sábado, 21 de setembro de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (X)

Pois é, tinha virado mania. Chegar na terrinha, apear na Rodoviária e rumar, de mala e cuia, praquele mundão de história e passado. História é passado. Tem que pisar no chão mordido de tanta história pra saber que história é coisa viva, uma coisa que fica entalada na garganta e que não tem mais fim. Aprender e reaprender num crescendo só; vivenciar outras épocas e culturas. Morder a essência da vida de tanta gente vivida no reviver essencial da vida repetida; por isso, era tão importante pisar, repisar e repisar mil vezes estas ruelas e ladeiras.

A mochila era pro essencial, o dinheiro era pro gasto. Ele vinha sempre assim: mochilento, meio Chaplin, meio dândi. Vinha como um personagem de ficção, vinha como uma figura de priscas eras, de repente tornada à vida nas ruelas e becos dessa Ouro Preto eterna, singular, mágica, extemporânea... Era professor de História, mais que isto, cultor e escultor da História viva.

Vinha quase todo mês, sempre do mesmo jeito, nunca com o mesmo olhar. Olhar era pouco, ele vinha captar alguma coisa que fugia aos homens mortais de todas as cidades comuns e que viviam cabisbaixos sob a linha do tempo. No meio da Praça Tiradentes, ele não era apenas um homem sob o sol. Ele abria os braços e sentia no rosto a brisa de tempos idos, as memórias revoltas de Marílias e de Dirceus e dos anônimos ausentes dos livros, mas irmanados nos espíritos viandantes que somente ele ouvia... Aqui, ele desfrutava dessa estranha e única sensação de viver além do tempo, muito mais que apenas um número incógnito na imensa babel mundana. Ouro Preto era eterna.

Comeu uma porcaria qualquer num boteco da praça e iniciou, mais uma vez, sua viagem ao passado. De repente, os letreiros, o trânsito caótico, a música dos bares, o leva e traz das pessoas, a vida profana, tudo se esvaiu de vez. Como num passe de mágica, só ficaram os sobrados, as ruelas, o museu, o silêncio das horas passadas e os personagens da história... Ele os conhecia tão bem! Cada donzela, cada senhor do comércio, os homens simples das mulas de carga, as vendedoras de doces, as crianças... Era o mesmo belo filme a ser revisto a cada passo, a cada volta...

Pois é ... mas, de repente, desfez-se o foco, a rua viva, a poeira do tempo, a re-história... e veio o que ele aventou ser o limbo. Não podia crer no que os seus olhos não mais viam! Olhou em volta assustado e não percebeu mais vivalma. A praça, a Rua Direita, ninguém. Nem mortos, nem vivos, nem personagens, nem simples mortais, nem albergues, nem bares. Ninguém. Os carros sumiram, as pessoas se foram e só restou o nada: nenhum som, nenhum grito. Ele, apenas ele, no meio da névoa espessa como breu mas esbranquiçada como as miragens dos fantasmas.

A morte seria isso? De repente, o nada no meio de tudo? Como uma lâmpada que se apaga de repente, levando a luz, a vida, a forma das coisas? Mas, não podia ser, não podia ser... A morte era algo tão irreal, tão longínquo, tão... tão despropositado! Ele era um professor, um cultor, um artífice da História e ali, em Ouro Preto eterna, construía a cada vinda a sua passagem para a o futuro... A morte não, a morte tem mesmo um tempo de eternidade e não tem vindas e retornos. A morte é apenas o fim. Fechou e abriu os olhos muitas vezes, mas o foco da vida urbana e passageira refletia-se apenas na memória.

De repente, ele a viu: ele parado na imensidão do mundo que se tornara a Rua Direita e ela subindo em sua direção. No meio da rua. Cheia de vestidos e chapéus, cheia de história. Parecia subir a rua íngreme sem esforço algum. Parecia não... os pés pairavam acima do chão! Vulto sem rosto e sem forma, mãos distendidas, algo como um perfume distante... 

Teve a certeza que gritou e a convicção ainda maior de que não ouvira o próprio grito. Quis correr mas seus pés pesavam como chumbo. O mais que pôde foi fechar os olhos com força e querer acordar de vez daquele pesadelo. Passou um instante... passou um minuto e mais outro... até que se deu conta de que o tempo tinha voltado a ser o tempo dos homens. Abriu os olhos e ouviu o berro do motorista do fusca 'Quer morrer, maluco?'. Meio apalermado, saiu do meio da rua e sentou-se no meio-fio do passeio, entre buzinas, risos e algazarra da vida profana... Não ia dizer nada, é claro, seria motivo de chacota na certa, iriam desconfiar de drogas na mochila e coisas assim. 

Teria sido uma perda momentânea de consciência, um sonho, um aviso? Ele teria visto o anjo da morte? Seria mesmo um anjo? Como e por que passara por uma experiência tão estranha? Qual o sentido daquilo tudo? Ficou sentado ali no meio-fio um tempão, vendo o povo passar, olhando, aturdido e pesaroso sobre a estranha aparição, anestesiado e consciente da sua própria história, refazendo pesos e medidas do viver por viver; definitivamente, um homem não tão comum sob o sol.