sábado, 12 de novembro de 2016

QUESTÕES SOBRE AS TENTAÇÕES E O PECADO (II)


Questão 21: O Demônio não sabe que Deus é impecável?

Sabe perfeitamente, tão bem como o mais sábio dos teólogos, não tendo a menor dúvida disso. Entretanto, quando o Demônio tentou a Deus feito homem, queria convencera si mesmo que talvez Deus não era tão bom como ele acreditava. Quem sabe Deus pudesse ser débil, quem sabe não haveria um calcanhar de Aquiles na divindade que ele desconhecia? Se tornasse possível a perda de alguma coisa na Perfeição, esta se desmoronaria. Induzir a Deus pecar parecia impossível, mas ele tinha que tentar.

Se conseguisse corromper a Deus, o demônio não seria mais um pecador porque o o bem e o mal não existiriam então. Bastaria um e somente um pecado venial da Santíssima Trindade para que a linha divisória entre o bem do mal se desfizesse para sempre e, assim, se pudesse afirmar que, na realidade, nunca havia existido. Isto porque é a santidade de Deus que garante esta divisão. Se Deus pecasse, ainda que uma única vez durante toda a eternidade, Deus já não seria Deus. Não haveria mais garantia alguma nesta distinção, nem garantia, nem fundamento. A própria inteligência do Demônio lhe dizia que tal proposição era impossível, mas seu desejo o levou a deformar seus próprios pensamentos; tinha que tentar o impossível.

Questão 22: É possível fazer a distinção entre as tentações que procedem de nós mesmos daquelas dos demônios? 

As tentações que procedem dos demônios não se distinguem em nada daquelas dos nossos próprios pensamentos, já que o demônio tenta nos induzir [as chamadas] espécies inteligíveis. Ou seja, o demônio introduz em nossa inteligência, memória e imaginação, objetos apropriados ao nosso entendimento que em nada se distinguem de nossos pensamentos. Uma espécie inteligível é justamente isso; algo que existe em nosso pensamento quando exercitamos a faculdade de pensar. Pode ser a imagem de uma árvore, resolver uma questão matemática, desenvolver um raciocínio lógico, elaborar uma frase; todas essas coisas são espécies inteligíveis.  Nós as produzimos no interior de nosso espírito racional, mas um anjo pode também produzi-las e nos comunicá-las silenciosamente.

Nós, os seres humanos, comunicamos nossas espécies inteligíveis sobretudo por meio da linguagem, ainda que o possamos fazer também, por exemplo, através da pintura ou da música. Fazemos isso, porém, sempre através de meios externos, ao passo que os anjos podem transmitir estas espécies inteligíveis sem necessidade de meio algum. Por isso, não há maneira de distinguir o que vem do nosso próprio interior, de um anjo ou demônio ou diretamente de Deus. No entanto, as pessoas que passam muitos anos vivendo de forma intensa a sua vida espiritual, em contínuo espírito de oração, nos alertam que existem tentações que surgem com uma intensidade bastante surpreendente sem que se tenha qualquer razão plausível e que, além disso, podem se manifestar com uma persistência estranhíssima.

Para dar um exemplo: é claro que a leitura de um livro contra a fé produz tentações contra a fé mas, se essa tentação aparece de pronto, muito intensa e persistindo por muitas semanas, isso pode ser sinal de que se trata de uma tentação demoníaca. Mas nem mesmo assim podemos estar seguros disso. Como regra geral, poderíamos dizer que as tentações sem causa aparente, muito intensas e persistentes, podem ser suspeitadas como tendo origem demoníaca. Mas, com estas características tão vagas, nunca podemos estar seguros cem por cento. Aos sacerdotes, nos buscam às vezes pessoas de profunda vida de oração e que, não possuindo quaisquer problemas psicológicos, subitamente se defrontam com pensamentos de blasfemar contra Deus, calcar crucifixos ou coisas parecidas.

Se tais perturbações são recorrentes, é razoável pensar que têm origem em distúrbios psíquicos. Uma vez, porém, que se tratem de manifestações repentinas em pessoas mentalmente sadias, há que se ter razões para se suspeitar de que sejam tentações diabólicas. O psiquiatra que tiver lido esta explicação, decerto poderá pensar que se tratam de processos de ação - reação. A estes psiquiatras, queremos dizer que conhecemos perfeitamente esses mecanismos do subconsciente, mas também queremos lhes lembrar que o demônio existe. E isto torna-se mais claro quando essa tentação obsessiva desaparece por completo num belo dia, sem voltar a aparecer. As tentações demoníacas nunca são recorrentes e, por mais veementes que sejam, quando desaparecem não deixam na pessoa afetada nem a mais leve sequela psicológica. 

Questão 23: O que fazer diante da tentação? 

Rejeitá-la prontamente. A tentação nada nos pode fazer se a rejeitarmos; se não dialogarmos com ela, ela torna-se inócua. Porque, desde o momento em que dialogamos com ela, desde o momento em que ponderamos os prós e contras do que ela nos oferece, desde o momento em que levamos em consideração o que ela nos propõe, desde esse mesmo instante, nossa fortaleza é quebrantada e nossa resistência se debilita. Uma vez iniciado o diálogo [com a tentação], necessitaremos de muito mais força de vontade para rechaçá-la. Outra coisa que observamos, nós, os confessores, é que alguns penitentes muito devotos ficam realmente muito agoniados às vezes diante de certos pensamentos que os afligem como tentações para cometer graves pecados.  Estas pessoas muito devotas e religiosas não sabem explicar como têm estes pensamentos e se sentem muito culpadas por isso, culpadas e impotentes.

Tendo entendido o que constitui uma espécie inteligível induzida por um demônio, pode-se compreender que a melhor maneira de enfrentar a tentação é ignorá-la, fazendo-se justamente o oposto do que ela nos propõe a fazer, e rezar. Desesperar-se não resolve nada. Se não nos desesperamos, quem se desespera é o demônio. O demônio pode nos induzir pensamentos, imagens ou lembranças, mas não pode se imiscuir em nossa vontade. Podemos ser tentados, mas, ao final, fazemos apenas o que queremos. Nem mesmo todos os poderes do inferno podem forçar alguém a cometer ainda que seja o menor dos pecados. 

Questão 24: O demônio pode usar alguma estratégia para nos tentar? 

O demônio é um ser inteligente, não é uma força ou uma energia. Portanto, há que se entender que a tentação induz ser um diálogo. Um diálogo entre a pessoa que a resiste e o tentador. Somente se a pessoa resiste em considerar a tentação é que esta passa a se simplesmente uma insistência por parte do demônio, sem resposta de nossa parte. Mas o demônio pode ficar ao nosso lado durante muito tempo e analisar-nos, conhecer-nos e tentar-nos justamente através dos nossos pontos mais fracos. O demônio pode ser extraordinariamente pragmático. Ou seja: sabe quais são as suas possibilidades de sucesso e pode nos tentar exatamente naquilo que sabe que tem alguma possibilidade [de sucesso].

Assim, se percebe que uma pessoa não vai cair em pecado grave, pode tentar que cometa um pecado menor. Se prevê que nem isso vai conseguir, pode tentá-la a cometer pelo menos uma imperfeição, ainda que esta não seja nem pecado. E, neste domínio das imperfeições, tentará aquilo que seja possível. Por exemplo, sabe que tentar um asceta com a gula pode ser pura perda de tempo, mas sabe que pode ter possibilidade de sucesso ao tentá-lo a se exceder no jejum. E se percebe que nisso obtém êxito, irá tentá-lo a exceder-se justamente no modo que mais favoreça a sua soberba ou no modo que lhe seja mais nocivo à saúde, etc.

Outro exemplo: se tem ciência que não tem sentido fazer uma monja abandonar suas orações, pode tentá-la a prolongar o tempo das orações em prejuízo de outros trabalhos que ela teria obrigação de fazer. Em outras ocasiões, o demônio pode perceber que, mais que tentar uma pessoa a pecar, pode ser mais realista fazer com que ela passe a julgar que não precisaria mais seguir os conselhos de seu confessor, avaliado como sendo um homem menos espiritualizado que ela mesma. O demônio não tenta ao acaso, mas analisa e centra seus esforços naquilo que tem possibilidades de sucesso. E normalmente ele obtém algum êxito justamente onde o homem virtuoso acredita que ele possa ter menos chances.

Foram dados exemplos de tentações movidas a homens de oração e ascéticos porque o homem entregue ao vício é um homem sem proteção, sem a proteção das virtudes. Sem estas armaduras, todo o seu espírito apresenta vários flancos desguarnecidos, expostos à ação das tentações. Se Deus não protegesse essas almas, qualquer uma delas seria como palha ao fogo de suas próprias paixões, avivado pela ação dos demônios. Por isso, pedimos, ao rezar o Pai-Nosso, livrar-nos do mal. Isso demonstra que, mesmo dispondo da liberdade para resistir, convém que roguemos ao Criador para que nos proteja. Por isso, o Senhor nos dispôs o Anjo de Guarda para que as inspirações malignas sejam compensadas pelas boas inspirações. Por outro lado, se alguém que é tentado começa a rezar, a tentação desaparece, pois a tentação é incompatível com a oração. A oração estabelece inicialmente uma barreira contra a tentação, pois nossa vontade e nossa inteligência estão concentradas em Deus. Ao insistirmos um pouco mais [na oração], o demônio não pode resistir mais e foge.

(Excertos da obra 'Summa Daemoniaca', do Pe. Jose Antonio Fortea, tradução do autor do blog)