domingo, 31 de agosto de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Com carinho preparastes uma mesa para o pobre' (Sl 67)

Primeira Leitura (Eclo 3,19-21.30-31) - Segunda Leitura (Hb 12,18-19.22-24a) -  Evangelho (Lc 14,1.7-14)

  31/08/2025 - VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM

'QUEM SE HUMILHA SERÁ ELEVADO'


Humildade e mansidão são os frutos da fé para deleite de abundantes graças de Deus para aquele que vive a generosidade despojada dos que seguem a Jesus: 'Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração' (Mt 11, 29). Na parábola do Evangelho deste domingo, estas virtudes essenciais da graça são manifestas na transposição dos primeiros e dos últimos lugares de um grande banquete.

Diante do Filho de Deus vivo, os escribas e fariseus se preocuparam primeiro em ocupar lugares de honra à mesa. Eles observavam Jesus, eles tinham curiosidade, interesse e empenho em questionar Jesus por qualquer uma de suas palavras ou ações, mas não percebiam a própria insensatez e vaidade de suas ações primeiras: a busca desenfreada por ocupar os primeiros lugares, a vanglória de usufruir com pompas uma posição destacada na mesa de jantar, a jactância de se apropriar sem rodeios das melhores posições para exercerem, com maior júbilo e sem reservas, o desmedido orgulho de suas escolhas humanas.

Eis que Jesus os conclama a viver a humildade da vida em Deus, sem buscar os privilégios e os prestígios efêmeros do mundo: 'Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar... Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar' (Lc 14, 8, 10). Como convivas do banquete, seremos provedores de honra ou da vergonha, dependendo da medida de nossa humildade ou da desdita de nosso orgulho: 'Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado' (Lc 14, 11).

E a humildade não pode prescindir do despojamento, da generosidade desinteressada, da mansidão. A mão que estende a dádiva não se curva à retribuição; a ação de oferta não se compraz da gratidão; a semente que gerou fruto não impõe recompensa alguma. Oferece o 'banquete' de seus dons e talentos aos pobres, e aleijados, e coxos, e cegos...'porque eles não te podem retribuir' (Lc 14, 14). Assim, sem a gratidão e os louvores humanos, o homem sábio ajunta tesouros e a recompensa eterna na ressurreição dos justos.

sábado, 30 de agosto de 2025

A GLÓRIA DAS GLÓRIAS É A CRUZ!

Toda ação de Cristo é glória da Igreja católica. Contudo, a glória das glórias é a cruz. Paulo, muito bem instruído, disse: 'Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Cristo'.

Foi uma coisa digna de admiração que ele tenha recuperado a vista àquele cego de nascença em Siloé. Mas o que é isto em vista dos cegos do mundo inteiro? Foi estupendo e acima das forças da natureza ressuscitar Lázaro após quatro dias de morto. Mas a um só foi dada essa graça; e os outros todos, em toda a terra, mortos pelo pecado? Foi maravilhoso alimentar com cinco pães, qual fonte, a cinco mil homens. Mas e aqueles que em toda a parte sofrem a fome da ignorância? Foi magnífico libertar a mulher ligada há dezoito anos por Satanás; mas que é isto se considerarmos a todos nós, presos pelas cadeias de nossos pecados?

Pois bem; a glória da cruz encheu de luz os que estavam cegos pela ignorância, libertou os cativos do pecado, remiu o universo inteiro. Não nos envergonhemos da cruz do Salvador. Muito pelo contrário, dela tiremos glória. Pois a palavra da cruz é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, para nós, no entanto, é salvação. Para aqueles que se perdem é loucura; para nós, que fomos salvos, é força de Deus. Não era um simples homem quem por nós morria; era o Filho de Deus feito homem.

Outrora o cordeiro, morto segundo a instituição mosaica, afastava para longe o devastador. Porém, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, não poderá muito mais libertar dos pecados? O sangue de um cordeiro irracional manifestava a salvação. Sendo assim, não trará muito maior salvação o sangue do Unigênito?

O Cordeiro não entregou a vida coagido, nem foi imolado à força, mas por sua plena vontade. Ouve o que ele disse: 'Tenho o poder de entregar minha vida; e tenho o poder de retomá-la'. Chegou, portanto, com toda a liberdade à paixão, alegre com a excelente obra, jubiloso pela coroa, felicitando-se com a salvação do homem. Não se envergonhou da cruz pois trazia a salvação para o mundo. Não era um homem qualquer aquele que padecia, era o Deus encarnado a combater pelo prêmio da obediência.

Por conseguinte, não te seja a cruz um gozo apenas em tempo de paz. Também em tempo de perseguição guarda a mesma fidelidade, não aconteça seres tu amigo de Jesus durante a paz e inimigo durante a guerra. Agora recebes a remissão dos pecados e és enriquecido com os generosos dons espirituais de teu rei. Rebentando a guerra, luta por ele valorosamente.

Jesus foi crucificado em teu favor, ele não tinha pecado. Tu, por tua vez, não te deixarás crucificar por aquele que em teu benefício foi pregado na cruz? Não estarás fazendo nenhum favor porque primeiro recebeste. Entretanto, mostras tua gratidão pagando a dívida a quem por ti foi crucificado no Gólgota.

(Das Catequeses de São Cirilo)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (I)


PARTE I - SOBRE A MORTE

I. Sobre os Terrores da Morte

Parece-me desnecessário falar muito sobre os terrores da morte. O assunto já foi suficientemente abordado por vários escritores; além disso, todos sabem e sentem por si mesmos que a vida é doce e a morte é amarga. Por mais velho que seja um homem, por mais debilitada que seja sua saúde, por mais miseráveis que sejam suas circunstâncias, a ideia da morte é sempre desagradável. Há três razões principais pelas quais todas as pessoas sensatas temem tanto a morte:

Primeiro, porque o amor pela vida e o medo da morte são inerentes à natureza humana. Segundo, porque todo ser racional está bem ciente de que a morte é amarga e que a separação da alma e do corpo não pode ocorrer sem um sofrimento inexprimível. Terceiro, porque ninguém sabe para onde irá após a morte, ou como será seu julgamento no Dia do Juízo Final.

Será bom explicar a segunda e a terceira dessas razões de forma mais completa, a fim de que, por um lado, aqueles que levam uma vida descuidada possam talvez despertar para o medo da morte e aprender a evitar o pecado e, por outro, para que cada um de nós seja alertado a se preparar para a morte, para que não sejamos surpreendidos por ela sem estar preparados. Todos recuam instintivamente diante da morte, porque ela é amarga e dolorosa e além da percepção para a natureza humana. 

A alma do homem está sujeita a muitas ansiedades, apreensões e tristezas, e o corpo está sujeito a dores e doenças de todos os tipos, mas nenhuma dessas dores pode ser comparada à agonia da morte. Um homem que perde seu bom nome e seus bens sente uma dor aguda, mas não morre por causa disso. Todo sofrimento e doença, toda dor e angústia, por mais terríveis que sejam, são menos amargos do que a morte. Por isso, vemos a morte como um monarca poderoso, o mais cruel, o mais implacável, o mais formidável inimigo da humanidade. Observe um homem lutando contra a morte e você verá como o tirano domina, desfigura e prostra sua vítima. Agora, por que a morte é algo tão difícil, tão terrível?

É porque a alma tem que se separar do corpo. O corpo e a alma foram criados um para o outro, e sua união é tão íntima que a separação entre eles parece quase impossível. Eles suportariam quase tudo em vez de serem separados. A alma tem medo do futuro e da terra desconhecida para onde está indo. O corpo está consciente de que, assim que a alma se afastar dele, se tornará presa dos vermes. Consequentemente, a alma não suporta deixar o corpo, nem o corpo se separar da alma. O corpo e a alma desejam que sua união permaneça intacta e que juntos desfrutem das alegrias da vida.

Em uma de suas epístolas a Santo Agostinho, São Cirilo, bispo de Jerusalém, relata o que lhe foi dito por um homem que havia ressuscitado dos mortos. Entre outras coisas, ele disse: 'O momento em que minha alma deixou meu corpo foi de uma dor e angústia tão terríveis que ninguém pode imaginar a angústia que eu então suportei. Se todos os sofrimentos e dores concebíveis fossem reunidos, eles seriam nada em comparação com a tortura que eu sofri na separação da alma e do corpo'. E para enfatizar suas palavras, ele acrescentou, dirigindo-se a São Cirilo: 'Tu sabes que tens uma alma, mas não sabes o que ela é. Tu sabes que existem seres chamados anjos, mas és ignorante quanto à sua natureza. Tu também sabes que existe um Deus, mas não consegues compreender o seu ser. Assim é com tudo o que não tem forma corpórea; nossa compreensão não consegue captar essas coisas. Da mesma forma, é impossível para ti compreender como eu pude sofrer uma agonia tão intensa em um breve momento'. E se algumas pessoas aparentemente partem de forma muito pacífica, isso é porque a natureza, exausta pelo sofrimento, já não tem forças para lutar contra a morte.

Sabemos, pelo testemunho do próprio Nosso Redentor, que nenhuma agonia se compara à agonia da morte. Embora ao longo de toda a sua dolorosa Paixão Ele tenha sido torturado de forma terrível, todo o martírio que Ele suportou não se compara ao que Ele sofreu no momento da sua morte. Isso é o que deduzimos dos Evangelhos. Em nenhum lugar encontramos que, em qualquer período da sua vida, a grandeza das dores que Ele suportou tenha arrancado de Nosso Senhor um grito de angústia. Mas quando chegou o momento de Ele expirar, e a mão implacável da morte rasgou o seu Coração, lemos que Ele gritou em alta voz e entregou o espírito. Portanto, é evidente que em nenhum momento da Paixão Cristo sofreu tão intensamente como na separação mais dolorosa da sua alma sagrada do seu corpo abençoado.

Para que a humanidade pudesse, pelo menos em certa medida, compreender quão terrível foi a morte que Cristo morreu por nós, Ele determinou que, ao morrermos, provássemos um pouco da amargura da sua morte e experimentássemos a verdade das seguintes palavras do Papa São Gregório: 'O conflito de Cristo com a morte representou nosso último conflito, ensinando-nos que a agonia da morte é a agonia mais intensa que o homem já sentiu ou jamais sentirá. É vontade de Deus que o homem sofra tão intensamente no fim de sua vida, para que possamos reconhecer e apreciar a magnitude do amor de Cristo por nós, o benefício inestimável que Ele nos conferiu ao suportar a morte por nossa causa. Pois teria sido impossível para o homem conhecer plenamente o amor infinito de Deus, a menos que ele também tivesse bebido, em certa medida, do cálice amargo que Cristo bebeu'.

Nesta passagem dos escritos do santo Papa Gregório, somos ensinados que Cristo ordenou que todos os homens, na hora de sua dissolução, sofressem as mesmas dores que Cristo sofreu por nós em sua última agonia, a fim de que pudessem adquirir algum conhecimento, por sua própria experiência, da natureza terrível da morte que Ele suportou por nós e do grande preço que Ele pagou pelo nosso resgate. Quão dolorosa, quão terrível, quão horrível será a morte para nós, se a nossa morte se assemelhar, em qualquer grau que seja, à morte agonizante de Cristo!

Que conflito severo está diante de nós, pobres mortais! Que tormentos nos aguardam em nossa última hora! Quase nos sentimos inclinados a pensar que teria sido preferível nunca ter nascido, a nascer para sofrer tal angústia. Mas é assim que o Céu deve ser conquistado e somente por esta porta estreita podemos entrar no Paraíso. Portanto, ó cristão, aceite o seu destino com alegria e tome a firme resolução de suportar sem reclamar a amargura da morte. Pois é um grande mérito entregar a vida que todo homem ama tanto e submeter-se com mente pronta e disposta às dores da morte. E com o objetivo de encorajá-lo a ganhar méritos em seus últimos momentos, deixe-me aconselhá-lo a tomar a seguinte decisão de sofrer a morte com coragem.

RESOLUÇÃO

Ó Deus de toda justiça, que determinaste que, desde a queda de nossos primeiros pais, todos os homens morressem, e também que fosse o destino de muitos entre nós provar em sua morte algo das dores que o teu Filho suportou na hora da sua morte, eu me submeto de boa vontade a este teu severo decreto. Embora a vida seja doce para mim e a morte pareça muito amarga, ainda assim, por obediência a Ti, aceito voluntariamente a morte com todas as suas dores e estou pronto para entregar minha alma quando, onde e da maneira que for do agrado da Divina Providência. E uma vez que fizeste a morte tão amarga para o homem, a fim de que pudéssemos sentir, em certa medida, por nossa própria experiência, quão dolorosa foi a morte que o teu amado Filho sofreu por nossa causa, aceito de bom grado a pena da morte, para que, pelo menos no meu fim, possa conhecer algo das dores que o meu abençoado Senhor sofreu por minha causa. Em honra, portanto, da sua amarga Paixão e morte, submeto-me agora alegremente a quaisquer sofrimentos que eu possa ser chamado a passar no momento da minha partida, e declaro minha determinação de suportá-los com toda a constância de que sou capaz. Rezo para que esta resolução da minha parte seja agradável aos teus olhos e que Tu me dês a graça de suportar minha última agonia com paciência. Amém.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

OS PAPAS DA IGREJA (XXXIII)



quinta-feira, 28 de agosto de 2025

28 DE AGOSTO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA

 


"...Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Ti."

Dia 28 de agosto é a festa de um dos grandes santos da Igreja, um dos fundadores da chamada Patrística (a fase inicial da formação da Teologia Cristã e seus dogmas). Santo Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, perto de Hipona, na Numídia (atual Argélia), filho de Patrício e Mônica (santa da Igreja Católica, cuja festa é celebrada em 27 de agosto). Da vida promíscua ao desvario da sua inclusão em seitas maniqueístas, Santo Agostinho experimentou desde a indiferença até a descrença completa nas coisas de Deus. A resposta da sua mãe, profundamente dolorosa diante a perspectiva da perda eterna da alma do filho amado, foi sempre a mesma: oração, oração, oração!

E a conversão de Agostinho foi lenta e profunda: no ano de 382, em Milão, então com 32 anos de idade, o santo foi finalmente batizado, junto com um amigo e o seu filho Adeodato (que morreria pouco tempo depois) por Santo Ambrósio. E que conversão! Sobre o tapete dos pecados passados, da vida desregrada da juventude (que descreveria com imenso desgosto em sua obra máxima ‘Confissões’), nasceria um santo dedicado por inteiro à glória de Deus, pregando como sacerdote e, mais tarde, como bispo de Hipona, que a verdadeira fonte da santidade nasce, renasce e se fortalece na humildade. Combateu com tal veemência as diversas frentes de heresias do seu tempo, incluindo o arianismo e o maniqueísmo, que foi alcunhado de Escudo da Fé e Martelo dos Hereges. Santo Agostinho, Doutor da Igreja e Defensor da Graça, morreu em 28 de agosto de 430, aos 76 anos de idade.

Excertos da Obra: 'Confissões', de Santo Agostinho:

'Amo-te, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feriste o meu coração com a tua palavra, e eu amei-te. Mas eis que o céu, e a terra, e todas as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que te ame, e não cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Tu, porém, compadecer-te-ás mais profundamente de quem te compadeceres,e concederás a tua misericórdia àquele para quem fores misericordioso: de outra forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os teus louvores. Mas que amo eu, quando te amo? Não a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem esta claridade da luz, tão amável a meus olhos, não as doces melodias de todo o gênero de canções, não a fragrância das flores, e dos perfumes, e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros agradáveis aos abraços da carne. Não é isto o que eu amo, quando amo o meu Deus, E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que o que a saciedade não separa. Isto é o que eu amo, quando amo o meu Deus'.

'Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha considerado e meditado no meu coração fugir para a solidão, mas tu proibiste-me e encorajaste-me, dizendo: Cristo morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e considerarei as maravilhas da tua Lei. Tu conheces a minha incapacidade e a minha fragilidade: ensina-me e cura-me. O teu Unigênito, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, redimiu-me com o seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque penso no preço da minha redenção, e como, e bebo, e distribuo, e, pobre, desejo saciar-me dele entre aqueles que dele se alimentam e saciam: e louvam o Senhor aqueles que o procuram'.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (V)


No comentário sobre o Livro do Gênesis, escrito em 414 d.C, Santo Agostinho baseou-se em observações astronômicas consolidadas para chegar à conclusão de que o Primeiro Relato da Criação do Gênesis deve contemplar uma cosmogonia simbólica e não uma descrição científica pronta e acabada. No relato bíblico, cada 'dia' termina com as palavras 'veio a tarde e seguiu-se a manhã'. Santo Agostinho percebeu que os seis 'dias' não poderiam ter o significado usual de dias de 24 horas, pois era bem sabido que os horários da noite e do dia são diferentes em diferentes partes do mundo:

'Mas se eu disser que [os dias são períodos de vinte e quatro horas], receio que serei ridicularizado por aqueles que sabem isso com certeza... que durante o tempo em que é noite para nós, a presença da luz está iluminando outras partes do mundo, além das quais o sol estará retornando do seu pôr do sol para o seu renascer... Então, vamos realmente colocar Deus em alguma parte [do mundo] onde pode ser noite para ele, enquanto a luz se retira dessa parte para outra?' [St. Augustine, De Genesi ad Litteram].

E Santo Agostinho, inspirado por sua reverência pela sabedoria perfeita de Deus, considerou também desprovida a ideia de atos criativos, separados da parte de Deus, para explicar as origens dos seres vivos ou dos seres humanos. Se Deus é perfeito, seu ato criativo também deve ser perfeito, sem falta de nada, sem necessidade de atos divinos adicionais para completá-lo. Portanto, Santo Agostinho especulou que Deus criou o universo com tudo o que ele precisava para produzir vida. Por exemplo, ele ensinou que todos os seres vivos, incluindo os seres humanos, existiam naturalmente no universo desde o seu primeiro momento, não como organismos reais, mas como rationes seminales - isto é, com 'razões seminais' ou 'princípios similares a sementes' - ocultos na própria natureza ou, por assim dizer, na própria textura dos elementos... [requerendo apenas] a ocasião adequada e propícia para realmente emergir' [St. Augustine, De Trinitate 3.9.16. Cf. De Genesi].

Embora não tivesse noção de descendência comum a partir de um ancestral original, nem de seleção natural e variação genética, a integridade da natureza como fonte da vida, que Darwin defenderia, já era celebrada por este Padre e Doutor da Igreja um milênio e meio antes dele.

(Fonte: Society of Catholic Scientists, artigo de Christopher Baglow)

terça-feira, 26 de agosto de 2025

'SOU DEVORADO PELO AMOR DE DEUS!'


O 'santo' é aquele que ama. O que transforma um homem em 'santo' é o amor. Mas não o amor humano. Não o amor terreno. Não o amor carnal. Não o amor natural. Não, nenhum desses amores jamais pode transformar um homem em um 'santo'.

Se pensarmos em São Pedro e São Paulo, os Apóstolos, por exemplo, se pensarmos em Santa Maria Madalena e São João Evangelista, se pensarmos em São Francisco de Assis e Santa Clara, imediatamente entendemos que eles foram transformados em 'santos' somente pelo amor divino:

Foi somente o amor divino, de fato, que fez de São Pedro e São Paulo dois 'mártires' intrépidos , que fez de Santa Maria Madalena e São João Evangelista dois santos 'amados' por Jesus, que fez de São Francisco e Santa Clara de Assis dois santos 'seráficos'.

Os santos, todos os santos, são as obras-primas do amor divino, isto é, do amor a Deus e ao próximo, levado às alturas ardentes do amor heróico que procura sacrificar-se e consumir-se total e plenamente, sem medida, à imitação de Jesus crucificado que se sacrificou inteiramente, deixando-se esgotar por amor ao Pai e por amor a todo o homem.

A expressão do Padre Pio – 'sou devorado pelo amor de Deus e pelo amor ao próximo' – revela, precisamente, a dinâmica do amor divino que 'devora' e consome o homem, transformando-o num 'santo', isto é, numa 'sarça ardente' de amor que arde cada vez mais intensamente sem nunca se consumir (cf Ex 3,2).

Se refletirmos sobre a vida do Padre Pio, podemos ver que é exatamente assim que as coisas são. Desde criança, aos cinco anos de idade, ele foi inspirado a amar Jesus, já tentando imitá-lo, batendo-se com correntes, dormindo no chão, desejando compartilhar o seu sofrimento pelos pecadores. E, em sua vida religiosa como capuchinho e em seu apostolado sacerdotal, durante cinquenta anos sangrando estigmas, ele se ofereceu verdadeira e heroicamente à imolação diária em seu ministério como confessor para regenerar as almas dos homens para que fossem salvas e conduzidas ao Céu.

Este é o amor divino do 'santo'. Não um amor divino comedido ou medíocre, mas um amor 'devorador', sem medida. Não um amor divino de água e açúcar - como o nosso! - mas um amor divino inteiramente de 'sangue'.

(Excertos da obra 'O Pensamento do Padre Pio', do Pe. Stefano Manelli)

OS PAPAS DA IGREJA (XXXII)

 



segunda-feira, 25 de agosto de 2025

ORAÇÃO PARA PEDIR A SALVAÇÃO


Socorrei-me, Senhor e vida minha, afim de que não venha a morrer na minha maldade. Se não me criásseis, não existiria; criastes-me, passei a existir; se não me dirigirdes, cessarei de existir.

Não foram encantos ou méritos meus que vos compeliram a dar-me o ser, senão a vossa infinita munificência.

Suplico-vos, pois, que aquele mesmo amor que vos compeliu à minha criação possa igualmente compelir-vos a reger-me; porquanto que aproveita haver-vos o vosso amor compelido a criar-me, se eu morrer na minha miséria, privado da direção de vossa destra?

Obrigai-vos, Senhor, a salvar-me com a mesma clemência que vos levou a tirar do nada o que jazia no nada; movei-vos em libertar-me com a mesma caridade que vos moveu em criar-me, pois não é hoje menor este vosso atributo do que era então.

A caridade sois vós mesmos, que sempre sois e não mudais. Não se vos encurtou a mão, que não possais salvar-me; nem se vos endureceu o ouvido, que não mais vos seja dado ouvir-me.

(Santo Agostinho)

domingo, 24 de agosto de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Proclamai o Evangelho a toda criatura!' (Sl 116)

Primeira Leitura (IS 66,18-21) - Segunda Leitura (Hb 12, 5-7.11-13) -  Evangelho (Lc 13,22-30)

  24/08/2025 - VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM

A PORTA ESTREITA


No Evangelho deste domingo, Jesus é indagado, mais uma vez, por alguém da multidão: 'Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam? (Lc 13, 23). A pergunta já traduz uma questão que perpassava a mente do questionador, dos homens daquela época, da mente dos homens de todos os tempos: 'existe um conceito estabelecido de que é uma minoria dos homens que estão destinados à felicidade eterna com Deus'. Essa questão, se verdadeira ou não, dominou o interesse e o estudo aprofundado de muitos teólogos e Padres da Igreja.

Da posição rigorosa de um São Leonardo do Porto Maurício sobre ‘o pequeno número dos que se salvam’ até manifestações totalmente opostas de que certamente a maior parte dos homens está destinada à Glória Eterna, predominam outras tantas proposições, todas não definidas ou consolidadas nem pela Igreja nem pela Tradição Cristã. Na Suma Teológica, São Tomás de Aquino alinha umas tantas suposições, sem se ater a nenhuma delas: 'a respeito de qual seja o número dos homens predestinados, dizem uns que se salvarão tantos quantos foram os anjos que caíram; outros, que tantos como os anjos que perseveraram; outros, enfim, que se salvarão tantos homens quantos anjos caíram e, ademais, tantos quantos sejam os anjos criados' (Suma Teológica I, q.23).

Ouçamos a resposta de Jesus: 'Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão' (Lc 13, 24). A porta é estreita e muitos não conseguirão entrar. Porta estreita, mas aberta aos que perseverarem na sua fé, em meio às provações e inquietações do mundo. Se muitos não poderão entrar, não significa que muitos não o poderão fazer: 'Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus' (Lc 13, 29). Mas é preciso viver a verdadeira vida em Deus, e fazer 'todo esforço possível' (Lc 13, 24) para seguir os caminhos do bem e viver na graça do Pai.

Jesus é a Porta do Céu. E a porta é estreita porque todos os caminhos da salvação passam por Ele e, passar por Jesus, significa estar livre do pecado mortal e guardar o nosso coração do apelo às paixões desordenadas do mundo. Mas a porta é estreita e fechada aos que escolheram o mundo e aos que, se dizendo de Cristo, cumpriram meros preceitos formais, praticaram a injustiça e o pecado livremente, traíram ou refizeram as palavras e os ensinamentos de Cristo às suas próprias interesses e comodidades: 'Uma vez que o dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a bater, dizendo: ‘Senhor, abre-nos a porta!’ Ele responderá: ‘Não sei de onde sois’ (Lc 13, 25). E estes ficarão de fora do banquete do Senhor. O número dos que se salvam ou que se perdem não é função de se chegar primeiro ou depois, pois 'há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos' (Lc 13, 29), mas das escolhas que fazemos em nossas vidas no caminho para a Jerusalém Celeste.

sábado, 23 de agosto de 2025

TESOURO DE EXEMPLOS II (31/34)

 

31. MALDITA LÍNGUA!

Havia um homem — diz Santo Afonso — que aparentemente levava uma vida boa, mas sempre se confessava mal. Tendo caído gravemente enfermo, foi visitá-lo o pároco, que o exortou a receber os sacramentos, porque se achava em perigo de vida. O doente, porém, não queria saber de confissão.
➖ Mas por que o senhor não quer confessar-se?
➖ Porque estou condenado - respondeu o doente. Nunca confessei com sinceridade os meus pecados e Deus, por castigo dos meus sacrilégios, agora me retira a força de repará-los.
Dito isto, começou a morder a língua, gritando:
➖ Maldita língua, que te recusaste, quando podias, a confessar todos os pecados.
E entregando-se ao desespero, e arrancando pedaços da língua, expirou. O seu corpo preto como carvão exalava um horrível mau cheiro.

32. POR QUE QUERO SER PADRE?

Ao diretor do periódico francês 'Hóstia' foi endereçada uma cartinha comovente que este publicou no número de janeiro de 1924. A carta dizia: 'Tenho dez anos e quero ser padre; mas há dois meses que estou pregado no leito com a perna esquerda engessada. Isso, porém, não é nada; se Deus quiser, hei de ser padre. O senhor talvez me pergunte por que eu quero ser padre e não engenheiro como papai, ou militar com meu tio. Eis: quero ser padre porque quero trabalhar para a glória de Deus, para salvar almas, e principalmente para poder um dia celebrar a santa missa e ter Nosso Senhor em minhas mãos. Penso que não existe coisa mais bela do que ser padre'.
Que belos sentimentos! Oh! se muitos meninos pensassem como este! Teriam mais respeito pela santa missa... e se fariam padres e salvariam muitas almas.

33. PALAVRAS DE UMA ISRAELITA

Numa paróquia da França, onde não havia nenhum sacerdote, um padre italiano encontrou uma pobre senhora que, com verdadeira amargura, se lamentava do abandono espiritual em que vivia aquela população.
Disse ela: 'Olhe, senhor padre, eu sou israelita; contudo quisera que houvesse aqui um padre católico. Quem ensinará aos nossos filhos a obediência aos pais? Quem recordará a estes homens o dever de serem honestos e bons, se não um sacerdote?'

34. MORRAMOS POR JESUS E MARIA!

No trono austro-húngaro, sentava-se naquele tempo uma mulher. Eram dias dolorosos para a gloriosa monarquia. Falecera Carlos VI e, apesar da grande inteligência e do coração magnânimo de sua filha Maria Teresa, os príncipes vizinhos iam-lhe tomando uma por uma as suas províncias e ameaçavam tomar-lhe também o trono. A infeliz rainha estava ameaçada de deixar em herança a seu filho não o diadema imperial, mas uma coroa de espinhos.

Um dia reúne, em Presburgo, os nobres húngaros que lhe haviam permanecido fiéis. Põe-se em pé diante deles e, erguendo nos braços seu filhinho, dirige-lhes estas palavras:
➖ Abandonada de todos, não tenho outro amparo a não ser a vossa generosidade. Meus amigos, em vossas mãos deponho o filho de vossos reis que de vós espera a salvação!
Ao verem aquela infortunada mãe e aquele tenro menino que se lhes confiava, os húngaros ficam comovidos e, cheios de santo entusiasmo, desembanhiaram as suas espadas e gritaram:
➖ Morramos por nossa rainha Maria Teresa!

Ao grito dos heróis, a Hungria sacode a sua letargia; correm os homens às armas, e um exército de vitória em vitória consegue arrojar para fora do país os usurpadores. Dentro de pouco tempo a paz de Aquisgrana devolvia a herança ao filho da grande rainha.

Nestes tempos calamitosos, em que vivemos, de vida materializada, de costumes pervertidos, de fé tíbia, os usurpadores vão se apoderando das formosas conquistas de Jesus Cristo. Quer nos parecer que, nesta hora trágica da humanidade, Maria Santíssima toma o seu Filhinho nos braços, põe-se em pé e nos clama:
➖ É o vosso Jesus, defendei-o!
Com nossas espadas desembainhadas, juremos-lhe lealdade. Prontos a lutar por sua glória, gritemos como os nobres da Hungria:
➖ Morramos por nosso Rei - Jesus Cristo e por nossa Rainha - a Virgem Maria!

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos' - Volume II, do Pe. Francisco Alves, 1960; com adaptações)

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

O ECUMENISMO SEGUNDO OS SANTOS

1. 'Em nome do Se­nhor Jesus – reunidos vós e o meu espírito, com o poder de nosso Senhor Jesus – seja esse homem entregue a Satanás, para mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor Jesus' (ICor 5,4-5).

2. 'O castigo os atingirá por duplo motivo: porque eles desconheceram a Deus, afeiçoando-se aos ídolos, e porque são culpados, por desprezo à santidade da religião, de ter feito juramentos enganadores' (Sb 14,30).

3. 'Pensai no que há originado todas as heresias: não encontrareis outra fonte que não a soberba' (Santo Agostinho).

4. 'Não te admires dos hereges que citam as Escrituras, pois o diabo também se serve delas, não para ensinar, mas para enganar' (Santo Ambrósio).

5. 'Lançai fora a ímpia e funesta opinião de que, em qualquer religião, é possível chegar ao caminho da salvação eterna' (Pio XI).

6. 'Aqueles que corrompem famílias não herdarão o Reino de Deus. Se, pois, aqueles que fazem isso com respeito à carne sofreram a morte, quanto mais será o caso daquele que corrompe a fé em Deus, pela qual Jesus Cristo foi crucificado, com doutrinas perversas!' (Santo Inácio de Antioquia).

7. 'Não há pecados mortais mais graves do que os dos hereges que negam Cristo depois de o terem conhecido' (São Beda).

8. 'O verdadeiro ecumenismo, a verdadeira caridade com os que estão no erro, é mostrar-lhes a verdade plena, e rezar por eles – e não com eles – para que se convertam à verdadeira fé' (São Pio X).

9. 'Tenham coragem diante de sua fé e suas convicções. São os maus que devem temer diante dos bons, e não os bons diante dos maus' (São João Bosco).

10. 'Se, para salvar uma vida terrena, é louvável usar a força para impedir um homem de cometer suicídio, não nos seria permitido usar a mesma força — a santa coerção — para salvar a Vida (com maiúscula) de muitos que estão estupidamente empenhados em matar as suas almas?' (São José Maria Escrivá).

OS PAPAS DA IGREJA (XXXI)

 



quinta-feira, 21 de agosto de 2025

FRASES DE SENDARIUM (LVIII)

 

'Ó Maria, no Sangue de Jesus e em tua intercessão, 
está toda a minha esperança!' 

(Santo Afonso de Ligório)

Louvar Nossa Senhora é cantar a obra prima de Deus: que nós  possamos amar Jesus com o amor do coração de Maria!

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

SOMOS APENAS A CASA DO HÓSPEDE

A vida interior depende de três condições preliminares: uma correta concepção de Deus; a harmonia psicológica e as circunstâncias do meio. Uma reta concepção da divindade é a condição fundamental de uma vida interior, rica e fecunda. Pois o que faz a força da vida interior não é o isolamento. É o encontro de Deus em nós. Somos apenas a Casa do Hóspede. O isolamento, como tal, poderá ser apenas mau humor, desespero ou misantropia. E nada de mais alongado dessas formas de negação da vida do que a vida interior. 

Esta, ao contrário, é uma intensificação da vida. Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter vida, crer na vida e viver a vida do modo mais intenso possível. Ora, só pode preencher essas três exigências ou mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontra a Deus não apenas à distância ou de modo abstrato, mas dentro de si mesmo. O ateísmo pode provocar uma intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento da vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos. O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente, como uma consequência e um motor. Mas jamais como a habitação da própria vida. 

Crer em Deus é portanto a condição essencial da vida interior. E ter de Deus uma noção que permita essa intimidade com o mistério, esse diálogo interior, que não anula a Deus em nós, nem nos aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que duas concepções correntes da divindade, o deísmo e o panteísmo, são também tão contrárias ao mundo interior como o ateísmo. O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata ou então a uma distância tal que o isola do mundo, tanto exterior como interior. Para o deísmo Deus é uma 'categoria do ideal' , como dizia Renan, ou o 'arquiteto do universo', como dizia Voltaire, ou um Alá inacessível e sem comunicação com o mundo, como quer o fatalismo muçulmano. Essa concepção abstracionista de Deus, como uma peça na geometria do universo, aparta Deus de tal maneira do homem que não há meio de o encontrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O mesmo se dá com o fatalismo maometano, para quem a linha da divindade é como que paralela à linha da humanidade, sem que entre elas existam quaisquer coordenadas. Por mais puro que seja o moteísmo, desde que separa Deus do homem, não permite que a vida divina se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e a abundância da vida interior. 

O mesmo se dá com a concepção oposta, com o panteísmo. Se dissolvemos Deus no universo, o criador nas criaturas, se apenas vemos Deus em toda parte, encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois contrários se encontram. No panteísmo, Deus se perde no universo e não podemos encontrá-lo em nós, como se Ele se tivesse desinteressado da sua própria obra, por culpa das traições do homem. Para que nossa vida interior represente a vida de Deus em nós e o encontro com Ele no fundo de nós mesmos, é preciso que se resguarde simultaneamente a distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos sacramentos e pela graça constantemente animando a natureza contra o deísmo. 

Só assim podemos ter a Deus em nós, sem que seja uma ilusão ou uma palavra vã. Só assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criador da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes morais para que tenhamos uma vida interior intensa. É mister que as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e o Amor, transfiguradas pelos dons do Espírito Santo, venham permitir que encontremos, no fundo de nossas almas, a presença divina. E essa presença é que faz a riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão grande. É porque Deus pode habitar em nós e pela vida interior podemos mais de perto conviver com Ele, que ir a Deus não é sair de nós, e sim, pelo contrário, entrar em nós. 

A vida religiosa só se torna exterior como uma consequência e não como uma causa. Os dois modos de manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado, só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela oração é que nos unimos profundamente a Deus. E a oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a oração do nosso eu em união com a Igreja, Corpo Místico de Cristo, só tem valor quando precedida e acompanhada, simultaneamente, pela oração interior, pela intimidade com Deus no fundo de nossas almas. De outra forma se opera apenas uma mecanização, uma ritualização da prece, que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre com o apostolado. Só há força de irradiação e de contaminação no apostolado, como extensão do Reino de Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado, quando essa irradiação parte de um foco ardente que não pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de modo mais fecundo para a extensão da vida sobrenatural em nós, que é Deus em nosso mundo interior. 

Uma falsa concepção da divindade é, por conseguinte, um elemento de enfraquecimento, corrupção e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de nós, encontremos a fonte de toda a vida, a própria Vida em sua cratera ardente e luminosa. Não há pois, vida interior autêntica sem uma profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição primeira e maior dessa reverência que devemos ter para com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na limpeza com que nos preparamos sempre para receber um hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede em nossa casa íntima. É o próprio dono da casa. E quanto mais nos tornarmos hóspedes do nosso Hóspede, tanto mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.

(Excertos da obra 'Meditação Sobre o Mundo Interior', de Alceu Amoroso Lima)

terça-feira, 19 de agosto de 2025

SOBRE A CONFIANÇA EM DEUS

Desperte, eu lhe digo, levante-se e fique acordado, você que foi vencido pelo sono do pecado; volte à vida finalmente, você que caiu diante da espada mortal de seus inimigos. O apóstolo Paulo está aqui. Ouça-o enquanto ele exige vigorosamente ser ouvido, batendo à sua porta e lhe chamando com palavras claras: 'Acorda do teu sono e levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará!' (Ef 5,14).

Se você ouve Cristo, que restaura a vida, por que se sente inseguro quanto à sua restauração? Ouça as suas próprias palavras: 'Se alguém crer em mim, ainda que morra, viverá' (Jo 11,25) Se a própria Vida, que dá vida, procura ressuscitar você, por que você continua tolerando ficar morto?

Seu coração deve bater com confiança no amor de Deus e não endurecer e se tornar impenitente diante do seu grande crime. Não são os pecadores, mas os ímpios que devem se desesperar; não é a magnitude do crime de alguém, mas o desprezo por Deus que destrói as esperanças de alguém. Se, de fato, o diabo é tão poderoso que é capaz de lançá-lo nas profundezas desse vício, quão mais eficaz é a força de Cristo para restaurá-lo à posição elevada da qual você caiu? 'Aquele que caiu nunca mais se levantará?' (Sl 40,9). 'Se o jumento do teu inimigo cair sob o peso da sua carga' (cf Ex 23,5) é o aguilhão da penitência que o impele e a mão do espírito que o liberta com coragem.

Se a sua carne impura o enganou... se roubou os sete dons do Espírito Santo, se extinguiu não apenas a luz do seu rosto, mas também a do seu espírito, não fique deprimido e não se desespere completamente. Mais uma vez, reúna suas forças, anime-se como um homem, ouse realizar grandes feitos e, ao agir assim, você terá a força, pela misericórdia de Deus, para triunfar sobre seus inimigos.

(São Pedro Damião)

OS PAPAS DA IGREJA (XXX)

 



segunda-feira, 18 de agosto de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXVIII)

 

Exame sobre a Humildade para Consigo Mesmo

128. Ricardo de São Vítor [lib. 2, cap. xxiii, De Epul. inter Hom.] define humildade como o desprezo interior por si mesmo. Examine um pouco se você tem esse sentimento em relação a si mesmo. Quando você tem sonhos de dignidade e honra, e se imagina em meio à grandeza e honras quiméricas, como você se comporta nessas imaginações orgulhosas e vaidosas? Você se alegra e se deleita com elas, desejando habitar nelas cada vez mais? Se amamos a humildade, devemos tratar esses sonhos de ambição mundana e orgulho com desdém e ódio, assim como aqueles que amam a castidade tratam os pensamentos impuros. Devemos orar assim com o rei Davi: 'Não deixe que o pé do orgulho chegue até mim', porque o orgulho primeiro entra na alma através dos pensamentos da mente, e aquele que se acostuma a se deleitar com esses pensamentos já formou o mau hábito do orgulho em seu coração.

129. Você esquece a sua própria insignificância? Você tem alguma autoestima? Se for esse o caso, você é um sedutor, um enganador de si mesmo, porque, como diz São Paulo: Quem se crê algo, 'enganar-se-á a si mesmo' [Gl 6,3]. Você se deleita e se gloria em seu conhecimento, seu poder, suas riquezas ou em algum outro dom natural ou moral? Lembre-se da palavra que Deus disse pelo profeta Jeremias: 'Que o sábio não se glorie em sua sabedoria, que o forte não se glorie em sua força e que o rico não se glorie em suas riquezas' [Jr 1,23]. E novamente como diz São Paulo: 'ão devemos agradar a nós mesmos' [Rm 15,1]. Esse deleite e glória insinuam-se insensivelmente, mas aquele que é humilde percebe-os rapidamente e repele-os como sendo nada mais do que vaidade, que apenas enche o coração de orgulho.

O mesmo se aplica à vida espiritual. Você se considera virtuoso porque às vezes faz um pouco de bem? Faria bem, então, em não se considerar bom, mas em imaginar-se em Jerusalém repudiado por Deus, porque, como disse o profeta, você está 'confiando na sua beleza' [Ez 16,15]. E São Gregório diz sobre pessoas como você: 'A alma confia na sua beleza quando realiza alguma boa ação' [Epístola cxxvi]. O homem orgulhoso se detém mais de bom grado no pouco bem que faz, na pouca devoção que sente, do que no pensamento do mal que cometeu e que comete diariamente. Ele deixa para trás a multidão de seus pecados, para não precisar se envergonhar e se humilhar; e reflete frequentemente sobre certos exercícios minuciosos de piedade cristã, a fim de satisfazer sua auto-complacência, como diz São Gregório: 'É mais fácil para eles verem dentro de si mesmos o que lhes agrada do que o que lhes desagrada' [lib. 22, Mor. c. i]. Talvez você também tenha essa tendência.

130. A humildade nos ensina também a nos considerarmos indignos de qualquer bem que possamos possuir, até mesmo do ar que respiramos, e a nos considerarmos dignos de todos os males e injúrias do mundo. Esses são os pensamentos do homem humilde. Ele sempre mantém diante dos olhos os pecados que cometeu e sua tendência maliciosa de cometê-los novamente. Portanto, ele se considera pior do que os turcos, que não têm a luz da graça, enquanto ele também tem a da fé; pior do que todos os pecadores, que não percebem a gravidade do pecado e que não receberam tanta ajuda da graça quanto ele; pior do que os judeus, 'porque, se o tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória' [1Cor 2,8]; pior até do que os demônios, que pecaram apenas uma vez em pensamento, enquanto ele pecou tantas vezes, mesmo em ação. Mas você já parou para considerar essas coisas seriamente?

131. Você se coloca em situações perigosas, dizendo: 'Não vou cair em pecado', presumindo assim demais da sua própria força? São Gregório diz que não há nada mais distante da humildade do que tal presunção: 'Nada no homem está mais distante da humildade do que confiar na própria virtude' [lib. 22, Mor. c. iii]. Você fica perturbado e agitado ao pensar nas faltas que comete e no seu lento progresso na aquisição da virtude? Isso é orgulho e vem da sua presunção em pensar que você pode fazer grandes coisas com suas próprias forças. Mas é necessário nos humilharmos e, ainda assim, não desanimarmos, mas aprendermos com Santo Agostinho, que diz de si mesmo: 'Quanto mais me falta, mais humilde serei' [in Ps. 38] Serei mais humilde se refletir sobre as virtudes que deveria ter e não tenho.

Você é prudente, não confiando em sua própria ingenuidade nem em suas próprias opiniões, sem se preocupar em pedir conselhos, especialmente em assuntos de grande importância? Isso é um grande pecado contra a humildade, e o Espírito Santo assim o adverte: 'Não confie em sua própria prudência: não seja sábio em sua própria presunção' [Pv 3,5.7]. E São Jerônimo chama de intolerável o orgulho pelo qual damos aos outros a entender que somos tão sábios que não precisamos de seus conselhos: 'O orgulho é insuportável, mas considerar-se um nada precisa de conselho' [cap.1, Isa.].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 17 de agosto de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

À vossa direita se encontra a rainha, 
com veste esplendente de ouro de Ofir' (Sl 44)

Primeira Leitura (Ap 11,19a;12,1-6a.10ab) - Segunda Leitura (1Cor 15,20-27a) -  Evangelho (Lc 1,39-56)

  17/08/2025 - SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DA VIRGEM MARIA

ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA

 'O Todo-Poderoso fez grandes coisas a meu favor'

As glórias de Maria podem ser resumidas na portentosa frase enunciada pelo anjo Gabriel: 'Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus' (Lc 1, 30). Ao receber a boa-nova do anjo, Maria prostrou-se como serva e disse 'sim', e por meio desse sim, como nos ensina São Luís Grignion de Montfort, 'Deus Se fez homem, uma Virgem de tornou Mãe de Deus, as almas dos justos foram livradas do limbo, as ruínas do céu foram reparadas e os tronos vazios foram preenchidos, o pecado foi perdoado, a graça nos foi dada, os doentes foram curados, os mortos ressuscitados, os exilados chamados de volta, a Santíssima Trindade foi aplacada, e os homens obtiveram a vida eterna'.

Esta efusão de graças segue Maria na Visitação, pois ela é reflexo da presença e das graças do Espírito Santo que são levadas à sua prima Isabel e à criança em seu ventre. No instante da purificação de São João Batista, o Precursor, Santa Isabel foi arrebatada por inteira pelo Espírito Santo: 'Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo' (Lc 1,41). Por meio de uma extraordinária revelação interior, Santa Isabel confirma em Maria o repositório infinito das graças de Deus: 'Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu' (Lc 1,43).

E é ainda nesta plenitude de comunhão com o Espírito Santo, que Maria vai proclamar o seu Magnificat: 'A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que o respeitam. Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre' (Lc 1, 46-55).

Mãe da humildade, mãe da obediência, mãe da fé, mãe do amor. Mãe de todas as graças e de todos os privilégios, Maria foi contemplada com o dogma de fé divina e católica da assunção, em corpo e alma, à Glória Celeste. Dentre as tantas glórias e honras a Maria, a Igreja celebra jubilosa neste domingo a Serva do Senhor como Nossa Senhora da Assunção.

sábado, 16 de agosto de 2025

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

O amor basta-se a si mesmo, em si e por sua causa encontra satisfação. É seu mérito, seu próprio prêmio. Além de si mesmo, o amor não exige motivo nem fruto. Seu fruto é o próprio ato de amar. Amo porque amo, amo para amar. Grande coisa é o amor, contanto que vá a seu princípio, volte à sua origem, mergulhe em sua fonte, sempre beba donde corre sem cessar. De todos os movimentos da alma, sentidos e afeições, o amor é o único com que pode a criatura, embora não condignamente, responder ao Criador e, por sua vez, dar-lhe outro tanto. Pois quando Deus ama não quer outra coisa senão ser amado, já que ama para ser amado; porque bem sabe que serão felizes pelo amor aqueles que o amarem.

(São Bernardo)

OS PAPAS DA IGREJA (XXIX)

 


Numeração corrigida de acordo com a listagem oficial do Vaticano (desde XIX até XXVIII)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

GLÓRIAS DE MARIA: ASSUNÇÃO AO CÉU

   

A Assunção de Maria - Palma Vecchio (1512 - 1514)

"Pronunciamos, declaramos e de­finimos ser dogma de revelação divina que a Imaculada Mãe de Deus sempre Virgem Maria, cumprido o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à Glória celeste”.

                            (Papa Pio XII, na Constituição Dogmática  Munificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950)


A solenidade da Assunção da Virgem Maria (celebrada pela Igreja no dia 15 de agosto) existe desde os primórdios do catolicismo e, desde então, tem sido transmitida pela tradição oral e escrita da Igreja. Trata-se de um dos grandes e dos maiores mistérios de Deus, envolto por acontecimentos tão extraordinários que desafiam toda interpretação humana: 

1. Nossa Senhora NÃO PRECISAVA morrer, uma vez que era isenta do pecado original;

2. Nossa senhora QUIS MORRER para se assemelhar em tudo ao seu Filho, pela aceitação de sua condição humana mortal e para mostrar que a morte cristã é apenas uma passagem para a Vida Eterna;  

3. Nossa Senhora NÃO PODIA passar pela podridão natural da carne tendo sido o Sacrário Vivo do próprio Deus;

4. A morte de Nossa Senhora foi breve (é chamada de 'Dormição') e ela foi assunta ao Céu em corpo e alma;

5. Aquela que gerou em si a vida terrena do Filho de Deus foi recebida por Ele na glória eterna;

6. Nossa Senhora foi assunta ao Céu pelo poder de Deus; a ASSUNÇÃO difere assim da ASCENSÃO de Jesus, uma vez que Nosso Senhor subiu ao Céu pelo seu próprio poder.


Louvor a Ti, Filha de Deus Pai,
Louvor a Ti, Mãe do Filho de Deus,
Louvor a Ti, Esposa do Espírito Santo,
Louvor a Ti, Maria, Tabernáculo da Santíssima Trindade!