segunda-feira, 2 de outubro de 2017

POEMAS PARA REZAR (XXII)


CAMINHO
(Ao meu Anjo da Guarda)

Quando eu nasci,
lá não estavas ao lado da minha mãe?
O teu olhar não repousava sobre mim?
Meus olhos te viram e se fixaram em ti,
mais que nos olhos da minha mãe,
porque eras luz, esplêndida luz,
que tinhas cintilações e reflexos de onde eu vim.
Eras apenas a presença ali,
a luz que espargia ainda mais luz
e eu nada sabia, nada entendia,
eu era um nada que apenas me inebriava de tanta luz.

Aprendi então o olhar da minha mãe e me desvaneci em carinho
quando não estavas mais lá
a luz não era mais luz, apenas contorno de luz
que se acabou depois não sei quando
porque nem na memória restou
nada daquela claridade sem fim
nem as sombras, nem nos sonhos,
ficou ainda que um resto de luz.

Quando a luz se apagou de vez, aprendi a olhar sem a luz.
Aprendi a sorrir, chorar, mexer minhas mãos
e sentir a ausência doída da minha mãe.
Cresci sem saber, aprendendo gestos e palavras,
com sonhos que já nasciam esquecidos,
adormecido na mímica da vida
de ser o começo de tudo.

Depois descobri braços e pernas, gritos e sussurros,
pensar, repensar e não pensar sobre tudo
sobretudo não pensar.
E veio a vida que se leva, a leva da vida,
os anos que passaram como escolhas perdidas 
e a infinitude das coisas vãs 
e a perda do tempo infindo.

Também reaprendi a olhar e rever velhas causas
a me extasiar nas imagens dos meus filhos
a volver heranças de sonhos dormidos
e cumprir afazeres de velhas lembranças.
Vivi a vida das penas e cansaços da lida
entre os homens, entre Deus e os homens,
e aí acho que fiz as melhores escolhas.

Quando, enfim, pousado o tempo das coisas que passam
eis que é chegada a hora da volta
ao infinito recomeçar da perfeição
lá estás de novo, novo como da primeira vez,
a me lembrar que isso foi toda vez e sempre
entre sonhos dormidos e olhos fechados
da vida que se leva.
Lá estás, de novo, como último refúgio e consolo,
imerso em luz, em esplêndida luz,
a me olhar como da primeira vez.

Sei que agora não preciso de mais sonhos,
dominar os pés e as mãos que já não são mais minhas,
acalentar os tempos que não voltarão amanhã.
Basta, eu sei, fechar meus olhos e meus sonhos
e caminhar ainda contigo, anjo da minha proteção,
como um ser de mesmo corpo e luz,
da esplêndida luz,
que agora nos consome os dois.

(Arcos de Pilares)