, e seu corpo desfez-se em ossos, retomando o estado tal como encontrado previamente. Temos motivos para acreditar que o santo obteve logo a libertação da sua alma.

O que há de mais notável neste exemplo, e que mais deveria chamar a nossa atenção, é que uma alma do Purgatório, depois de ter experimentado os tormentos mais excruciantes, preferiu aquele estado de sofrimento à vida deste mundo; e a razão que se dá para essa preferência é que, nesta vida mortal, estamos expostos ao perigo de nos perdermos e incorrermos em uma condenação eterna.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)