quarta-feira, 7 de abril de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (II)


Primeira Parte - O PURGATÓRIO, MISTÉRIO DE JUSTIÇA

Capítulo I

O Purgatório no Plano Divino

O Purgatório ocupa um lugar relevante na nossa santa religião: é uma das partes principais da obra de Jesus Cristo e desempenha um papel essencial no plano da salvação humana. Lembremos que a Santa Igreja de Deus, considerada como um todo, é composta por três parcelas distintas: a Igreja Militante, a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente ou do Purgatório. Esta tríplice Igreja constitui o corpo místico de Jesus Cristo, e as almas do Purgatório não são menos membros dela do que os fieis na terra ou os eleitos no Céu. No Evangelho, a Igreja é normalmente chamada de Reino dos Céus; o Purgatório, assim como a Igreja celestial e a terrestre, constitui uma das províncias deste vasto reino.

As três Igrejas irmãs mantêm relações incessantes entre si, uma comunicação contínua que chamamos de Comunhão dos Santos. Essas relações não têm outro objetivo senão conduzir as almas à glória eterna, o termo final para o qual tendem todos os eleitos. As três Igrejas interagem mutuamente para povoar o Céu, a cidade permanente, a gloriosa Jerusalém. Qual é então o trabalho que nós, membros da Igreja Militante, devemos fazer pelas almas do Purgatório? Temos que aliviar os seus sofrimentos. Deus colocou em nossas mãos a chave desta misteriosa prisão: é a oração pelos mortos, é a devoção às almas do Purgatório.

Capítulo II

Oração pelos Mortos - Temor e Confiança

A oração pelos que partiram e os sacrifícios e os sufrágios pelos mortos fazem parte do culto cristão, e a devoção às almas no Purgatório é uma devoção que o Espírito Santo infunde com caridade nos corações dos fieis. É um pensamento sagrado e salutar - dizem as Sagradas Escrituras - orar pelos mortos para que sejam libertados dos seus pecados (II Mc 12, 46).

Para ser perfeita, a devoção às almas do Purgatório deve ser animada por um espírito de temor e um espírito de confiança. Por um lado, a santidade de Deus e e a sua justiça nos inspiram um temor salutar; por outro lado,  a sua infinita misericórdia nos dá uma confiança ilimitada.

Deus é a própria santidade, luz muito maior do que o sol, e sombra alguma de pecado pode perpassar diante de sua face. 'Os teus olhos são puros', diz o profeta, 'e não podes contemplar a iniquidade' (Hb 1, 13). Quando a iniquidade se manifesta nas criaturas, a santidade de Deus exige expiação e, uma vez aplicada com todo o rigor da justiça divina, é terrível. É por esta razão que a Escritura diz também: 'Santo e terrível é o seu nome' (Sl 110, 9), tal como se dissesse: a sua justiça é terrível porque a sua santidade é infinita.

A justiça de Deus é terrível e pune com extremo rigor até as faltas mais comezinhas. A razão é que essas faltas, fagulhas aos nossos olhos, não são de forma alguma assim diante de Deus. O menor pecado o afronta infinitamente e, por causa da santidade infinita que é ofendida, a menor transgressão assume proporções enormes e exige, portanto, uma enorme expiação. Isso explica a terrível severidade das dores da outra vida e nos deve fazer compenetrados de um santo temor de Deus.

Esse temor do Purgatório é um temor salutar; o seu efeito não é apenas nos animar com uma compaixão caritativa para com as pobres almas sofredoras, mas também com um zelo vigilante pelo nosso próprio bem-estar espiritual. Pense no fogo do Purgatório e você se esforçará para evitar o pecado ao máximo; pense no fogo do Purgatório e você praticará a penitência, de modo a satisfazer a Justiça Divina neste mundo e não no próximo.

No entanto, devemos evitar o temor excessivo e não perder a confiança. Não nos esqueçamos da  misericórdia de Deus, que não é menos infinita que a sua justiça: 'porque acima do céu se eleva a vossa misericórdia (Sl 107,5) e  ainda: 'O Senhor é clemente e compassivo, generoso e cheio de bondade (Sl 144,8).  Essa misericórdia inefável deve acalmar as nossas mais vivas apreensões e nos encher de santa confiança, segundo as palavras: in te Domine speravi non confundar in æternum - 'que em vós, Senhor, minha esperança não seja jamais confundida'  (Sl 70,1).

Se formos animados com este duplo sentimento, se a nossa confiança na misericórdia de Deus for igual ao temor que nos inspira a sua justiça, teremos o verdadeiro espírito de devoção às almas do Purgatório. Este duplo sentimento brota naturalmente do dogma do Purgatório bem entendido - um dogma que contém o duplo mistério da justiça e da misericórdia: da justiça que pune e da misericórdia que perdoa. É deste duplo ponto de vista que vamos considerar o Purgatório e ilustrar a sua doutrina.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)