sábado, 12 de março de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVII)

Capítulo XXVII

As Causas dos Sofrimentos - Razão das Expiações do Purgatório - Ensinamentos de Suarez e de Santa Catarina de Gênova

Por que as almas devem sofrer antes de serem admitidas para ver Deus face a face? Qual é a razão, ou qual é a justificativa dessas expiações? O que tem o fogo do Purgatório para purificar, o que precisa ser consumido nele? São, dizem os Padres  da Igreja, as impurezas ou máculas devidas aos nossos pecados.

Mas o que se entende aqui por impurezas? De acordo com a maioria dos teólogos, não é a culpa do pecado, mas a dor ou a dívida da dor procedente do pecado. Para entender bem isso, devemos lembrar que o pecado produz um duplo efeito na alma, que chamamos de dívida (reatus) de culpa e dívida de dor; que torna a alma não apenas culpada, mas merecedora de dor ou castigo. Ainda que a culpa seja perdoada, acontece geralmente que a dor perdura, total ou parcialmente, e, portanto, deve ser suportada ou expiada nesta vida ou na vida futura.

As almas do Purgatório não detêm nenhuma dívida de culpa; a culpa venial que tinham no momento de sua morte desaparece na ordem da pura caridade com a qual estão plenamente infundidos na outra vida; o que ainda carregam consigo é a dívida dos sofrimentos que não foram expiados antes da morte. Esta dívida procede de todas as faltas cometidas durante a vida, especialmente aquelas devidas aos pecados mortais, remidos quanto à culpa por confissões sinceras, mas que deixaram de ser expiadas devidamente com frutos dignos de penitência exterior.

Tal é o ensinamento comum dos teólogos, que Suarez resume em seu Tratado sobre o Sacramento da Penitência: 'Concluímos então que todos os pecados veniais com que morre um justo são remidos da culpa, no momento em que a alma é separada do corpo, em virtude de um ato de amor a Deus, e a contrição perfeita que então excita por todas as suas faltas passadas. De fato, a alma neste momento conhece perfeitamente a sua condição e os pecados dos quais foi culpada diante de Deus; ao mesmo tempo, é dona de suas faculdades, para poder agir. Por outro lado, da parte de Deus, são dadas a ela as ajudas mais eficazes, para que aja segundo a medida da graça santificante que possui. Segue-se, então, que, nesta disposição perfeita, a alma age sem a menor hesitação. Volta-se diretamente para o seu Deus e encontra-se livre de todos os seus pecados veniais por um ato de soberana aversão ao pecado. Este ato universal e eficaz basta para a remissão de sua culpa. Toda mácula de culpa então desaparece; mas a dor continua a ser imposta e deve ser expiada, com todo o rigor e longa duração, pelo menos para aquelas almas que não são assistidas pelas intenções dos vivos. Eles não podem obter o menor alívio para si mesmas, porque o tempo do mérito já passou; elas não podem mais merecer, podem apenas sofrer e, assim, pagar à temível justiça de Deus tudo o que devem, até o último centavo - usque ad novissimum quadrantem (Mt 5, 26).

Essas dívidas de dor são restos de pecados e uma espécie de obstáculo, que lhes intercepta a visão de Deus e que impõe um freio à união da alma com o seu fim último. Uma vez que as almas do Purgatório estão livres da culpa do pecado - escreve Santa Catarina de Gênova -  não há outra barreira entre elas e sua união com Deus, a não ser os restos do pecado, os quais devem ser expiados. Estes obstáculos que sentem dentro de si fazem com que padeçam os tormentos dos condenados, dos quais falamos previamente, e retardam o momento no qual o instinto pelo qual são atraídas para Deus, quanto à sua soberana bem aventurança, atingirá a sua plena manifestação. 

As almas têm a plena percepção de quão graves são, diante de Deus, os menores resquícios dos pecados cometidos e que é, por necessidade de justiça, que estes devem ser pagos até a plena saciedade do seu instinto beatífico. Esta percepção faz incendiar dentro delas um fogo ardente e semelhante ao do inferno, com exceção da culpa do pecado.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)