terça-feira, 13 de agosto de 2019

DA PRÁTICA DA CARIDADE PELOS SENTIMENTOS

1. Tende cuidado de lançar fora todo juízo, suspeita ou dúvida temerária a respeito do próximo. É uma falta duvidar sem razão da inocência do próximo; mais falta ainda conceber uma suspeita positiva; e uma falta ainda maior julgar alguém certamente culpado, sem um fundamento certo. Aquele que julga desta maneira, será julgado por sua vez, pois disse o Senhor no Evangelho: 'Não julgueis e não sereis julgados, porque vos julgarão do mesmo modo que julgardes os outros' (Mt 7,12).

Disse, sem um fundamento certo, porque, se houvesse motivos certos para suspeitar e mesmo para crer mal do próximo, então não haveria falta. De resto, é sempre mais seguro e mais conforme à caridade pensar bem de todos e evitar os juízos e as suspeitas pois, diz o Apóstolo, que 'a caridade não pensa mal de ninguém'(1Cor 13,5). Todavia é preciso é preciso advertir que esta regra não serve para as religiosas que exercem os ofícios de superiora ou de mestra [ou pessoas que exercem cargos de direção espiritual], as quais, como dissemos em outro lugar, fazem bem ou antes devem suspeitar para prevenir o mal que pode suceder, com as diligências oportunas. Se, pois, não estais encarregadas de velar pela conduta das outras, tomai a resolução de sempre pensar bem de todas as vossas irmãs. 

Santa Joana de Chantal dizia: 'No próximo não devemos olhar o mal, mas somente o bem'. E se, falando do próximo, vos acontecer enganar-vos em seu favor e tomar por bem o que é mal, não fiqueis tristes por isso; porque, diz Santo Agostinho: 'a caridade não lamenta o seu erro quando pensa bem ainda de um mau' (conf. Sl 147). Santa Catarina de Bolonha dizia um dia: 'Há muitos anos que estou na religião, e nunca pensei mal de minhas irmãs, sabendo que aquela que parece imperfeita é talvez mais agradável a Deus do que a outra que parece muito exemplar'.

Guardai-vos, pois, de estar a espreitar os defeitos e ações dos outros, como fazem algumas, especialmente as que andam a perguntar o que se diz de sua pessoa e que, em seguida, se enchem de suspeitas, incômodos e aversões. Muitas vezes as coisas se referem adulteradas, ou como se diz, com franjas. Por isso, quando ouvirdes dizer qualquer coisa sobre os vossos defeitos, não deveis dar atenção, nem procureis saber quem assim falou. Fazei tudo de modo que ninguém possa dizer mal de vós, e depois deixai que todos digam o que quiserem. E, quando ouvirdes censurar alguma falta vossa, respondei: 'É muito pouco o que sabem de mim! Ó quantas coisas poderiam dizer, se soubessem tudo!' Ou então podereis dizer: 'Deus é que me há de julgar!' 

2. Quando suceder ao nosso próximo alguma desgraça, uma doença, um prejuízo ou outro qualquer pesar, a caridade manda que nos entristeçamos, ao menos na parte superior de nós mesmos. Digo na parte superior de nós mesmos, porque, quando ouvimos falar de um dano sofrido por pessoas que nos são contrárias, nossa natureza rebelde parece que sempre sente certo prazer; mas nisso não há falta, quando a má complacência é repelida pela vontade. Assim, pois, quando arrastadas pela parte inferior a vos regozijardes do mal acontecido ao próximo, deixai-a gritar, como se deixa gritar uma cachorrinha, que ladra como animal sem razão; e acudi com a parte superior a ter compaixão dos males alheios.

É verdade que algumas vezes, é lícito alegrar-se com a enfermidade de um pecador público e escandaloso porque, talvez assim, ele entre em si e se converta, ou, ao menos, porque assim cessará o escândalo dos outros. Entretanto, se a pessoa que sofre nos deu algum desgosto, tal alegria pode ser suspeita. 

3. A caridade nos obriga a nos alegrarmos com a felicidade do próximo, expulsando a inveja que consiste em ver com desprazer o bem do próximo, porque o seu bem impede o nosso. Segundo o doutor angélico, o bem alheio pode nos desagradar de quatro modos, a saber: 

1.º - Quando tememos que esse bem possa causar dano a nós ou a outros. Este temor, quando o dano é injusto, não é inveja e pode ser isento de toda a culpa, segundo aquilo que escreve São Gregório: pode muitas vezes acontecer que, sem faltar a caridade, a desgraça do nosso inimigo nos alegra, como quando a sua queda serve para livrar muitos das misérias que padecem; e também pode suceder que, sem inveja, nos aflija a prosperidade do inimigo, quando tememos que lhe sirva para oprimir injustamente os outros;

2.º - Quando vendo, o bem alheio, ficamos tristes, não porque dele goza o próximo, mas porque não gozamos também. Este desprazer não é inveja, é antes um sentimento virtuoso, tratando-se de bens espirituais;

3.º Quando vemos com pena o bem do próximo, porque o julgamos indigno dele. Tal desprazer não é ainda ilícito, quando pensamos que essa vantagem, essa dignidade, ou essa fortuna será prejudicial à sua alma;

4.º Quando, enfim, nos afligimos com o bem do próximo, porque impede o nosso. E este desprazer é propriamente a inveja de que nos devemos guardar. O sábio diz que os invejosos imitam o demônio que induziu Adão ao pecado, porque sentia desprazer em vê-lo destinado ao céu, donde tinha sido expulso. É pela inveja do demônio que a morte entrou no mundo e o imitam os que são do seu partido. Pelo contrário, caridade nos faz alegrar com o bem do nosso próximo como se fosse nosso, e nos faz olhar as suas perdas como nossas.

(Excertos da obra 'A Verdadeira Esposa de Jesus Cristo', de Santo Afonso Maria de Ligório)