Quando empregamos as palavras vida de oração, contemplação, vida contemplativa - termos que se encontram nos Padres da Igreja e nos escolásticos - a nossa intenção é sempre designar a vida interior normal, acessível a todos, e não os estados pouco comuns de oração que a teologia mística estuda, como êxtases, visões, arrebatamentos, etc. Sairíamos do nosso plano, se nos demorássemos num estudo de ascetismo. Limitamo-nos a recordar, em poucas palavras, o que todos os católicos devem aceitar como absolutamente certo, no que diz respeito ao governo da sua alma.
Primeira Verdade:
A vida sobrenatural é a vida do próprio Jesus Cristo em mim, pela fé, pela esperança e pela caridade. A presença de Nosso Senhor, por meio desta vida sobrenatural, não é a presença real, própria da sagrada comunhão, mas uma presença de ação vital, como pode ser, no corpo humano, a ação da cabeça ou do coração sobre os membros; ação íntima, que Deus, quase sempre, me oculta, tornando-a insensível às minhas faculdades naturais, para aumentar o mérito da minha fé; ação divina que deixa subsistir o meu livre arbítrio e utiliza as causas segundas - acontecimentos, pessoas e coisas - para me fazer conhecer a vontade de Deus e aumentar a minha participação na vida divina. Esta vida, iniciada no batismo, pelo estado de graça; aperfeiçoada pela confirmação; conservada e enriquecida pela eucaristia, é a minha vida cristã.
Segunda Verdade:
Jesus Cristo comunica-me o seu Espírito por meio desta vida, e torna-se, assim, o princípio superior que me leva - caso não lhe oponha obstáculos - a pensar, julgar, amar, querer, sofrer e trabalhar com Ele. por Ele e nEle. As minhas ações exteriores tornam-se manifestações desta vida de Jesus em mim, e começo a realizar o ideal de vida interior formulado por São Paulo: 'Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim' (Gl 2, 20). A vida cristã, a piedade, a vida interior, a santidade não diferem essencialmente entre si; são os diversos graus de um só e mesmo amor; são a aurora, a luz e o esplendor do mesmo sol.
A minha vida interior há de ser, pois, a minha vida cristã aperfeiçoada. O essencial da vida cristã limita-se aos esforços necessários para conservar a graça santificante. A vida interior vai mais além. Visa o desenvolvimento desta graça, procura atrair graças atuais abundantes e corresponder a elas. Posso, assim, defini-la como o estado de atividade da alma que regula as suas inclinações naturais, e se esforça por adquirir o hábito de julgar e de se dirigir em tudo pela luz do Evangelho e os exemplos de Nosso Senhor. Portanto, dois movimentos. Em virtude do primeiro, a alma subtrai-se a tudo quanto as criaturas possam ter de contrário à vida sobrenatural, e procura estar incessantemente presente a si mesma: Aversio a creaturis. Em virtude do segundo, a alma tende para Deus e com Ele se une: Conversio ad Deum. Assim é que a alma quer ser fiel à graça que Nosso Senhor lhe oferece a cada momento. Em suma, vive unida a Jesus e realiza a sua vontade: 'O que permanece em Mim, e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer' (Jo 15, 5).
Terceira Verdade:
Privar-me-ia de um dos mais poderosos meios de adquirir esta vida interior, se me não esforçasse por ter fé precisa e sólida nesta presença ativa de Jesus em mim, e, sobretudo, por alcançar que essa presença se torne em mim uma realidade viva, vivíssima até, que vá penetrando, cada vez mais, a atmosfera das minhas faculdades. Jesus tornar-se-á, assim, a minha luz, o meu ideal, o meu conselho, o meu apoio, o meu recurso, a minha força, o meu médico, a minha consolação, a minha alegria, o meu amor, numa palavra a minha vida. Adquirirei, deste modo, todas as virtudes. Somente então poderei dizer, com toda a sinceridade, a admirável oração de São Boaventura, que a Igreja aconselha como ação de graças depois da missa: 'Feri, dulcíssimo Jesus, o mais íntimo e profundo do meu ser com o dardo suavíssimo e salutar do vosso amor...'
Quarta Verdade:
A minha vida sobrenatural pode crescer, a cada instante, em proporção com a intensidade do meu amor a Deus, por meio de nova infusão da graça da presença ativa de Jesus em mim. Tal infusão é produzida através dos atos meritórios (virtude, trabalho, sofrimentos, oração, missa, etc.) e pelos sacramentos, sobretudo a Eucaristia. É, pois, certo - e esta consequência esmaga-me com a sua grandeza, mas também me enche de júbilo - que por meio de cada pessoa ou acontecimento, Jesus manifesta-se a mim, ocultando, sob essas aparências, a sua sabedoria e amor. É sempre Jesus que se apresenta à minha alma. por meio da graça do momento presente - missa, oração, leitura, atos de caridade, de renúncia, de luta, de confiança - solicitando sempre a minha cooperação para aumentar em mim a sua vida. Ousarei esconder-me?
Quinta Verdade:
A tríplice concupiscência, causada pelo pecado original, e aumentada por cada pecado atual, gera em mim elementos de morte opostos à vida de Jesus. Ora, essas inclinações e tentações diminuem esta vida e podem chegar a suprimi-la. Mas, se a minha vontade resistir, elas não lhe causarão qualquer prejuízo. Pelo contrário, contribuirão, como qualquer elemento de combate espiritual, para aumentá-la, conforme a medida do meu esforço.
Sexta Verdade:
Sem o emprego fiel de certos meios, a inteligência obscurece-se e a vontade torna-se fraca para cooperar com Jesus no aumento e conservação da sua vida em mim. A diminuição dessa vida produz a tibieza da vontade. A dissipação, a covardia, a ilusão, fazem-me cair nos pecados veniais. E estes põem em risco a minha salvação, porque dispõe a minha alma para o pecado mortal. Se tiver a infelicidade de cair nesta tibieza (e se cair ainda mais baixo), devo tentar tudo para dela sair, reavivando o meu temor de Deus, pondo-me em presença do meu fim, da morte, dos juízos de Deus, do inferno, da eternidade, do pecado, etc., e reacendendo o meu amor a Jesus, pela consideração das suas chagas, da sua paixão e morte na cruz. Irei em espírito ao Calvário, onde me prostrarei aos pés sacratíssimos do Redentor, a fim de que o seu sangue vivo, correndo pela minha cabeça e pelo meu coração, dissipe a cegueira e o gelo da minha alma e galvanize a minha vontade.
Sétima Verdade:
Se a minha sede de viver de Jesus deixar de aumentar, é porque não possuo o grau de vida interior que Ele exige de mim. Tal sede há de dar-me o desejo de lhe agradar em tudo e o temor de lhe desagradar. Também é indispensável o mínimo de recolhimento, que me permita, no decurso das ocupações, conservar o coração numa pureza e generosidade suficientemente grandes para não ser abafada a voz de Jesus. Ora, essa sede diminuirá, certamente, se não puser em prática certos meios: oração da manhã, vida litúrgica, sacramentos, comunhões espirituais, exame de consciência, leitura espiritual, etc., ou se, por culpa minha, esses meios já nada me dizem. Sem vida interior e recolhimento, os pecados veniais hão de multiplicar-se na minha vida, e chegarei a não fazer caso deles. Para os ocultar e enganar-me a mim mesmo, servirão as aparências de piedade, o zelo pelas obras, etc..
Oitava Verdade:
A minha vida interior será o que for a minha guarda do coração: 'Aplica-te com todo o cuidado possível à guarda do teu coração, porque dele é que procede a vida' (Pv 4, 23). Esta guarda do coração é a solicitude em preservar todos os meus atos, de tudo o que pode viciar a sua causa motriz ou a sua prática. Solicitude tranquila, natural, mas também enérgica, pois baseia-se no recurso filial a Deus. É trabalho mais do coração e da vontade que do espírito, o qual deve ficar livre para a prática dos seus deveres. Longe de embaraçar a ação, a guarda do coração aperfeiçoa-a, regulando-a pelo espírito de Deus e acomodando-a aos deveres de estado.
Este exercício pratica-se a todo o momento. É uma observação, por meio do coração, das ações presentes e das diversas partes de cada ação, à medida em que elas se realizam. É a observância exata do age quod agis. Como sentinela vigilante, a alma observa, atentamente, os movimentos do seu coração, e vigia as suas inclinações, as paixões, as palavras e as ações. A guarda do coração exige certo recolhimento; uma alma dissipada não consegue realizá-la. Mas com a sua prática frequente, adquire-se o hábito. Para onde vou? Que faria Jesus em meu lugar? O que me aconselharia? Que exige Ele de mim neste momento? Tais são as interrogações que. espontaneamente, se apresentam à alma sedenta de vida interior. Para a alma que vai a Jesus, por meio de Maria, a guarda do coração reveste-se de um caráter ainda mais afetivo, e o recurso a esta boa Mãe torna-se verdadeira necessidade para o seu coração.
Nona Verdade:
Quando uma alma procura imitar Jesus, em tudo e com todo o afeto, Ele reina nela. Nesta imitação há dois graus: (i) A alma esforça-se por se tornar indiferente às criaturas, consideradas em si mesmas, quer sejam conformes quer contrárias aos seus gostos. A exemplo de Jesus, apenas procura a vontade de Deus: 'Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a dAquele que Me enviou' (Jo 6, 38). (ii) 'Jesus Cristo não procurou o que lhe era agradável' (Rm 15, 3). A alma inclina-se de melhor vontade para o que a contraria e repugna à natureza. Realiza então o agere contra (agir contra) de que fala Santo Inácio na sua célebre meditação do Reino de Cristo. É a ação contra a natureza, a fim de se preferir o que imita a pobreza do Salvador e o seu amor pelos sofrimentos e pelas humilhações. Segundo a expressão de São Paulo, é, então, que a alma conhece, verdadeiramente, a Cristo (Ef 4, 20).
Décima Verdade:
Seja qual for o meu estado, Jesus oferece-me, caso queira rezar e corresponder à sua graça, todos os meios de regressar à vida interior. Então, a minha alma não cessará de possuir a alegria, mesmo até no seio das provações, e nela se realizarão as palavras de Isaías: 'Então a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se; a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá; clamarás e Ele dirá: Eis-me aqui! (...) O Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus ossos e serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis' (Is 58, 8-9-11).
Décima Primeira Verdade:
Deus quer que eu me santifique e me dedique às obras de apostolado. Devo, pois, gravar na minha alma esta convicção: Jesus quer ser a vida dessas obras. Os meus esforços, por si só, nada são: 'Sem Mim, nada podeis fazer' (Jo 15, 5). Somente serão úteis e abençoados por Deus, quando, por meio da verdadeira vida interior, estiverem unidos à ação vivificadora de Jesus. Tornar-se-ão, assim, onipotentes: 'Tudo posso nAquele que me conforta' (Fl 4, 13). Se proviessem da confiança orgulhosa nos meus talentos, seriam rejeitados por Deus. Porventura não seria sacrílega loucura da minha parte querer arrebatar a Deus, para com ela me adornar, uma porção da sua glória?
Longe de gerar em mim a pusilanimidade, tal convicção será a minha força. Sentirei a necessidade da oração para obter a humildade, que é um tesouro para a minha alma, a certeza do auxílio de Deus e o penhor do êxito para as minhas obras! Compenetrado da importância deste princípio, farei, durante os meus retiros, um sério exame de consciência para saber: se estou convicto da nulidade da minha ação, e da sua força, quando unida à ação de Jesus; se excluo, implacavelmente, qualquer vaidade, qualquer auto-contemplação, na minha vida de apóstolo; se me mantenho numa desconfiança absoluta de mim mesmo; e se peço a Deus que dê vida às minhas obras e me preserve do orgulho, primeiro e principal obstáculo para receber o seu auxílio.
Este credo da vida interior, tornado a base da existência para a alma, assegura-lhe, já neste mundo, uma participação da felicidade celeste.Vida interior, vida dos predestinados.Corresponde ao fim que Deus se propôs ao criar-nos. Corresponde ao fim da Encarnação: 'Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que nós vivamos por Ele' (l Jo 4, 9). 'O fim da criatura humana' - diz São Tomás - 'é unir-se a Deus: toda a sua felicidade consiste nisso'. Ao contrário das alegrias do mundo, se nessa vida há espinhos exteriores, dentro há rosas. 'Devemos lamentar os pobres mundanos' - dizia o santo cura dArs - 'pesa-lhes sobre os ombros um manto forrado de espinhos; não podem fazer um movimento sem se picarem; ao passo que os verdadeiros cristãos têm um manto forrado de arminho'. 'Veem a cruz, mas não veem a unção', dizia São Bernardo. Estado celeste! A alma torna-se um céu vivo. Como Santa Margarida Maria, ela canta: 'Possuo constantemente, acompanhando os passos meus, o Deus do meu coração, e o coração do meu Deus'. É o começo da bem-aventurança. A graça é o céu na terra.
(Excertos da obra 'A Alma de Todo Apostolado', de Dom J.B. Chautard)