sexta-feira, 3 de junho de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXXIII)

Capítulo XXXIII

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados da Tibieza - São Bernardo e o Monge de Claraval - Venerável Madre Inês e a Irmã de Haut Villars - Padre Surin e a Religiosa de Loudun

Os bons cristãos, sacerdotes e religiosos, que desejam servir a Deus de todo o coração, devem evitar as armadilhas da tibieza e da negligência. Deus quer ser servido com fervor; aqueles que são mornos e indiferentes tendem a suscitar o seu descontentamento e Ele chega mesmo a ameaçar com a sua maldição aqueles que realizam funções sagradas de maneira descuidada – isto é, Ele tende a punir com grande rigor no Purgatório toda negligência feita ao seu serviço.

Entre os discípulos de São Bernardo, que perfumaram o célebre vale de Claraval com o odor de sua santidade, houve um cuja negligência contrastava tristemente com o fervor dos seus irmãos. Apesar de seu duplo caráter de sacerdote e de religioso, ele deixou-se levar por um deplorável estado de tibieza. No momento da morte, chamado à presença de Deus, apresentou-se sem ter dado nenhum sinal de emenda.

Enquanto se celebrava a Missa de Réquiem, um venerável religioso de rara virtude logrou conhecer por uma luz interior que, embora o defunto não estivesse perdido eternamente, sua alma purgava numa terrível condição. Na noite seguinte, a alma lhe apareceu em uma condição triste e miserável. 'Ontem' - disse ele - 'você ficou sabendo do meu destino deplorável; venha ver agora as torturas a que estou condenado como punição por minha indesculpável tibieza'. Conduziu então o venerável até a beira de um poço muito grande e profundo, cheio de fumaça e de chamas. 'Eis aqui o lugar' - disse ele - 'onde os ministros da Justiça Divina têm ordens para me atormentar; não cessam de me fazer mergulhar nesse abismo e, quando me puxam, é apenas para me precipitar novamente nele, sem me dar qualquer momento de trégua ou de descanso'.

Na manhã seguinte, o religioso foi ao encontro de São Bernardo para lhe dar a conhecer a sua visão. O santo abade, que tivera uma visão semelhante, recebeu-a como uma advertência do céu à sua comunidade. Convocou um Capítulo [assembleia dos confrades] e, com os olhos lacrimejantes, relatou a dupla visão recebida, exortando os seus religiosos a socorrer em favor da alma do pobre irmão falecido por meio de sufrágios de caridade, e a aproveitar este triste exemplo para preservar o fervor e evitar a menor negligência nos serviços prestados a Deus.

O exemplo a seguir é relatado por M. de Lantages na Vida da Venerável Madre Inês de Langeac, uma religiosa dominicana. Enquanto esta serva de Deus estava um dia rezando no coro, uma religiosa, que ela não conhecia, apareceu de repente diante dela, miseravelmente vestida e com um semblante que expressava a mais profunda dor. Ela a olhou com grande espanto, perguntando-se quem poderia ser; quando então ouviu uma voz lhe dizer distintamente: 'Esta é a Irmã de Haut Villars'. A Irmã de Haut Villars tinha sido uma religiosa do mosteiro de Puy que havia falecido há cerca de dez anos. Embora a aparição não tivesse dito qualquer palavra, demonstrou claramente pelo seu semblante amargurado o quanto precisava de ajuda.

Madre Inês compreendeu isso perfeitamente e começou, a partir daquele dia, a oferecer as mais fervorosas orações pelo alívio desta alma. A alma da religiosa não se contentou com a primeira visita; continuou a aparecer pelo espaço de três semanas, quase em todos os lugares e em todos os momentos, especialmente depois da Sagrada Comunhão e das orações, manifestando sempre um grande sofrimento pela expressão dolorosa do seu semblante.

Inês, a conselho de seu confessor e sem mencionar a aparição, pediu a sua Superiora permitir que a comunidade pudesse oferecer orações particulares pelas almas do Purgatório, por intenção dela. Como, apesar dessas orações, as aparições continuaram, ela temeu muito por algum engano. Deus, no entanto, dignou-se a remover esse receio. Assim Ele fez saber à sua serva fiel, pela voz do seu anjo guardião, que a aparição se tratava realmente de uma alma do Purgatório, cujo sofrimento era resultado de sua negligência no serviço a Deus. A partir deste momento, as aparições cessaram e não se sabe exatamente quanto tempo aquela alma infeliz permaneceu ainda no Purgatório. 

Citemos outro exemplo, bem adequado para estimular o fervor dos fiéis. Uma santa religiosa chamada Maria da Encarnação, do convento das Ursulinas, em Loudun, apareceu algum tempo depois de sua morte à sua Superiora, uma mulher de inteligência e mérito, que descreveu os detalhes da aparição ao Padre Surin da Companhia de Jesus: 'No dia 6 de novembro' - escreveu ela - 'entre as três e as quatro horas da manhã, a Irmã Encarnação apareceu diante de mim, com uma expressão de doçura em seu rosto que parecia mais de debilidade do que de sofrimento, mas, ainda assim, percebi nela uma grande angústia.

A princípio, fiquei tomada de grande pavor mas, como não havia nada nela que inspirasse medo, recuperei a serenidade. Perguntei a ela então em qual estado ela se encontrava e se podíamos fazer algo em favor dela. Ela respondeu: 'Eu satisfaço a Justiça Divina no Purgatório'. Insisti que ela me dissesse o motivo pelo qual ainda estava detida lá. Então, com um suspiro profundo, respondeu: 'É por ter sido negligente em vários exercícios comuns; uma certa aquiescência pela qual me deixei levar pelo exemplo de religiosas tíbias; enfim, e principalmente, o hábito que eu tinha de reter em minha posse coisas das quais não tinha permissão para dispor e de usá-las para satisfazer as minhas necessidades e inclinações naturais. Ah! se os religiosos soubessem' - continuou a aparição - 'o mal que fazem às suas almas não se aplicarem à perfeição, e quão caro eles um dia expiarão as satisfações que se dão contra a luz de suas consciências, como seriam outros os seus esforços para fazer violência contra si mesmos! Deus vê as coisas diferentes de nós, seus julgamentos são outros'. 

Perguntei a ela novamente se poderíamos fazer alguma coisa para aliviar os seus sofrimentos. Ela me respondeu: 'Desejo ver e possuir a Deus, mas me contento em satisfazer a sua Justiça, desde que isto seja do seu agrado'. Pedi-lhe então que me dissesse se tinha sofrido muito. 'Minhas dores' - respondeu -'são incompreensíveis para aqueles que não as sentem'. Ao dizer essas palavras, aproximou-se do meu rosto para se despedir de mim. Parecia que eu estava sendo queimada por uma brasa de fogo ardente, embora o rosto dela não tivesse tocado o meu e o meu braço, que mal havia roçado o seu manto, foi queimado vivamente e me causou uma dor considerável'. Um mês depois, ela apareceu novamente à Superiora para anunciar a sua libertação.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)