terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXI)

Capítulo XXI

Diversidade das Dores - Blasio Ressuscitado dos Mortos por São Bernardino - Venerável Francisca de Pamplona e as Penas do Fogo - São Corpreus e o Rei Malaquias 

O célebre Blasio Massei, ressuscitado dos mortos por São Bernardino de Sena, viu que havia uma grande diversidade nas penas do Purgatório. O relato desse milagre é transcrito detalhadamente na Acta Sanctorum. Pouco tempo depois da canonização de São Bernardino de Sena, morreu em Cássia, no reino de Nápoles, uma criança de onze anos, chamada Blasio Massei. Seus pais o inspiraram com a mesma devoção que eles próprios tinham para com este novo santo, e este não tardou em recompensá-los. 

No dia seguinte à sua morte, quando o corpo estava sendo levado para a sepultura, Blasio acordou como de um sono profundo e disse que São Bernardino o restaurou à vida, para relatar as maravilhas que o santo lhe havia mostrado no outro mundo. Podemos compreender facilmente a curiosidade que este evento produziu. Durante um mês inteiro, o jovem Blasio não fez outra coisa senão falar do que viu e responder às perguntas que lhe faziam os visitantes. Ele falava com a simplicidade de uma criança, mas ao mesmo tempo com uma precisão de expressão e um conhecimento das coisas da outra vida muito acima de sua idade.

No momento de sua morte, disse ele, São Bernardino apareceu-lhe e, tomando-o pela mão, lhe disse: 'Não tenha medo, mas preste muita atenção ao que vou lhe mostrar, para que se lembre, e depois seja capaz de relatá-lo'. Assim o santo conduziu o seu jovem protegido sucessivamente para as regiões do Inferno, do Purgatório e do Limbo e, finalmente, permitiu que ele pudesse ver também o Paraíso.

No Inferno, Blasio viu horrores indescritíveis e as diversas torturas pelas quais os orgulhosos, os avarentos, os impuros e outros pecadores são atormentados. Entre eles reconheceu vários que tinha conhecido em vida, e chegou a testemunhar a chegada ali de dois recém-falecidos, Buccerelli e Frascha. Este último foi condenado por ter mantido bens ilícitos em sua posse. O filho de Frascha, atingido por esta revelação como por um raio, e conhecendo bem a verdade destes fatos, apressou-se a fazer a restituição completa das posses e, não contente com este ato de justiça, para não se expor um dia a vir compartilhar a triste sorte do seu pai, distribuiu o resto de sua fortuna aos pobres e abraçou a vida monástica.

Conduzido então ao Purgatório, Blasio viu ali os mais terríveis tormentos, variados de acordo com os pecados dos que eram punidos. Ele reconheceu um grande número de almas, e várias imploraram-lhe para informar os seus pais e parentes sobre a sua condição de sofrimento, indicando inclusive os sufrágios e boas obras de que necessitavam. Quando interrogado sobre o estado de uma alma que partira, ele respondeu sem hesitação e deu os detalhes mais precisos. 'Seu pai' -  disse ele a um de seus visitantes - 'está no Purgatório desde aquele dia e ele cobrou de você que pagasse tal quantia em esmolas, que você se esqueceu de fazê-lo'. 'Seu irmão' - disse ele a outro 'pediu que você mandasse celebrar tantas missas como você havia concordado em fazer mas não cumpriu o seu compromisso; e tantas missas ainda precisam ser feitas nesta intenção'.

Blasio também falava do Paraíso, último lugar para onde fora levado; mas falava quase como São Paulo que, tendo sido arrebatado ao terceiro céu, se com o seu corpo ou sem o seu corpo que ele não reconhecia, ouviu palavras misteriosas que nenhuma língua mortal poderia repetir. O que mais chamou a atenção do menino foi a imensa multidão de anjos que rodeava o trono de Deus e a beleza incomparável da Bem Aventurada Virgem Maria, elevada acima de todos os coros de anjos.

A vida da Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento, religiosa de Pamplona (La Vie par le F. Joachim; cf. Merv., 26), apresenta vários fatos que mostram como as penas do Purgatório são inerentes às faltas a serem expiadas. Esta venerada serva de Deus tinha a comunicação mais íntima com as almas do Purgatório, de modo que estas vinham em grande número e tomavam a sua cela, esperando humildemente cada uma, por sua vez, para serem assistidas pelas suas orações. Frequentemente, para mais facilmente excitar a sua compaixão, elas apareciam ornadas com os instrumentos dos seus pecados, agora tornados instrumentos de sua tortura. Um dia ela viu um religioso rodeado por móveis muito caros, como quadros, poltronas, etc., envoltos em chamas. Ela havia recolhido essas coisas em sua cela, contrariando o voto de pobreza religiosa e, depois de sua morte, tornaram-se o seu tormento.

Um notário apareceu a ela um dia com todas as insígnias de sua profissão. Estando amontoadas ao seu redor, as chamas que saíam de lá causaram-lhe o mais intenso sofrimento. 'Usei esta caneta, esta tinta, este papel' - disse ele - 'para elaborar escrituras ilegais. Também tinha paixão pelo jogo e essas cartas que sou forçado a ter continuamente em minhas mãos constituem agora o meu castigo. Esta bolsa flamejante contém os meus ganhos ilegais e agora tenho de expiá-los'. De tudo isso devemos tirar grande e salutar instrução. As criaturas são dadas ao homem como um meio de servir a Deus; eles devem ser os instrumentos da virtude e das boas obras. Se ele abusar delas e torná-los instrumentos do pecado, é justo que se voltem contra elas e se tornem os instrumentos do seu castigo.

A Vida de São Corpreus, um bispo irlandês, que encontramos nos Bolandistas [Acta Sanctorum, publicada por esta comunidade de jesuítas desde 1643] em 6 de março, nos fornece outro exemplo do mesmo tipo. Um dia, enquanto este santo prelado estava em oração após o Ofício, ele viu aparecer diante dele um espectro horrível com semblante lívido, uma coleira de fogo em volta do pescoço e, sobre os ombros, um manto miserável todo em farrapos. 

'Quem é você?' - perguntou o santo, nem um pouco perturbado. 'Eu sou uma alma da outra vida'. 'E o que o trouxe à triste condição em que o vejo?' “Minhas faltas resultaram estes castigos sobre mim. Apesar da miséria a que agora me vejo reduzido, sou Malaquias, ex-rei da Irlanda. Nessa posição elevada, eu poderia ter feito muito bem e era meu dever fazê-lo. Eu negligenciei isso e, portanto, sou punido'. 'Você não fez penitência por suas faltas?' 'Não fiz penitência suficiente, e isso se deve à fraqueza culposa do meu confessor, a quem submeti aos meus caprichos, oferecendo-lhe um anel de ouro. É por isso que agora uso uma coleira de fogo em volta do pescoço'.  'Eu gostaria de saber' -  continuou o bispo, 'por que você está coberto com esses trapos?' 'É outro castigo. Eu não vesti o nu. Não ajudei os pobres com a caridade, o respeito e a liberalidade que se tornaram minha dignidade de rei e meu título de cristão. É por isso que você me vê vestido como pobre e coberto com estes andrajos'. A biografia acrescenta que São Corpreus, unido na sua comunidade em oração, ao cabo de seis meses obteve a mitigação do sofrimento e, um pouco mais tarde, a libertação total do rei Malaquias. 

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)