quarta-feira, 16 de junho de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: ÊXTASE E ORAÇÃO

 

Enquanto não concederes essa graça à alma, não importa o quão íntima ela possa estar, ela vai perceber que não está plenamente integrada contigo. Parece existir assim um certo mal estar espiritual, uma espécie de insegurança. Ela não gostaria de ser perturbada em sua doce ocupação. Mas isso poderia acontecer e ela teme isso. E o seu medo é bem fundamentado. Todos os laços que a prendem longe de ti ainda não foram quebrados. Ela ainda mantém uma certa comunicação com o mundo sensível que nada lhe pode dar e que, pelo contrário, poderia chamá-la para si, arruinando tudo. Sem dúvida esse medo é débil, surdo e quase imperceptível, mas existe e faz sofrer a alma, é um estorvo. Na verdade, a alma não pode elevar-se livremente para te alcançar, ainda que se sinta movida por um desejo muito forte de fazê-lo.

Mas no momento em que te dignas desligar-se por completo, ainda que apenas por um instante, que alegria não teria a alma de se encontrar a sós contigo, quase face a face, e poder contar-te sem palavras tudo o que vivencia no íntimo do coração há tanto tempo! E agir como se não soubesses nada; falar de tudo e se abrir totalmente contigo. Pai, vê como tudo é Vosso, como tudo é feito para Vós! Não existem mais criaturas que possam obstruir o Vosso olhar ou ferir o Vosso coração. Não há mais nenhum obstáculo entre nós. Eu Vos falo e Vós me ouvis. Eu Vos olho e Vós me contemplais com ternura. Ninguém nos ouve, ninguém nos vê; ninguém sabe que estou aqui em Vossa presença. Os anjos podem ver e os santos podem ver, mas até eles não poderão saber dessa nossa intimidade mais do que quereis lhes revelar. Além disso, o olhar deles não é indiscreto; pelo contrário, estão felizes vendo o que veem. E, se necessário, eles vão enlevar a minha alma ainda mais para Vos louvar, abençoar e amar.

Ó meu Deus, uma vez que a oração nada mais é do que a explicação de um desejo, não é possível explicar bem a Vós o nosso desejo de Vos amar, e só é possível orar com perfeição em êxtase. Sim, meu Deus, que nossos corações sejam incensados pelo Vosso amor! Que, para Vos amar livremente e sem obstáculos, permiti que a nossa alma possa deixar o nosso corpo e se refugiar em Vós como fonte de amor. Que o meu eu morra então totalmente aí para que eu não possa mais viver a não ser em Vós e para Vós! Por tão grande amor, as palavras são pequenas demais para Vos delimitar e assim Vós as reprimis, são débeis demais para Vos conceber e é por isso que Vós as aniquilais! Mas, ainda assim, refletem a Vossa glória, uma vez que proclamam, na sua impotência, a Vossa grandeza e o Vosso poder.

Ó amor de Deus, vinde e completeis em mim a Vossa obra: abrasai-me, envolvei-me, consumi-me, arrebatai-me! Eu Vos ofereço todo o meu ser, o mais íntimo de mim, para todo o sempre, e com um infinito amém!

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)

segunda-feira, 14 de junho de 2021

ENCHIRIDION E OS DOGMAS DA IGREJA CATÓLICA

Enchiridion (Manual) é uma compilação de todos os textos básicos sobre os dogmas e ordenamentos doutrinários da Santa Igreja desde a Era Apostólica, tendo sido implementado em 1854 pelo papa Pio IX e, desde então, regularmente atualizado. Foi originalmente publicado como Enchiridion Symbolorum et Definitionum (referido, às vezes, como Denzinger, em homenagem ao seu primeiro editor, Heinrich Denziger) e atualmente publicado como Enchiridion symbolorum, definitionum et statementum de rebus fidei et morum (Manual de credos, definições e declarações sobre questões de fé e moral). Os parágrafos correspondentes ao texto das primeiras edições são comumente expressos pela abreviação Dz - referência direta a Denzinger).

As postagens anexas apresentam uma relação de 250 dogmas da Igreja Católica compiladas a partir do Enchiridion e já publicadas pelo blog (as dez primeiras são reproduzidas abaixo nesta postagem, indicando as principais fontes de sua prescrição pelo Denzinger).


PARTE I - A UNIDADE E A TRINDADE DE DEUS

1. Deus, nosso Criador e Senhor, pode ser conhecido, com absoluta certeza, pela luz natural da razão das coisas criadas.

Constituição dogmática Dei Filius (1870), pós-Concílio Vaticano I, que assim definiu: Si quis dixerit, Deum unum et verum, creatorem et Dominum nostrum, per ea quae facta sunt naturali rationis humanoe lumine certo cognosci non posse (Dz 1806; cf. 1391, 1785).

2. A existência de Deus não é meramente um objeto de conhecimento racional, mas também um objeto da fé sobrenatural.

Constituição dogmática Dei Filius (1870), pós-Concílio Vaticano I, que assim definiu: Si quis dixerit, in revelatione divina nulla vera et proprie dicta mysteria contineri, sed universa fidei dogmata posse per rationem rite excultam e naturalibus principiis intelligi et demonstrari; anathema sit (indicando que  que a razão não basta para conhecer quem é Deus, pois a fé vai além da razão). Por outro lado, O Credo começa por dizer Credo in unum Deum.

3. A Natureza de Deus é incompreensível para os homens.

O IV Concílio de Latrão (1215) e o Concílio Vaticano I chamam Deus de 'incompreensível' (incompreensibilis); o Concílio de Latrão define Deus como 'inefável' (inefabilis).

4. Os bem-aventurados no Céu possuem um conhecimento intuitivo imediato da Essência Divina.

Constituição dogmática Benedictus Deus (Bento XII, 1336): Vident (sc, animae sanctorum), divinam essentiam visione intuitiva et etiam faciali, nulla por criatura em ratione objeti visi se habente, sed divina essentia imediata se nude, clare et aprte eis ostendente - as almas dos bem aventurados veem a essência divina em visão intuitiva e face a face, sem nenhuma criatura intervir como meio de visão, mas mostrando-lhes a essência divina de imediato e com absoluta transparência e clareza (Dz 530); o Concílio de Florença (1438/45), assim especificou qual era o objeto do conhecimento de Deus que os bem-aventurados possuem: Intueri (sc. Animas sanctorum) clare ipsum Deum trinum et unum, sicuti est"- as almas dos bem aventurados intuem claramente o Deus trino e único como Ele o é (Dz 693).

5. A visão imediata de Deus transcende a força natural da percepção da alma humana e é, portanto, sobrenatural.

O Concílio de Viena, pela constituição Ad Nostrum Qui (1312), condenou expressamente os erros dos begardos e beguinas [comunidades semirreligiosas que praticavam uma vida espiritual alheia aos ensinamentos da Igreja]:  Quod anima non indiget lumine gloriae ipsam elevante ad Deum videndum et eo beate fruendum (Dz 475): é heresia considerar que a alma, destituída da luz da glória, seja capaz de  ver e se deleitar de Deus em êxtase.

6. A alma requer a luz da glória para a visão imediata de Deus.

(Enchiridion, Dz 475)

7. A Essência de Deus é igualmente incompreensível para o bem-aventurado no Céu.

(Enchiridion, Dz 428, 1782) 

8. Os atributos divinos são realmente idênticos entre si e com a Divina Essência.

O sínodo de Reims (1148) desaprovou a doutrina de Gilbert de Poitiers: Credimus et confitemur simplicem naturam divinitatis esse Deum, nec aliquo sensu católico posse negari, quin divinitas sit Deus et Deus divinitas… credimus, nonnisi e a sapientia, quae est ipse e a sapientia, quae est ipse, sapientem esse, nonnisi e a magnitude, quae est ipse Deus, magnum esse ' (Dz 389). O Concílio de Florença declarou no Decretum pro Iacobitis (1441): 'Em Deus tudo é um, desde que não haja oposição relativa' (Dz 703).

9. Deus é absolutamente perfeito.

O Concílio Vaticano I ensina que Deus é infinito em toda perfeição (omni perfectione infinitus), conforme Dz 1782.

10. Deus é verdadeiramente infinito em toda a perfeição.

O Concílio Vaticano diz que Deus é infinito em compreensão e vontade em toda perfeição (intellectu ac volunt omnique perfectione infinitus - Dz 1782).

250 DOGMAS DE FÉ DA IGREJA CATÓLICA

domingo, 13 de junho de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Como é bom agradecermos ao Senhor!' (Sl 91)

 13/06/2021 - Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum

29. O REINO DE DEUS


No Evangelho deste Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum, Jesus utiliza-se de duas parábolas para explicitar às multidões o sentido maior do Reino de Deus no mundo, consubstanciadas na mesma ideia central do trabalho fecundo e silencioso das boas sementes lançadas em terra fértil que se desenvolvem para produzir muitos frutos. A semente do Evangelho deve ser convertida em apostolado e no reino militante da Santa Igreja Católica pelos caminhos do mundo.

A primeira parábola compara o Reino dos Céus à boa semente lançada em terra fértil: 'O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra' (Mc 4, 26). Na terra que é o campo do Senhor, ou seja, o mundo, Deus planta sempre a boa semente, plena de fertilidade e capaz de produzir muitos frutos. E, enquanto todos dormem e se entregam aos seus afazeres cotidianos, a boa semente 'vai germinando e crescendo', produzindo folhas e grãos, e frutos que amadurecem e que geram outras muitas sementes. E eis que a terra boa de plantar torna-se então farta na colheita: pelas mãos dos homens e pela graça divina escondida no ventre da terra.

A segunda parábola compara o Reino dos Céus a uma minúscula semente de mostarda: 'O Reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra' (Mc 4, 31). De fertilidade ímpar, a pequena semente produz um vigoroso arbusto, tão alto que as aves podem fazer ninhos em seus ramos: 'Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra' (Mc 4, 32). O Reino de Deus se desenvolve tal como a pequena semente: no escondimento, quase imperceptível na sua evolução, mas vigoroso e extraordinário na grandeza e dimensão dos seus frutos! O caminho da santificação é essencialmente simples e tranquilo, mas sempre impelido por uma torrente de bênçãos e graças.

O Reino de Deus é obra única e exclusiva do Pai. Nos mistérios insondáveis dos seus divinos desígnios, Deus arma a teia da vida e da propagação da civilização cristã através de um mundo conturbado que parece, por muitas vezes, querer abortar a semente lançada e conspurcar os seus frutos. Mas Deus utiliza de suas graças abundantes para fazer jorrar a água viva do Evangelho do chão rude e pedregoso talhado por uma humanidade pecadora e licenciosa das verdades eternas. Que o nosso propósito seja o de mostrar-nos ao Pai, não escondidos atrás das muralhas do nosso orgulho e das nossas vaidades, mas como frágeis vasos de argila, expostos como instrumentos dóceis à ação da graça divina para praticarmos sempre o bem, de forma generosa e perseverante. Supliquemos a Deus a graça de sermos fecundos nesta semeadura, deixando a Ele, e somente a Ele, a tarefa de colher os frutos dos nossos pequenos trabalhos e obras, de acordo com a sua Santa Vontade.

sábado, 12 de junho de 2021

OS GRANDES MÍSTICOS DA IGREJA (V)

ELENA AIELLO

Elena Emília Aiello nasceu em Montalto Uffugo, província de Cosenza e região da Calábria, na Itália, no dia 10 de abril de 1895, e faleceu em Roma no dia 19 de junho de 1961. Privilegiada por inúmeros dons sobrenaturais, foi declarada venerável no dia 22 de janeiro de 1991 e beatificada em 14 de setembro de 2011. 

Após a morte da mãe, ocorrida em 1905, Elena passou a ajudar o pai na alfaiataria da família. Em agosto de 1920, ingressou no instituto das Irmãs da Caridade do Preciosíssimo Sangue em Salerno, mas graves problemas de saúde fizeram com que fosse excluída da congregação. A partir de uma revelação de Jesus de que seria curada destes males e que passaria a sofrer os estigmas da Paixão de Cristo nas Sextas-Feiras Santas de cada ano, passou a experimentar diferentes fenômenos místicos, que incluíram visões de Cristo e de Nossa Senhora, que lhe pediam para participar do mistério da Paixão para o bem da humanidade como alma vítima escolhida pela Providência para a conversão dos pecadores e para aplacar a Justiça divina.

Em 1928, ela e uma amiga, Luigia Mazza, fundaram o Instituto das Irmãs Mínimas da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, adotando como modelo de vida religiosa a própria Paixão de Jesus e o primado da caridade testemunhada por São Francisco de Paula, escolhido como padroeiro da congregação. A sua obra conta atualmente com mais de 100 religiosas e está presente na Itália, com numerosas casas na Suíça, Canadá, Colômbia e Brasil.


Desde a sua morte em Roma em 1961, inúmeros milagres e conversões têm sido atribuídos à Irmã Elena Aiello. Os seus restos mortais repousam na capela da Casa Mãe do seu instituto em Cosenza. Sua festa é comemorada no dia 19 de junho. As revelações e aparições à Beata Elena Aiello foram aprovadas pela Igreja e encontram-se relatadas no livro 'Suor Elena Aiello - La monaca santa', de Mons. Francisco Spadafora, que foi o seu diretor espiritual, que as definiu como sendo uma atualização do segredo de Fátima. Eis algumas destas revelações:


'Os homens ofendem demasiado a Deus. O mundo está totalmente devastado, porque se tornou pior do que nos tempos de dilúvio universal... todas as nações serão punidas porque são muitos os pecados que, como uma maré de lodo, a tudo cobrem. Muito sangue será derramado e a Igreja sofrerá muito. A Itália será humilhada, purificada no sangue e deverá sofrer muito porque são muitos os pecados desta nação. Não podeis imaginar o que sucederá! As ruas estarão encharcadas de sangue. O Papa sofrerá muito. Mas não tardará o castigo dos ímpios. Aquele dia será terrível'.

'Minha filha, o castigo está próximo. Fala-se muito de paz, mas o mundo inteiro caminha para a guerra, e as ruas ficarão cobertas de sangue! Não se vê um raio de luz no mundo, porque os homens vivem nas trevas do pecado, e o enorme peso desses pecados clama pela Justiça de Deus. Todas as nações serão castigadas, porque o pecado espalhou-se por todo o mundo! Os castigos serão tremendos, porque o homem tornou-se numa afronta insuportável contra o seu Deus e Pai, e já exasperou a Sua Infinita Bondade!... O Meu Coração de Mãe e Mediadora dos homens, próxima da Misericórdia de Deus, convida, com muitas manifestações e muitos sinais, os homens à penitência e ao perdão. Mas eles respondem com uma tormenta de ódio, blasfêmias e profanações sacrílegas, cegos pela ira infernal. Peço oração e penitência, para que possa obter de novo a misericórdia e a salvação para muitas almas; pois de outro modo irão se perder'.

'O pecado manchará até mesmo as almas das crianças... falsos profetas circundam a Cristo na terra e o demônio desencadeou a mais terrível batalha contra Deus e a Igreja... o pecado de impureza, convertido em arte sedutora e diabólica, atingiu o cume: a maioria dos homens vive na lama... Não há esperança para uma era de paz: o mundo inteiro estará em guerra'... Olhai: os anjos, tendo em suas mãos recipientes cheios de fogo, estão prestes a despejá-los sobre o mundo. Este terrível flagelo virá nas primeiras horas da manhã. O céu se tingirá de vermelho, a tempestade será de fogo, várias nações deverão desaparecer'.

(vídeo contendo algumas revelações à Beata Elena Aiello)

sexta-feira, 11 de junho de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (IX)

Capítulo IX

As Dores do Purgatório: sua Natureza e Rigor - Doutrina dos Teólogos: São Belarmino e São Francisco de Sales - Medo e Confiança

Existe no Purgatório, tal como no Inferno, uma dor dupla - a dor da perda e a dor dos sentidos. A dor da perda consiste em ser privado por algum tempo da vista de Deus, que é o Bem Supremo, fim beatífico para o qual foram feitas as nossas almas, assim como são os nossos olhos para a luz. É uma sede moral que atormenta a alma. A dor dos sentidos, ou sofrimento sensível, é a mesma que experimentamos em nossa carne. A sua natureza não se define pela fé, mas é opinião comum dos Doutores da Igreja que ela consiste em fogo e outras espécies de sofrimento. O fogo do Purgatório, dizem os Padres da Igreja, é o mesmo do inferno, de que fala o rico glutão: - quia crucior in hac flamma - 'eu sofro cruelmente nestas chamas'.

Quanto à gravidade dessas dores, uma vez que são infligidas pela Justiça Infinita, são proporcionais à natureza, gravidade e número dos pecados cometidos. Cada um recebe segundo as suas obras, cada um deve honrar-se das dívidas de que se vê acusado perante Deus. Porém, essas dívidas diferem muito em qualidade. Algumas, que se acumularam durante uma longa vida, atingiram os dez mil talentos do Evangelho, ou seja, os milhões e as dezenas de milhões; enquanto outras são reduzidas a poucos centavos, o resto insignificante daquilo que não foi devidamente expiado na terra. Segue-se disso que as almas passam por vários tipos de sofrimentos e que existem inúmeros graus de expiação no Purgatório, sendo que alguns são incomparavelmente mais severos do que outros. No entanto, falando em termos gerais, os Doutores da Igreja concordam em dizer que estas dores são insuportáveis. O mesmo fogo, diz São Gregório, atormenta os condenados e purifica os eleitos (salmo 37). 'Quase todos os teólogos' - diz São Belarmino - 'ensinam que os réprobos e as almas do Purgatório sofrem a ação do mesmo fogo' (De Purgat., i. 2, cap. 6).

Deve-se tomar como certeza - escreve o mesmo São Belarmino - que não há proporção entre os sofrimentos desta vida e aqueles do Purgatório (De Gemitu Columbae, lib. ii, cap. 9). Santo Agostinho declara precisamente o mesmo em seu comentário sobre o Salmo 31: 'Senhor' - ele diz - 'não me castigueis com vossa ira, e não me rejeiteis como aqueles a quem dissestes: vai para o fogo eterno; não me castigueis com vosso santo furor: purificai-me antes de tal maneira nesta vida que eu não precise ser purificado pelo fogo na próxima. Sim, temo aquele fogo que foi aceso para aqueles que serão salvos, é verdade, mas ainda assim salvos pelo fogo (1 Cor 3, 5). Sim, estes serão salvos, sem dúvida, após a provação pelo fogo, mas essa provação será terrível, esse tormento será mais insuportável do que todos os sofrimentos mais excruciantes deste mundo. 

Com base nas palavras de Santo Agostinho, e nas que São Gregório, o Venerável Beda, Santo Anselmo e São Bernardo falaram depois dele, São Tomás vai ainda mais longe, afirmando que a menor dor do Purgatório supera todos os sofrimentos desta vida, quaisquer que sejam eles. A dor, diz o beato Pedro Lefevre, é mais profunda e mais aguda quando ataca diretamente a alma e a mente do que quando afeta apenas o corpo. O corpo mortal e os próprios sentidos absorvem e interceptam uma parte da dor física e até mesmo moral (Sentim. Du B. Lefevre sur la Purg., Mess du S. Coeur, novembro de 1873). O autor da 'Imitação' explica essa doutrina por meio de uma frase bastante prática e marcante. Falando em geral dos sofrimentos da outra vida, diz ele: uma hora de tormento será mais terrível do que cem anos de rigorosa penitência nesta vida (Imitação de Cristo, lib. 1, cap. 24). Para provar esta doutrina, afirma-se que todas as almas do Purgatório sofrem a dor da perda e que essa dor supera todo o sofrimento mais agudo. 

Mas, para falar apenas da dor dos sentidos: sabemos que coisa terrível é o fogo, quão fraca é a chama que acendemos em nossas casas, e que dor é causada pela menor queimadura; quanto mais terrível deve ser aquele fogo que não é alimentado com lenha nem óleo, e que nunca pode ser extinto! Aceso pelo sopro de Deus para ser o instrumento da sua Justiça, ele apodera-se das almas e as atormenta com incomparável rigor. O que já dissemos, e o que ainda temos a dizer, está bem justificado para nos inspirar aquele temor salutar que nos foi recomendado por Jesus Cristo. 

Mas para evitar que alguns leitores, esquecidos da confiança cristã que deve moderar os nossos medos, não se entreguem a um temor excessivo, comparemos a doutrina anterior com a de um outro Doutor da Igreja, São Francisco de Sales, que apresenta as penas do purgatório temperadas pelas consolações que os acompanham. 'Podemos' - diz este santo e amável diretor de almas - 'extrair do pensamento do Purgatório mais consolo do que apreensão'. A maior parte dos que temem o Purgatório pensam muito mais em seus próprios interesses do que nos interesses da glória de Deus; isso procede do fato de que eles pensam apenas nos sofrimentos, sem considerar a paz e a felicidade que são desfrutadas pelas almas sagradas. É verdade que os tormentos são tão grandes que os sofrimentos mais agudos desta vida não se comparam a eles; mas a satisfação interior que existe é tal que nenhuma felicidade ou contentamento na terra pode igualá-la.

As almas estão em contínua união com Deus, estão perfeitamente resignadas à sua vontade, ou melhor, a sua vontade é tão transformada na própria vontade de Deus que não podem querer senão o que Deus quer; de modo que, se o Paraíso fosse aberto diante delas, eles se precipitariam no inferno em vez de se apresentarem diante de Deus com as manchas pelas quais se veem desfigurados. Elas se purificam de boa vontade e com amor, porque esta é a Vontade Divina.

As almas desejam permanecer ali no estado em que Deus quer e enquanto isso for do seu agrado. Elas não podem pecar, nem experimentar o menor sentimento de impaciência, nem cometer a menor imperfeição. Elas amam a Deus mais do que amam a si mesmos e mais do que todas as outras coisas; elas amam a Deus com um amor perfeito, puro e desinteressado. Estas almas são consoladas por anjos e têm a certeza da salvação eterna, estando plenos de uma esperança que nunca pode ser frustrada em suas expectativas. Sua angústia mais amarga é amenizada por uma certa paz profunda. É uma espécie do inferno quanto ao sofrimento; mas é o Paraíso no que diz respeito ao deleite infundido em seus corações pela caridade - caridade, mais forte que a morte e mais poderosa que o inferno; caridade iluminada por lâmpadas que são todas de fogo e chama (Cântico 8). 'Feliz estado' - complementa o santo bispo - 'mais desejável do que abominável, uma vez que suas chamas são chamas de amor e de caridade' (Esprit de Saint François de Sales, cap. 9, p. 16).

Tais são os ensinamentos dos Doutores da Igreja, dos quais se segue que, se as dores do Purgatório são rigorosas, não deixam de ser consoladoras. Ao impor a sua cruz sobre nós nesta vida, Deus derrama sobre ela a unção de sua graça; ao purificar as almas no Purgatório como o ouro no cadinho, Ele tempera as suas chamas com consolações inefáveis. Não devemos perder nunca de vista esse aspecto consolador, esse lado luminoso do quadro muitas vezes sombrio que estamos a examinar.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

PARA VIVER A DIVINA MISERICÓRDIA UM DIA POR SEMANA⁵

Ó Sangue e Água que jorrastes do Coração de Jesus como fonte de misericórdia para nós,
eu confio em Vós!

'Fala ao mundo da Minha Misericórdia, que toda a humanidade conheça a Minha insondável misericórdia. Este é o sinal para os últimos tempos; depois dele virá o dia da justiça. Enquanto é tempo, recorram à fonte da Minha Misericórdia'

Intenção do Dia - Quinta Semana

confiar sem reservas na insondável misericórdia do Coração de Jesus 

Coração de Jesus, abismo de misericórdia, / sede meu amparo e repouso nesta vida / que a vossa luz bendita / ilumine todos os meus passos e caminhos