quarta-feira, 3 de abril de 2019

SOBRE A MORTE E O SOFRIMENTO DAS CRIANÇAS

Alguns ignorantes costumam objetar a tais argumentos uma objeção caluniosa, concernente à morte das crianças e acerca dos sofrimentos corporais pelos quais nós as vemos frequentemente serem afligidas. Dizem eles: 'Que necessidade tinha essa criança de nascer pois, se antes mesmo de ter realizado qualquer obra meritória, deixa a vida?' E em que categoria será preciso colocar, no momento do julgamento final, aquele pequeno ser cujo lugar não está entre os justos pois não praticou nenhuma boa ação, nem entre os maus, posto que não cometeu pecado algum?

Respondemos a isso: considerando o conjunto do universo e a ordem perfeita que une todas as criaturas através do espaço e tempo, chega-se à conclusão da impossibilidade de homem algum ser criado inutilmente, visto que nenhuma folha de árvore tenha sido criada sem motivo. Entretanto, é por certo supérfluo interrogar sobre os méritos de alguém que nada mereceu. Porquanto não é para temer que não possa haver uma espécie de vida média entre a virtuosa e a pecaminosa. E em referência a um juiz, pode ser que ele tome uma decisão média entre a recompensa e o castigo.

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Reflitamos, agora, sobre o caso dos sofrimentos corporais com os quais as crianças pequenas são atormentadas, as quais, devido à sua idade, estão isentas de qualquer pecado. Na suposição de as almas que vivificam as crianças não terem já começado a existir antes, costumam alguns erguer lamentações maiores, como se tivessem pena, e dizem: 'Que mal fizeram para sofrer assim?' Falam como se pudesse haver algum mérito devido à inocência, antes de alguém poder cometer algum mal.

E no caso de Deus pretender obter alguma coisa de bom para a correção dos adultos, quando os prova pelas dores e morte das crianças, que lhe são queridas, por qual razão não haveria de fazê-lo? Posto que, uma vez tendo passado esses sofrimentos, tudo será como se não tivessem existido, para aqueles a quem aconteceram? E quanto àqueles em cuja intenção tais coisas terão acontecido, ou eles se tornarão melhores, no caso de se corrigirem por meio dessas aflições temporais, e assim terem optado por viver com mais retidão, ou, no caso contrário, não terão desculpa alguma diante da punição no julgamento futuro, pois recusaram, apesar das angústias da vida presente, a voltarem os seus desejos em direção da vida eterna.

Aliás, quem é que pode saber o quanto a essas crianças cujos tormentos visaram abalar a dureza do coração dos mais velhos ou por em prova sua fé, ou ainda manifestar a sua piedade, quem, pois, poderá saber qual será a feliz compensação que Deus reserva a essas crianças, no segredo de seus julgamentos? Porquanto, se elas não praticarem ainda bem algum, foi também sem haver pecado em nada que suportaram tais sofrimentos. Assim, lembremos aquelas crianças postas à morte, quando Herodes procurava o Senhor Jesus Cristo para o matar (Mt 2,6). Não é em vão que a Igreja as apresenta à nossa veneração, reconhecendo-as no número glorioso dos mártires.

(Excertos da obra 'O Livre Arbítrio', de Santo Agostinho)