hoje eu acordei sonolento e pouco animado e foi uma pequena vitória pular da cama de um salto só; penso que ter ficado estudando ontem até tarde não tenha sido uma escolha muito adequada. De qualquer forma, não vi meu Anjo da Guarda pela manhã e ele parece estar envolvido em mais uma de suas travessuras para comigo. Chamá-lo, chamei várias vezes, mas ele não deu sinal de presença. Tem hora que eu acho realmente que ele se encontra em algum outro lugar, fazendo outras coisas que não seja cuidar de mim. Mas como brigar com alguém que aparece e desaparece sem maiores explicações?
Assisti pouco à vontade as duas primeiras aulas, porque estava sonolento e o professor não estava também nos seus melhores dias. Tive a convicção de que uma equação que ele demonstrou estava errada ou, pelo menos, admitia outras variantes. Mas nem isso posso afirmar, tal o estado de embotamento que tomou conta de mim. Eu chamei meu Anjo baixinho várias vezes, sem sucesso. Se ele não fizer uma intervenção rápida, vou ter outra vez aquela famosa dor de cabeça de final de tarde. Com esse calor, então, isso é líquido e certo...
Eu vi H. passando pelo corredor na hora do intervalo. Ele me pareceu bem mais triste dos que nas últimas vezes. A doença da mãe o está prostrando por completo e ele parece desabar sem reação. Teria muito gosto em lhe dizer que esta provação é temporária e que a enfermidade dela tem forte cunho psicológico e passará logo e por completo. E que essa provação é teste para ele e não para a sua mãe; mas isso não posso fazer. Deus não tem muito apreço pelas almas tíbias e atua numa alma assim para acalentá-la com graças que ela não buscaria por si mesma. Mas ele continua não respondendo ao patamar da graça, prefere a lamentação e o desconforto humano, pura e simplesmente.
Almocei no restaurante de sempre; não se preocupe, minha alimentação está bem mais balanceada agora e, para meu desgosto e como sacrifício do dia, invoquei o bom Deus e comi...repolho! Quem disse que repolho não pode ser alimento da alma? Não engoli pedaços em lances, mastiguei-o com solicitude e bem devagar. Juro que não vou culpar o repolho pela minha dor de cabeça mais tarde. A. me cumprimentou de longe, sua alma brilha de forma especial e serena; ela será instrumento forte de Deus na vida de muitas pessoas. Quantas graças não serão recebidas por aqueles que a encontrarem nos restaurantes do mundo!
Mesmo com este calor, as aulas à tarde foram boas e bem interessantes. Eu procuro me adaptar ao modo de cada professor, e valorizar o seu trabalho cotidiano e tão belo. Rezei pela alma de N., definitivamente ele não sabe o que pode representar e se sustenta com tão pouco; a medida que vai ser julgado é imensa e tão pesada... L. me disse que ainda que eu lhe dissesse com todas as letras a insensatez dos seus atos, ela duvidava que isso pudesse fazer qualquer diferença. É verdade que há homens que se obstinaram no mal de tal forma que não parecem homens, mas o que é impossível a Deus?
Meu Anjo da Guarda sumiu. Chamei-o agora há pouco várias vezes, invoquei-o em meio a várias orações, incluindo as que ele próprio me ensinou. Nada! Vou dormir cedo e lhe conto amanhã, meu pai, se ele finalmente vai me encontrar no sono dessa noite. Ah, nada também de dor de cabeça, viu? Será que Meu Anjo veio e eu nem vi? Fiz um lanche reforçado e estudei o de sempre. Aquela equação estava errada mesmo, vou conversar com o professor. Tentei ligar para J., sem sucesso, só dá ocupado. Ele parece estar convencido de conseguir a conversão da moça que encontrou no trem para G. Que Nossa Senhora do Pilar lhe ilumine neste propósito.
E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa noite, pai. Com a vossa bênção, R.
('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).
('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).