sábado, 6 de setembro de 2014

O RECOLHIMENTO NO TRABALHO


Se o recolhimento é o habitat de Deus desde toda a eternidade, e se nos foi trazido a esta terra pelo Verbo encarnado, que nele viveu, durante 33 anos de Sua vida mortal e que, até aos fins dos tempos, permanecerá no mistério silencioso da eucaristia, é, sem dúvida, que ele é o sinal das almas grandes.

As almas pequenas, mesquinhas, têm medo de sua consciência, têm pavor do seu vazio. Eis por que procuram a companhia de outros para se distraírem, o barulho para se atordoarem. É verdade que o recolhimento é estar também com Deus; mas não quer estar com Deus quem não quer estar com sua consciência. Eis por que o recolhimento é sinal de grandeza verdadeira, a dissipação é sinal das almas vulgares.

Poderíamos, de vários modos, dividir os homens que vivem uma vida digna. Mas, para o fim que, temos em vista, dividi-los-emos em três grupos apenas: os que vivem do trabalho manual, os que se dedicam ao estudo, os que fazem profissão de vida perfeita. Em outras palavras: os trabalhadores, os sábios, os santos.

RECOLHIMENTO NO TRABALHO

Uma das mais belas imagens do trabalho no recolhimento e do recolhimento no trabalho é, de certo, os célebres entalhadores de Deus que vivem em suas poéticas oficinas, lá no Tirol, a criarem essas figuras admiráveis de Cristo crucificado, de madeira, que, depois, serão cobiçadas pelos que conhecem a arte profunda que elas revelam, apesar da simplicidade e quase ingenuidade de seus traços.

Contava-nos, em um retiro inesquecível, um pregador franciscano, a impressão que lhe causara, em uma das suas viagens ao Tirol, a atenção edificante destes artistas anônimos em cima de sua madeira bruta, dentro da qual parece que já divisavam alguma figura linda que eles carinhosamente, pacientemente, queriam dali desentranhar. E passam os forasteiros curiosos e espiam pela janela e ficam a contemplá-los, mas o escultor não se perturba, melhor, nada vê senão o seu trabalho e continua a esculpir.

Lembremo-nos, também, destes copistas da Idade Média, debruçados sobre o pergaminho a fazerem essas letras admiráveis que venceram séculos e que cada uma tem a sua história. Por que o recordamos? Exemplos do recolhimento no trabalho. E com que espírito sobrenatural preparavam os canteiros cristãos das grandes catedrais as pedras que iriam esconder-se lá em baixo, no fundamento, ou, lá em cima, nas torres entre as nuvens! Para eles, o trabalho era oração, era serviço de Deus. Com que elevação o faziam!

Quem já não contemplou, edificado, o exemplo destes trabalhadores dos campos, colonos humildes, em geral homens de fé, que com a enxada na mão, não desviam os olhos da terra, como se a todo momento fossem descobrir um tesouro. E passa o automóvel, passa o trem, e eles não levantam os olhos do seu trabalho árduo. É o trabalho no recolhimento e o recolhimento no trabalho.

No fim do século passado, faleceu na França, em odor de santidade, uma humilde costureira, Marie Eustelle. Um artista, querendo gravar em sua tela o característico de sua santidade, pintou a donzela com a costura na mão a contemplar uma custódia eucarística [gravura acima], brilhante como o sol. Que pensamento lindo: trabalho e oração confundem-se no recolhimento.

Aliás, era a grande preocupação dos padres do deserto: a oração como disposição para o trabalho bem feito, mas também o trabalho como preparação para a oração. Tanto assim que se faltava o vime para novas cestas, desmanchavam as já feitas, para as tornarem a fazer e assim não lhes faltasse o trabalho salutar. Toda a vida conventual, até mesmo nas ordens mais dadas ao estudo de ciência e de oração, se começa pelo trabalho manual ou nas oficinas, ou nos jardins, ou na cozinha, tudo como ótima disposição para a vida espiritual e intelectual.

E uma das facetas mais encantadoras da vida nos conventos é o trabalho humilde dos irmãos leigos ou conversos, que, por toda a vida, fazem o papel de Marta, mas sem deixarem de ser Maria. E quando dois ou três trabalham juntos, como na horta ou em alguma oficina, como é belo ouvir as orações que sobem o céu, em surdina, enquanto os dedos ou braços trabalham a valer. A influência que estes trabalhadores orantes exercem é salutar. Começa-se a amar o trabalho e a ver nele uma força de elevação para Deus.

Um diretor de grande tecelagem dizia-me que nas salas de trabalho onde se faziam irradiações de música, o resultado de serviço era maior em quantidade e em perfeição. Não seria porque a música, comunicando um certo bem-estar, estabelecia um ambiente natural de recolhimento, próprio para o desenvolvimento do trabalho? A oração consegue este resultado de modo muito mais eficiente.

É por isso que os servos de Deus fazem tudo com perfeição, porque se lembram no trabalho de que a terra que lavram ou o pano que tecem serão apresentados ao Pai do céu. E, justamente, onde há mais recolhimento há mais trabalho consciente e elevado e onde há mais trabalho sério há também mais recolhimento.

Olhemos para mais um exemplo. Os cartusianos de São Bruno e os trapistas do Abade Rancé, que transformaram a sua vida em um recolhimento imperturbável, contínuo, e que, com um heroísmo edificante, guardam, há séculos, um silêncio inviolável, são os que dão mais belo exemplo de trabalho. Cada filho de São Bruno, também os sacerdotes, ao lado de sua cela, onde rezam e estudam, tem a sua oficina, onde transmudam o trabalho no ferro, ou na madeira, em poemas que sobem ao céu. Os trapistas todos, sem excetuar o próprio Abade, se entregam, oito horas por dia, ao estudo e ao trabalho, sendo que boa parte ao trabalho do campo, fazendo coisas extraordinárias, como os importantes arrozais dos campos de Tremembé, em São Paulo.

Não há dúvida, a experiência no-lo diz, quando o homem está recolhido, o trabalho rende e é feito com inteligência e elevação, por mais modesto que seja. A reta intenção, tão recomendada pelos mestres de vida espiritual, antes das ações principais, forma o ambiente, onde se desenvolverá o trabalho com proveito.

Pregávamos retiro em uma grande casa do Bom Pastor, quando vimos sem sermos visto um quadro inesquecível: umas trinta e tantas madalenas (são verdadeiras penitentes voluntárias que levam vida rigorosa) sentadas em duas filas de bancos, entregues aos seus trabalhos de mão: bordados, costuras, tricô, desenhos. Todas silenciosas, olhares sobre o trabalho - era a imagem perfeita do trabalho e do recolhimento. Com respeito as contemplamos!

O santo Cura de Ars nos aconselha que só trabalhemos naquilo que pudermos oferecer a Deus Nosso Senhor; ora, isso é aconselhar a perfeição do trabalho, que se alcança pela concentração no que se está fazendo. O recolhimento, portanto, é a força espiritual para o trabalho manual. Por ele, o homem dá às suas atividades uma nobreza que lembra, na sua humildade embora, a nobreza sem ostentação da oficina de Nazaré.

(Excertos da obra 'Recolhimento', por Dom Henrique Golland Trindad, 1945)