sábado, 17 de agosto de 2013

LÁGRIMAS DAS ALMAS

Em função das contestações impostas pela Reforma, o Concílio de Trento ratificou formalmente a existência do Purgatório como dogma de fé por meio de um decreto promulgado em 1580. A partir de então, teve início na Igreja uma intensa propagação pelas práticas de oração destinadas ao sufrágio das almas do Purgatório. Uma destas devoções, de uso bastante generalizado, eram os folhetos volantes, impressos e afixados às paredes das igrejas, para devoção pública e divulgação de jaculatórias, orações e indulgências pelas almas do Purgatório. 

O exemplar abaixo é um folheto do século XVIII, de 25 cm x 35cm, impresso em Coimbra em 1740, na oficina de Luis Seco Ferreyra. Com o título: 'Lágrimas das Almas', apresenta uma imagem do Purgatório e a transcrição latina do Livro de Jó. Seguem-se o assunto do folheto 'alegre e bem divertida Irmandade, erigida e novamente levantada' e o texto propriamente dito, com os objetivos e proposições da citada irmandade.


É interessante destacar as duas proposições constantes da introdução do texto. Na primeira, fala-se em transladar as almas do Purgatório para o Céu, 'que não custa mais do que bolir com os beiços'.  A segunda refere-se à dupla vantagem àqueles que praticarem estas devoções: prémio no Tribunal Divino e intercessores no Paraíso para as súplicas temporaes e espirituaes. E esta segunda proposição é complementada pela seguinte informação: 'como consta de hum pequeno Livrinho de pouco custo com o titulo Grito das Almas, que faz compungir o mais duro coração, ainda que seja de bronze'. 

Esse 'pequeno livrinho' refere-se à obra 'Gritos das Almas no Purgatório e os Meios para os Aplacar' (publicado em 1689) do sacerdote e teólogo espanhol Jose Boneta y Laplana (1638 - 1714). A tradução portuguesa do livro foi feita pelo Pe. Manuel de Coimbra (primeira edição em 1702). O excerto abaixo constitui uma tradução adaptada pelo autor do blog relativo às penas que levam ao Purgatório, no caso a profanação do silêncio nas igrejas católicas:

EXCERTO: A PROFANAÇÃO DO SILÊNCIO NAS IGREJAS 

'Uma vez conhecidos os meios devidos para interceder pelas almas do Purgatório, é preciso cuidar agora das culpas que conduzem a ele. E falarei somente de dois deles, por serem os que mais se cometem nessa vida e os que mais se lamentam naquele lugar. 

A primeira é a irreverência nas Igrejas: há que se admirar que um santo bispo como São Severino tenha ficado retido por um ano no Purgatório por ouvir na Igreja as respostas que lhe traziam os que o serviam; mais digno de assombro ainda é o testemunho de uma alma que aparecia frequentemente a uma Serva de Deus e que, ao ser indagada sobre alguma coisa dentro da Igreja, a alma lhe respondeu: 'Não se pode falar na Igreja, depois vos tornarei a ver, e então vos direi'. Sobre isso, o Pe. Joseph Pavía escreve (pag. 61): 'Confesso que me confundiu esta noticia, considerando que quem falava era uma alma e por ordem de Deus, sobre algo que havia de ser bom e santo e da forma como se falava, não por meio de vozes que soassem como as nossas, mas por locução interna, linguagem velada do coração, e ainda assim, a alma se absteve de responder pela reverência devida ao templo'. 

Veja-se que eco farão na outra vida as desentoadas vozes e inquietações com que os cristãos se movem na Igreja. Se um bispo e santo, só por dar-se ouvir nela esteve um ano ardendo no Purgatório; que tempos não esperam ou teme estar aqueles que não só falam, mas falam alto ou que não só falam, mas se movem e escandalizam? Até quando se pode chegar a temeridade humana e a paciência divina?

Dois infiéis, conta o Padre Almenara, vieram à Espanha com o propósito de explorar nossa Lei e ver se lhes agradava admiti-la. Entraram em uma Igreja, viram o que faziam os cristãos dentro dela, falavam uns e riam outros, e todos estavam divertidos que retornaram à sua seita, dizendo: 'Que fiéis são estes que, com tal desatenção, assistem na casa de seu Deus? Que Deus é este, que se padece ao ver os que o adoram virem à sua própria casa  fazer-lhe pouco caso e diante dele? Isto é sinal de que nem nele há justiça, nem neles fé; vamo-nos daqui, e tornemos aos nossos cultos, onde Deus é mais venerado que o deles'. 

A quem não atemorizam as grandes consequências deste abuso? Para sua correção, não basta apenas não só ferir a Deus, mas também a sua fé, afrontando-a diante de estranhos. E ainda que a Espanha se jacte de ser a mais fiel dentre as nações, é nisto a mais delinquente, causa sem dúvida de seus poucos progressos, e de suas muitas ruínas. 

Contudo, há quem não se atreva a parar na rua e falar com uma mulher estranha, por temer que o vejam, e não se perturba em falar em uma Igreja, sem temer a Deus que o está vendo. Oh cegueira sacrílega! Não se lê, nem se sabe, que a mais perdida mulher do mundo tenha-se atrevido a cometer adultério à vista e em presença de seu esposo; e a alma de um cristão atreve-se a ofender ao seu Esposo Cristo na Igreja à sua vista: Fecerunt (queixa-se por Zacarias). Oh queira sua Divina Majestade dar-nos luz, para que avivemos a fé de sua presença na Igreja, e nela estejamos como no Céu; pois é de fé, que não tem o Céu, nem mais Cristo, nem mais de Cristo, o que mais se deve ter em qualquer templo com a Presença do Sacrário'. 

(Excertos da obra Gritos del Purgatorio y Medios para Acallarlos, Pe. Jose Boneta y Laplana , Saragoça, 1689; Cap.VII, p.214 - 216)