(cidade alemã de Dresden, destruída após pesados bombardeios ingleses, ao final da Segunda Guerra Mundial)
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
NO CÉU NOS RECONHECEREMOS (II)
Da Segunda Carta de Consolação
II - Provas da Tradição
II - Provas da Tradição
O fato simplesmente afirmado por Santo Atanásio, São Paulino, Santo Agostinho, Honório e Berti – As consolações tiradas deste fato, por Santo Ambrósio para os irmãos; por Fócio para os parentes; por São Jerônimo, Santo Agostinho e, mais ainda, São João Crisóstomo, para as viúvas.
A luz despedida sobre este objeto pela tradição católica é tão viva e constante que passa através de todas as nuvens dos sofismas e da preocupação. Os testemunhos podem dividir-se em duas classes: os que afirmam simplesmente o fato, e os que dele tiram uma consolação. Entre as obras muitas vezes atribuídas a Santo Atanásio, esta glória tão pura do IV século, encontra-se uma que tem por título: 'Questões necessárias que nenhum cristão deve ignorar'. Ora, na resposta à XXII questão lê-se: 'Deus concede às almas justas, no Céu, um grande bem, o de se conhecerem mutuamente'.
No fim do mesmo século, São Paulino, que mais tarde foi Bispo de Nola, escrevia ao seu antigo preceptor, o poeta Ausônio: 'A alma sobrevive ao corpo, e é necessário que ela guarde os seus sentimentos e as suas afeições, tanto quanto a sua vida. Ela não pode esquecer que é imortal. Para qualquer lugar que Nosso Senhor me mande depois da minha morte, levar-vos-ei em meu coração, e o fatal golpe que me separar do meu corpo não porá termo ao amor que vos consagro'. No século V, o grande Bispo de Hipona dizia a seu auditório: 'Conhecer-nos-emos todos no Céu. Pensais vós que me conhecereis, por me haverdes conhecido na terra, mas não conhecereis meu pai, porque nunca o vistes? Repito-vos, conhecereis todos os santos. Eles se conhecerão, não porque vejam a face uns dos outros, mas verão como os profetas costumam ver na terra; ou ainda dum modo bem mais excelente. Verão divinamente. Por isso que estarão cheias de Deus. 'E vós, São Paulo e Santo Estêvão, o perseguidor e a vítima, não reinais juntamente com Jesus Cristo? Aí, vede-vos ambos mutuamente, ouvis o nosso discurso; orai ambos aí, orai ambos por nós. Aquele que vos coroou a ambos, vos ouvirá também a ambos.
No século XII, Honório d'Antun perguntava a si mesmo: 'Os justos conhecem-se na glória?' Eis a sua resposta: 'As almas dos justos conhecem todos os justos, até mesmo o seu nome, a sua raça e seus merecimentos, como se tivessem vivido sempre com eles. Conhecem também todos os maus, sabendo por que falta cada um deles está no inferno. Os maus conhecem os maus, e ainda conhecem os justos que veem, e até sabem seus nomes, como o rico avarento sabia o nome de Abraão e de Lázaro. Os justos oram por aqueles que amaram no Senhor ou que os invocam. Mas a sua alegria só se completará depois da ressurreição, quando tiverem recuperado os seus corpos e estivermos reunidos com eles; pois a nossa ausência causa-lhes, por enquanto, alguma solicitude - De abcentia lutem nostra sollicitantur' (Honorius d’Autun - Elucidarium, livro III, n. 7, 8).
Se quisesse interrogar sobre isto os teólogos modernos, seriam unânimes em responder afirmativamente. Que um só fale em nome de todos: 'Os santos', diz ele, 'veem-se reciprocamente; assim o pede a unidade do reino e da cidade em que vivem na companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus pensamentos e as suas afeições, como pessoas da mesma casa que estão unidas por um sincero amor. Entre os seus concidadãos celestiais, conhecem aqueles mesmos que não conheceram neste mundo, e o conhecimento das belas ações leva-os a outro conhecimento mais pleno daqueles que as praticaram' (Berti, De Theologicis disciplinis, livro III, cap. XIII, n. 2).
Os maiores santos e os homens mais eminentes da Igreja não receavam de recorrer a esta verdade, como a um fecundo manancial, para daqui haurirem as cristalinas águas das celestes consolações que distribuíam às pessoas aflitas. Quem, pois, ousaria ainda acusar de imperfeição este vivo desejo e esta doce esperança? Perdestes um irmão ou uma irmã? Consolai-vos como Santo Ambrósio se consolava a si mesmo: 'Ó meu irmão', dizia ele, 'visto que me precedestes aí, preparai-me um lugar nessa habitação comum, que daqui por diante será para mim a mais desejada. E assim como neste mundo tudo foi comum entre nós, também no Céu desconheceremos a lei de partilhas. Não façais esperar por muito tempo, eu vos suplico, aquele que experimenta um tão vivo desejo de se vos reunir. Esperai aquele que avança, auxiliai aquele que se apressa e, se vos parece que ainda tardo muito, fazei-me ir com mais ligeireza. Nunca estivemos na terra separados um do outro por muito tempo; mas éreis vós que costumáveis visitar-me. Agora, visto que o não podeis fazer, pertence-me ir para junto de vós. Ó meu irmão, que consolação me resta, a não ser esta esperança de nos reunirmos o mais breve possível? Sim, consola-me a esperança de que a separação que se efetuou entre nós pela vossa partida, não será de longa duração, e que por vossas súplicas obtereis a graça de atrair a vós com mais brevidade aquele que vos chora tão vivamente'.
Perdestes um filho ou uma filha? Recebei as consolações que um Patriarca de Constantinopla dirigia a um pai aflito. Este Patriarca não pode ser contado entre os homens eminentes, e ainda menos entre os santos. É Focio, o autor do cruel cisma que separa o Oriente do Ocidente. Mas suas palavras provam tanto mais, quanto que indicam ser idêntico o parecer dos gregos e latinos sobre este ponto. Ei-las: 'Se vossa filha vos aparecesse e vos falasse, tendo a sua mão apertada na vossa e o seu risonho semblante chegado ao vosso, não vos faria ela a descrição do Céu?' Depois acrescentaria: 'Por que vos afligis, ó meu pai? Estou no paraíso, onde a felicidade não tem limites. Ireis para lá um dia com minha querida mãe, e então achareis que nada vos disse de mais deste lugar de delícias, cuja realidade excede muito as minhas palavras. Ó querido pai, não me retenhais por mais tempo em vossos braços, mas deixai-me com satisfação voltar para o Céu, onde me arrasta a violência do meu amor! Expulsemos, portanto, a tristeza', conclui Focio, 'porque vossa filha está cheia de felicidade no seio de Abraão. Expulsemos a tristeza; porque, dentro de pouco tempo, a veremos ali exultar de alegria e contentamento' (Focio, Epistol. t. III, epist. 63, Tarasio, patricio, fratri).
Perdestes vosso marido? Ai! os vestidos de luto, que trajais continuamente, manifestam bem a desgraça que vos feriu, e a afeição que sobrevive ao vínculo que a morte quebrou. Aproveitai-vos, pois, das consolações que os Padres da Igreja ofereceram por tantas vezes às viúvas cristãs.
Perdestes vosso marido? Ai! os vestidos de luto, que trajais continuamente, manifestam bem a desgraça que vos feriu, e a afeição que sobrevive ao vínculo que a morte quebrou. Aproveitai-vos, pois, das consolações que os Padres da Igreja ofereceram por tantas vezes às viúvas cristãs.
São Jerônimo escrevia a uma viúva: 'Chorai vosso Lucínio como um irmão, mas regozijai-vos por ele reinar com Jesus Cristo. Vitorioso e seguro da sua glória, olha-vos do alto do Céu, anima-vos nas vossas aflições, e prepara-vos um lugar junto de si, com tal amor e caridade que, esquecendo-se do seu direito de esposo, começa ainda na terra por vos considerar como sua irmã, ou antes, como seu irmão, porque uma casta união não conhece esta diferença de sexo que se requer para o matrimônio'. Santo Agostinho escrevia a outra viúva: 'Não perdemos aqueles que saem dum mundo donde nós devemos também sair; mas enviamo-los, primeiro que nós, para essa outra vida, onde nos serão tanto mais queridos quanto mais conhecidos nos forem – Ubi nobis erunt quanto notiores, tanto utique cariores. Vós víeis melhor o seu rosto, mas ele via melhor o seu coração. Ora, quando o Senhor vier, porá em plena luz tudo o que estiver envolvido nas trevas, e manifestará os pensamentos do coração. Então cada um saberá o que disser respeito a todos, e não haverá distinção alguma entre os nossos e os estranhos para revelar um segredo aos primeiros e ocultá-lo aos segundos, pois na pátria celeste não haverá estranhos. Mas qual será a natureza, qual a intensidade da luz que assim manifestará tudo quanto o nosso coração encerra agora na obscuridade? Quem poderá dizê-lo? Quem poderá somente concebê-lo?'
São João Crisóstomo, numa das suas homilias sobre o Evangelho de São Mateus, dizia a cada um de seus ouvintes: 'Desejais ver aquele que a morte vos arrebatou? Segui a mesma vida que ele no caminho da virtude, e muito brevemente gozareis desta santa visão. Mas quereríeis vê-lo aqui mesmo? Ah! quem vos poderá estorvar? Se sois prudente, é-vos permitido e fácil vê-lo; porque a esperança dos bens futuros é mais clara do que a própria vista'.
Este sublime orador encontrava, na sua própria história, tudo o que podia torná-lo mais sensível às tristezas da esposa que perdera seu marido. Filho único de uma viúva, que vivia no meio da sociedade, entregue à fraqueza de sua idade e do seu sexo, tinha sido ele o confidente das suas lágrimas e da sua dor, até que a deixara só, como em segunda viuvez, fugindo ao seu amor para encerrar-se na solidão. Ele mesmo nos contou que Libânio, orador pagão, sabendo que sua mãe conservava casta viuvez desde a idade de vinte anos, e nunca tinha querido passar a segundas núpcias, exclamou, voltando-se para os que o cercavam: 'Oh! que mulheres são as cristãs!'
A Providência soube proporcionar a São João Crisóstomo a ocasião de aproveitar estas disposições do seu coração, consolando outra jovem, que só tinha vivido cinco anos com Terásio, seu marido, um dos principais homens do seu tempo. Escreveu a seu respeito dois tratados, que são tidos na conta dos seus mais notáveis livros. Entre outras palavras muitas mais consoladoras, diz-lhe: 'Se desejais ver o vosso marido, se quereis gozar da vossa mútua presença, fazei brilhar em vós a mesma pureza de vida que resplendecia nele, e estai certa que ireis assim fazer parte do mesmo coro angélico em que ele está. Habitareis em sua companhia, não por espaço de cinco anos, como na terra, mas por toda a eternidade. Tornareis então a encontrar vosso marido, não já com aquela beleza corpórea de que era dotado neste mundo, mas com outro esplendor, com outra beleza, que excederá em brilho os raios do Sol. Se vos tivessem prometido de dar a vosso esposo o império de toda a terra, com a condição de vos separardes dele por espaço de vinte anos; e se, além disto, prometessem restituir-vo-lo passado este espaço de tempo, ornado com o diadema e a púrpura, colocando-vos no mesmo grau de honra; não vos resignaríeis a esta separação, observando a castidade? Veríeis mesmo nesta proposição um insigne favor e um objeto digno de todos os vossos desejos.
Suportai, pois, agora, com resignação e paciência, uma separação que dá a vosso marido a realeza, não da Terra, mas do Céu; suportai-a para o encontrardes entre os bem-aventurados habitantes do Paraíso, coberto, não dum manto de ouro, mas dum vestido de glória e de imortalidade. Portanto, pensando nas honras de que Terásio goza no Céu, ponde termo às vossas lágrimas e aos vossos suspiros. Vivei como ele viveu, ou ainda com mais perfeição, para que, depois de haverdes praticado as mesmas virtudes, sejais recebida nos mesmos tabernáculos, unindo-vos novamente com ele por toda a eternidade, não pelo vínculo do matrimônio, mas por outro ainda melhor. O primeiro une somente os corpos, entretanto que o segundo, mais puro, mais agradável e mais santo, une também as almas'.
(Excertos da obra 'No Céu nos reconheceremos', do Pe. F. Blot, 1890)
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
NO CÉU NOS RECONHECEREMOS (I)
Da Segunda Carta de Consolação
I - Provas da Sagrada Escritura
A parábola do rico avarento, explicada por Santo Irineu, e sobretudo por São Gregório Magno – Fato que ele cita em apoio. O Juízo Final, base da argumentação de São Teodoro Studita
Todos os bem-aventurados admitidos no Céu conhecem-se perfeitamente, antes mesmo da ressurreição geral. Provam-no tanto a Sagrada Escritura como a Tradição. Limitar-me-ei a citar-vos o Novo Testamento, tomando apenas dele a parábola do rico avarento e algumas palavras que se referem ao juízo final. Está parábola é tão bela que não posso resistir ao desejo de apresentar a vossos olhos as suas passagens principais: Havia um homem rico que se trajava esplendidamente e se banqueteava com magnificência, todos os dias. Havia também ao mesmo tempo um pobre, chamado Lázaro, deitado à sua porta, todo coberto de úlceras, que desejava ardentemente saciar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber as suas feridas. Ora, aconteceu morrer este pobre, e foi transportado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico morreu também e teve por túmulo o inferno. E quando estava em tormentos, levantou os olhos para o Céu e viu, ao longe, Abraão e Lázaro em seu seio; e, exclamando, disse estas palavras: 'Pai Abraão, tende piedade de mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que molhe na água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, porque sofro horríveis tormentos nesta chama'.
Mas Abraão respondeu-lhe: 'Meu filho, lembra-te que recebeste muitos benefícios na terra, e que Lázaro só teve por companheira a miséria e o sofrimento; e é por isso que está gozando agora das maiores consolações, e tu estás em tormentos'. Replicou o avarento: 'Suplico-vos então, Pai Abraão, que o envieis à casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de adverti-los, pois receio que venham também para este lugar de tormentos' (Lc 16, 19-28).
Santo Ireneu, combatendo os hereges, escrevia no princípio do século III: 'O Senhor revelou-nos que as almas se lembram na outra vida das ações que praticaram nesta. Não nos ensina Ele esta verdade por meio da história do rico avarento e de Lázaro? Visto que Abraão conhece o que diz respeito a um e outro, as almas continuam portanto a conhecerem-se mutuamente e a recordarem-se das coisas da terra'. No fim do século IV, o Papa São Gregório Magno perguntava a si mesmo se os bons conheceriam os bons no reino do Céu, e se os maus conheceriam os maus no inferno. Sustentou a afirmativa: 'Vejo', disse ele, 'uma prova disto, mais clara do que o dia, na parábola do rico avarento. Não declara aqui o Senhor abertamente que os bons se conhecem entre si, e os maus também? Porque, se Abraão não reconhecesse Lázaro, como falaria de suas passadas desgraças ao rico avarento que estava no meio dos tormentos? E como não conheceria este mesmo avarento os seus companheiros de tormentos se tem cuidado de pedir pelos que ainda estão na terra? Vê-se igualmente que os bons conhecem os maus e os maus os bons. Com efeito, o avarento é conhecido por Abraão; e Lázaro, um dos escolhidos, é reconhecido pelo avarento, que é do número dos réprobos.
Este conhecimento põe o remate ao que cada um deve receber. Faz com que os bons gozem mais, porque se regozijam com aqueles que amaram na terra. Faz com que os maus, por isso que são atormentados com aqueles que amaram neste mundo até ao desprezo de Deus, sofram não só o seu próprio castigo, mas ainda, de alguma sorte, o dos outros. Há, mesmo para os bem-aventurados, alguma coisa mais admirável. Além de reconhecerem aqueles que conheceram neste mundo - Agnoscunt quos in hoc mundo noverante - reconhecem também, como se os houvessem visto e conhecido, os bons que nunca viram: Velut visos ac cognitos recognoscunt. Que podem ignorar os bem-aventurados no Céu, vendo em plena luz o Deus que tudo sabe? Um dos nossos religiosos, muito recomendável pela sua santidade, viu, junto de si, por ocasião da sua morte, os profetas Jonas, Ezequiel e Daniel, e designou-os por seus nomes. Este exemplo faz-nos claramente perceber quão grande será o conhecimento que teremos uns dos outros na incorruptível vida do Céu, visto que este religioso, estando ainda revestido da corruptibilidade, conheceu os santos profetas que nunca tinha visto'.
Encontramos um fato muito semelhante na vida da fundadora das Anunciadas Celestinas, Maria Vitória Fornari. Interrogava ela uma irmã conversa, pobre aldeã, sobre os em-aventurados que a honravam com suas aparições, como a Santíssima Virgem, Santo Onofre, Santa Catarina de Sena, etc. Surpreendida por ver que uma rapariga sem letras tinha um tão distinto conhecimento de tantos santos, a bem-aventurada perguntou-lhe onde havia aprendido tudo o que sabia a este respeito: 'Minha madre', disse ela com grande simplicidade, 'todos os santos se conhecem distintamente em Deus'. São Gregório Magno foi citado por escritores eclesiásticos muito antigos: na Alemanha, no século IX, por Haymon, Bispo de Halberstadt; na Inglaterra, no século VIII, pelo venerável Beda; na Espanha, no século VII, por São Julião, Bispo de Toledo. Todos participam do seu sentimento e o afirmam sem rodeios.
São Julião, por exemplo, antes de referir estas palavras do grande Pontífice, disse: 'As almas dos defuntos, privadas de seus corpos podem reconhecer-se mutuamente; o Evangelista assim o atesta. Não se pode duvidar de que as almas dos mortos se reconheçam: 'Non est dubitandum quod se defunctorum spiritus recognoscant’. Sobre o juízo final, temos as seguintes palavras de Jesus Cristo a seus discípulos: 'Em verdade vos digo que, quando chegar o tempo da regeneração, e o Filho do Homem estiver sentado no trono da sua glória, vós, que me tendes seguido, estareis sentados sobre doze cadeiras e julgareis as doze tribos de Israel' (Mt 19, 28).
Temos também estas palavras do grande Apóstolo aos Coríntios: 'Não sabeis que os santos devem um dia julgar o Mundo? Não sabeis que nós seremos os juízes dos mesmos anjos?' (1 Cor 6, 2-3). Tal é a base da argumentação de São Teodoro Studita, num discurso que fez no fim do século VIII ou princípio do IX, para refutar o erro que nos esforçamos por combater aqui. 'Alguns oradores', disse ele, 'enganam os seus ouvintes, sustentando que as criaturas ressuscitadas não se reconhecerão quando o Filho de Deus vier julgar-nos a todos. Como, exclamam, quando de frágeis nos tornarmos incorruptíveis e imortais; quando já não houver gregos, nem judeus, nem bárbaros, nem citas, nem escravos, nem homens livres, nem esposo, nem esposa; quando formos todos semelhantes em gênios, poderíamos reconhecer-nos mutuamente?'
Respondemos, em primeiro lugar, que o que é impossível aos homens é possível a Deus. Doutra sorte não acreditaríamos na ressurreição da carne, pretextando raciocínios humanos. E, efetivamente, como se poderá reorganizar no último dia um corpo desfeito em podridão, devorado talvez por animais ferozes, pelas aves ou pelos peixes, e estes devorados por outros e isto de muitas maneiras, e sucessivamente? Todavia, assim há de ser, e o secreto poder de Deus reunirá todas as suas partes espalhadas e as ressuscitará. Então, cada alma reconhecerá o corpo com que viveu.
Mas cada uma das almas reconhecerá também o corpo do seu próximo? Não se pode duvidar, sem que se ponha ao mesmo tempo em dúvida o juízo universal. Porque não se pode ser citado em juízo sem ser conhecido, e para julgar uma pessoa é preciso conhecê-la, segundo estas palavras da Sagrada Escritura: 'Convencer-vos-ei, e porei diante de vossos olhos vossos pecados' (Sl 49, 21). O valor deste raciocínio depende da seguinte distinção: no juízo particular, somos julgados só por Deus; mas, no juízo universal, julgaremos de alguma sorte uns aos outros. Entretanto, o primeiro só manifesta a justiça à alma que é julgada, o último a manifestará a todas as criaturas. Assim todas esperam, para o grande dia, a revelação dos filhos de Deus (Rom 8, 19) que fará mudar muito as apreciações dos homens.
O santo continua nestes termos: 'Portanto, se nos não reconhecermos mutuamente, não seremos julgados; se não formos julgados, não seremos recompensados ou punidos pelo que tivermos feito e sofrido neste mundo. Se não devem reconhecer aqueles a quem hão de julgar, verão porventura os Apóstolos o cumprimento desta promessa do Senhor: 'Assentar-vos-eis sobre doze tronos para julgardes as doze tribos de Israel?' (Mt 19, 28). E por estas palavras: 'Onde o próprio irmão não resgata, um estranho resgatará' (Sl 48, 8), não supõe o santo rei Davi que o irmão reconhecerá seu irmão? Muitas são as razões e autoridades que se opõem àqueles que pretendem negar o mútuo reconhecimento das almas no Céu; asserção insensata, asserção comparada pela impiedade às fábulas de Orígenes. Enquanto a nós, meus irmãos, acreditemos sempre que ainda havemos de ressuscitar, que nos tornaremos incorruptíveis, e que nos reconheceremos mutuamente, como nossos primeiros pais se conheciam no paraíso terrestre, antes do pecado, quando estavam ainda isentos de toda a corrupção.
Sim, é necessário crê-lo: Gredendum fore ut fratrem agnoscat frater, liberos pater, uxor maritum, amicus amicum – o irmão reconhecerá seu irmão, o pai a seus filhos, a esposa ao seu esposo, o amigo ao seu amigo; digo mais: o religioso reconhecerá o religioso, o confessor reconhecerá o confessor; o mártir, o seu companheiro de armas; o apóstolo, o seu colega no apostolado; todos nos conheceremos - quo omnium in Deo laetum domicilium sit - a fim de que a habitação de todos em Deus se torne mais agradável pelo benefício, além de tantos outros, de nos reconhecermos mutuamente'.
(Excertos da obra 'No Céu nos reconheceremos', do Pe. F. Blot, 1890)
sábado, 31 de janeiro de 2015
GALERIA DE ARTE SACRA (XVIII)
CRISTO CRUCIFICADO - RETÁBULO DE ISSENHEIM
(Mathias Grünewald)
Pouca coisa se sabe realmente sobre Mathias Grünewald, pintor alemão nascido em Würzburg (Baviera) por volta de 1475-1480 e falecido em Halle (Saxônia) em 1528. O próprio nome do pintor não seria esse, mas Mathis Gothart Nithart, que assinava suas obras como MGN. Sua produção artística é limitada e quase restrita a grandes retábulos de madeira, constituídos por diferentes painéis e dotados de compartimentos fixos e móveis. O grande retábulo de Issenheim (aldeia da Alsácia, na Alemanha), obra mais famosa de Grünewald, foi pintado em 1515 e contém, em sua parte central, uma perturbadora imagem de Cristo Crucificado.
Todo o quadro apresenta uma dramaticidade intensa. Sobre um fundo totalmente negro, projeta-se a imagem retorcida do Crucificado sobre uma cruz enorme, que domina quase todo o quadro, numa tradução quase literal do sofrimento atroz pelo qual padeceu Jesus. O realismo da dor é enfatizado brutalmente pelos braços retorcidos, pelos pés e mãos crispadas, pelo corpo ensanguentado e chagado, pelas vestes rasgadas, pelo braço superior da cruz vergado.
À esquerda da cruz, são apresentadas as testemunhas formais da crucificação do Senhor: Nossa Senhora (envolta numa espécie de sudário branco) é amparada por São João Evangelista, enquanto Maria Madalena se prostra de joelhos com as mãos contorcidas em um gesto de completo desespero, tendo, à sua frente, um pequeno pote de unguentos. À direita da cruz, encontra-se representada, como elemento extrínseco ao Calvário, a figura de São João Batista, portando uma Bíblia aberta e apontando para Jesus como o verdadeiro Messias, fato ressaltado pela inscrição inserida acima do seu braço estendido (Jo 3, 30): Illum oportet crescere, me autem minui ('É preciso que Ele cresça e que eu diminua'). Aos seus pés, encontra-se o Cordeiro, símbolo do Cristo Crucificado, que derrama o seu sangue num cálice, referência à santa eucaristia, para a salvação de todos os pecadores (representados pela figura menor de Maria Madalena no quadro).
terça-feira, 27 de janeiro de 2015
POEMAS PARA REZAR (XVI)
There’s a wideness in God’s mercy
(Pe. Frederick Faber)
There’s a wideness in God’s mercy
like the wideness of the sea;
there’s a kindness in his justice,
which is more than liberty.
Há uma grandeza na misericórdia de Deus
tal como o mar possui a imensidade;
e há uma compaixão tal em sua justiça,
que é maior que toda a liberdade.
There is no place where earth's sorrows
are more felt than in God's heaven:
there is no place where earth's failings
have such kindly judgment given.
Não há nenhum lugar onde as tristezas da terra
são mais sentidas do que no Paraíso;
não há nenhum lugar onde os pecados da terra
são ponderados com mais doce juízo.
For the love of God is broader
than the measure of the mind;
and the heart of the Eternal
is most wonderfully kind.
Pois o amor de Deus tem maior medida
que a nossa mente possa imaginar
e o Coração de Deus tem mais tesouros
do que podemos sonhar.
If our love were but more faithful,
we should take him at his word;
and our life be filled with glory
from the glory of the Lord.
Se o nosso amor fosse todo medido
em buscar Jesus sem nenhum temor
nossa vida seria graça sobre graça
tangida pela glória do Senhor.
(tradução livre do autor do blog)
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
VERSUS: CIÊNCIA DOS HOMENS X CIÊNCIA DE DEUS
Ao falar da ciência mundana, diz São Paulo: 'A ciência incha, a caridade porém edifica. O que julga saber muito, ainda ignora como deve saber. Quando a ciência mundana anda associada ao amor de Deus, é de grande vantagem para nós e para os outros; mas, quando se acha desacompanhada da caridade, causa-nos grande dano, tornando-nos orgulhosos e levando-nos a desprezar os outros; porque, tanto o Senhor é pródigo das suas graças com os humildes, como ávaro com os orgulhosos'.
Ditoso o homem a quem Deus dá a ciência dos santos, como a deu a Jacó: Dedit illi scientiam sanctorum (Sab 10, 10)! Deste dom, como do maior de todos, fala a Escritura. Ó quantos homens vivem cheios de si mesmos, pelos conhecimentos que têm das matemáticas, belas letras, línguas estrangeiras e antiguidades, que nada aproveitam ao bem da religião, nem aumenta as vantagens espirituais! De que serve possuir uma tal ciência, saber tão belas coisas, se não se sabe amar a Deus e praticar a virtude? Os sábios do mundo, que só procuram adquirir um grande nome, estão privados das luzes celestes, que o Senhor dispensa aos simples: Abscondisti haec a sapientibus et prudentibus (sábios e prudentes do século), et revelasti eo parvulis (Matth.11, 25). Os Parvuli são os espíritos simples, que põem todo o seu cuidado em agradar a Deus.
Santo Agostinho proclama bem-aventurado o que conhece a grandeza e bondade de Deus embora ignore tudo o mais: Beatus, qui te scit, etiamsi illa nesciat (Conf. 1. 5 c. 4). Quem não conhece a Deus, não pode amá-lo; ora, quem ama a Deus é mais sábio que todos os literatos, que não sabem amá-lo. Hão de levantar-se os ignorantes e arrebatar o Céu, exclama o mesmo santo doutor! Quantos rústicos, quantos pobres camponeses, subirão à santidade e conseguirão a vida eterna, da qual quereriam gozar antes um só instante, do que adquirir todos os bens da terra! Aos Coríntios escrevia o Apóstolo: Não fiz profissão entre vós de saber outra coisa senão a Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado. Como seríamos felizes se chegássemos a conhecer a Jesus Crucificado, a conhecer o amor que ele nos testemunhou e o amor que mereceu da nossa parte, sacrificando por nós a sua vida na cruz, e se, estudando um livro tal, chegássemos a amá-lo com um amor ardente!
Um grande servo de Deus, o Pe. Vicente Carafa, escrevendo a alguns jovens eclesiásticos, que estudavam para trabalharem na salvação das almas, dizia-lhes: 'Para operar grandes conversões nas almas, mais vale ser homem de muita oração, que de muita eloquência; porque as verdades eternas, que convertem as almas, melhor se pregam pelo coração que pelos lábios somente'. Devem pois os ministros do Evangelho ter uma vida que se mostre de acordo com o que ensinam; devem, numa palavra, apresentar-se como homens que, desprendidos do mundo e da carne, só procuram a glória de Deus, e fazê-lo amar de todos. Por isso o Pe. Carafa ajuntava: 'Ponde todo o vosso cuidado em vos dardes ao exercício do amor divino; desde que o amor de Deus toma posse do nosso coração, só por si o desapega de todo o amor desordenado, e o torna puro, despojando-o dos afetos terrenos'. 'Um coração puro', diz Santo Agostinho, 'é um coração vazio de toda a cobiça: Cor purum est cor vacuum ab omni cupiditate'. Com efeito, ajunta São Bernardo, 'quem ama a Deus só pensa em o amar e não deseja outra coisa: Qui amat, amat, et aliud novit nihil' (In Cant. s. 83).
Dizia São Tomás de Vilanova: 'Para converter os pecadores, e fazê-los sair do atoleiro das suas iniquidades, são necessárias flechas de fogo; mas como podem elas provir dum coração gelado, que o amor de Deus não aquece?' A experiência mostra que um padre de ciência medíocre, mas abrasado no amor de Jesus Cristo, atrai mais almas a Deus, que muitos oradores sábios e eloquentes, que deleitam os ouvintes. Aqueles que, por seus conhecimentos raros, belos pensamentos e engenhosas reflexões, despedem os seus ouvintes muito satisfeitos, deixam-nos afinal com o coração desprovido do amor de Deus, e talvez mais frio que antes. Mas o que aproveita isso para o bem comum? E que fruto colhe o pregador, senão agravar mais a sua responsabilidade diante de Deus? Em vez dos bons frutos que podia produzir com o seu sermão, somente granjeia vãos aplausos. Ao contrário, quem de um modo simples prega a Jesus crucificado, não para ser louvado, mas só para O fazer amar, desce da cadeira enriquecido de merecimentos pelo bem que fez, ou que pelo menos desejava fazer nos seus ouvintes.O que acima fica dito tem aplicação, não só aos pregadores, mas também aos professores e confessores. Quanto bem pode fazer um professor de ciências, ensinando a seus discípulos as máximas da verdadeira piedade!O mesmo se pode dizer dos confessores.
Notem-se também os abundantes frutos que se podem produzir nas conversas com os outros. Pode-se pregar sempre; mas que bem um padre instruído e santo pode fazer na conversação, falando a propósito da vaidade das grandezas humanas, da conformidade com a vontade de Deus e da necessidade que temos de nos recomendarmos sem cessar à proteção do Céu, no meio de tantas tribulações que nos afligem e de tantas tentações que nos assaltam! Digne-se o Senhor dar-nos as luzes e forças de que necessitamos para empregarmos os restantes dias da nossa vida em O amar e fazer a sua vontade, pois que só isso nos aproveita e tudo o mais é perdido!
(Excertos da obra 'A Selva', de Santo Afonso Maria de Ligório)
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
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