segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XX)

 

Capítulo XX

Diversidade das Dores - Rei Sancho e Rainha Guda - Santa Lidwina e a a Alma Transpassada - Santa Margarida Maria e o Leito de Fogo

Segundo os santos, existe uma grande diversidade nos tormentos das penas do Purgatório. Embora o fogo seja o principal instrumento de tormento, há também o tormento do frio, o tormento imposto aos membros e o tormento aplicado aos diferentes sentidos do corpo humano. Esta diversidade de sofrimentos parece corresponder à natureza dos pecados, cada um dos quais exige o seu próprio castigo, segundo estas palavras: Quia per quce peccat quis, per hcec et torquetur - 'Pelas mesmas coisas que se peca, se é atormentado' (Sb 11,17). Acolhe ser assim em relação aos castigos, uma vez que a mesma diversidade existe em relação á concessão das recompensas. No Céu cada um recebe segundo as suas obras e, como diz o Venerável Beda, cada um recebe a sua coroa e o seu manto de glória. Enquanto que, para o mártir, tem o esplendor da púrpura, para o confessor, possui o brilho de uma alvura deslumbrante.

O historiador João Vasquez, em crônica do ano 940, relata como Sancho, Rei de Leão, apareceu à Rainha Guda, sua esposa, e pela piedade dela, foi libertado do Purgatório. Sancho, que levara uma vida verdadeiramente cristã, foi envenenado por um de seus súditos. Após a sua morte, a Rainha Guda passou seu tempo orando e intercedendo por orações em intenção da alma do rei. Não contente por ter oferecido muitas missas nessa intenção, para que pudesse chorar e velar perto dos queridos restos mortais, a rainha tomou o véu no convento de Castela, onde o corpo de seu marido havia sido sepultado. Num sábado, enquanto rezava aos pés da Santíssima Virgem, recomendando-lhe a alma do seu falecido marido, Sancho apareceu-lhe - mas em que condições! Bom Deus! Ele estava vestido com roupas de luto e usava uma fileira dupla de correntes em brasa em volta da cintura. Depois de agradecer a sua piedosa viúva por seus sufrágios, ele a conjurou para continuar no seu trabalho de caridade. 'Ah! se você soubesse, Guda, o que eu sofro' - disse a ela - 'você faria ainda mais'. No abismo de graças da Divina Misericórdia, eu te conjuro: ajude-me, querida Guda; ajude-me, pois sou devorado por essas chamas'. 

A Rainha redobrou então as suas orações e boas obras; distribuiu esmolas entre os pobres, fez com que fossem celebradas missas em todas as partes do país e deu ao convento um magnífico ornamento para ser usado no altar. Ao final de quarenta dias, o rei lhe apareceu novamente. Ele havia sido aliviado do cinturão ardente e de todos os seus outros sofrimentos. No lugar de suas vestes de luto, usava agora um manto de alvura deslumbrante, adornado com o ornamento que Guda dera ao convento. 'Eis-me aqui, querida Guda' - disse ele - 'graças às suas orações, fui libertado de todos os meus sofrimentos. Que você seja abençoada para sempre. Persevere em sua santificação; medite frequentemente sobre a severidade das dores da outra vida e sobre as alegrias do Paraíso, onde estarei à sua espera'. Com essas palavras, desapareceu, deixando a piedosa Guda envolta em profunda consolação.

Um dia, uma mulher, bastante desconsolada, foi dizer a Santa Lidwina que havia perdido o irmão. 'Meu irmão acabou de falecer', disse ela, 'e venho recomendar a sua pobre alma à sua instituição de caridade. Ofereça a Deus por ele algumas orações e uma parte dos seus sofrimentos devidos à sua doença'.  A santa doente prometeu a ela de rezar pelo irmão e, algum tempo depois, em um de seus frequentes êxtases, foi conduzida por seu anjo da guarda às masmorras subterrâneas, onde viu com extrema compaixão os tormentos das pobres almas mergulhadas nas chamas. Uma delas em particular atraiu a sua atenção. Ela a viu atravessada por vergas de ferro. Seu anjo disse a ela que era a alma do irmão falecido da mulher que lhe havia pedido orações. 'Se você' - acrescentou o anjo - 'quiser pedir qualquer graça em seu favor, isto não será recusada a você'. 'Eu peço então' - respondeu - 'que ele seja libertado daqueles horríveis ferros que o transpassam'. Imediatamente ela os viu retirados do pobre sofredor, que então foi removido desta prisão especial e colocado naquela ocupada pelas almas que não haviam incorrido em nenhum tormento particular. 

A irmã do defunto retornou pouco depois junto a Santa Lidwina, que a fez conhecer a condição de seu irmão falecido e exortou-a a ajudá-lo, multiplicando as suas orações e esmolas pelo repouso de sua alma. Ela mesma ofereceu a Deus as suas súplicas e sofrimentos, até que finalmente a alma dele foi libertada (Vida de Santa Lidwina). 

Lemos na Vida da Bem-aventurada Margarida Maria que uma alma foi submetida em um leito de tormentos por causa da sua indolência durante a vida; ao mesmo tempo, foi submetida a um tormento particular em seu coração, por causa de certos sentimentos perversos e em sua língua, como punição por suas palavras pouco caridosas. Além disso, ela teve que suportar uma dor terrível de natureza totalmente diferente, causada nem pelo fogo nem pelo ferro, mas pela visão de uma alma condenada. 

Vejamos como a Beata Margarida* o descreve em seus escritos. 'Eu vi em um sonho' - diz ela - 'uma de nossas irmãs que havia morrido algum tempo antes. Ela me disse que sofreu muito no Purgatório, mas que Deus infligiu a ela um sofrimento que superava todas as outras dores, mostrando-lhe um de seus parentes próximos precipitado no Inferno. Com essas palavras, acordei e senti como se meu corpo estivesse machucado da cabeça aos pés, de forma que era com dificuldade que eu conseguia me mover. Como não devemos acreditar nos sonhos, não dei muita atenção a este, mas a alma da religiosa me forçou a considerá-lo apesar de tudo. A partir daquele momento, não me deu descanso e dizia-me incessantemente: 'Reze a Deus por mim; ofereça a Ele os seus sofrimentos unidos aos de Jesus Cristo, para aliviar os meus; me dê tudo o que você fizer até a primeira sexta-feira de maio, quando você, por favor, comungue em minha intenção'. Fiz assim, com a permissão da minha Superiora.

Nesse ínterim, a dor que essa alma sofredora me causou aumentou a tal ponto que não pude encontrar conforto nem repouso. A obediência obrigou-me a buscar um pouco de descanso em minha cama; mas mal havia repousado, ela pareceu aproximar-se de mim, dizendo: 'Você reclina-se à vontade em sua cama; olha aquela em que me deito e onde suporto sofrimentos intoleráveis'. ' Eu vi aquele leito de fogo e só de pensar nisso estremeço. A parte superior e inferior eram de pontas agudas e flamejantes que perfuravam a carne. Ela me disse então que isso se devia à sua preguiça e negligência na observância das regras. 'Meu coração está dilacerado' - ela continuou - 'e me causa os mais terríveis sofrimentos por meus pensamentos de desaprovação e crítica aos meus superiores. Minha língua é devorada por vermes e, por assim dizer, arrancada de minha boca continuamente, pelas palavras que proferi contra a caridade e minha pouca consideração pela regra do silêncio. Ah! Oxalá todas as almas consagradas a Deus me vissem nestes tormentos. Se eu pudesse mostrar a eles o que está preparado para aqueles que vivem negligentemente sua vocação, seu zelo e fervor seriam inteiramente renovados e eles evitariam aquelas faltas que agora me fazem sofrer tanto'.'

Diante dessa visão, derreti-me em lágrimas. 'Ai de mim!' - disse ela - 'um dia passado por toda a comunidade em observância exata iria curar minha boca ressecada; outro, vivido na prática da santa caridade, curaria minha língua; e um terceiro, passado sem qualquer murmúrio ou desaprovação aos superiores, curaria meu coração machucado; mas ninguém pensa em me aliviar'. Depois de ter oferecido a Comunhão que ela me pediu, ela me disse que os terríveis tormentos haviam diminuído muito, mas ela ainda tinha que permanecer muito tempo no Purgatório, condenada a sofrer as dores por aquelas almas que viveram mornas ao serviço de Deus. 'Quanto a mim' - acrescenta a bem-aventurada Margarida Maria - 'descobri que estava livre de meus sofrimentos que, como ela me havia dito, não diminuiriam a menos que ela própria fosse aliviada' (Languet, Vida da B. Margarida).

* canonizada em 13 de maio de 1920.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)