domingo, 30 de junho de 2019

AS COLUNAS DA IGREJA

Páginas do Evangelho - Solenidade de São Pedro e São Paulo

Neste domingo, a liturgia católica celebra a Solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, primícias da fé, fundamentos da Igreja. De toda a fundamentação bíblica do primado de Pedro, é em Mt 16, 18-19 que aflora, mais cristalina do que nunca, a água viva que brota e transborda das Palavras Divinas as primícias do papado e da Igreja, nascidos juntos com São Pedro: 'Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la' (Mt 16, 18). Esta será a Igreja Militante, a Igreja Temporal, A Igreja da terra, obra temporária a caminho da Igreja Eterna do Céu. Mas ligada a Pedro e aos sucessores de Pedro, sumos pontífices herdeiros da glória, poder e realeza de Cristo.

(Cristo entrega as chaves a São Pedro - Basílica de Paray-le-Monial, França)

E Jesus vai declarar, em seguida e sem condicionantes, o poder universal e sobrenatural da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana: 'Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus' (Mt 16, 19). Ligado ou desligado. Poder absoluto, domínio universal, primado da verdade, Cátedra de Pedro. Na terra árida de algum ermo qualquer da 'Cesareia de Felipe', erigiu-se naquele dia, pela Vontade Divina, nas sementeiras da humanidade pecadora, a Santa Igreja, a Videira Eterna.

Com São Paulo, a Igreja que nasce, nasce com um gigante do apostolado e se afirma como escola de salvação universal. Eis aí a síntese do espírito cristão levado à plenitude da graça: Paulo se fez 'outro Cristo' em Roma, na Grécia, entre os gentios do mundo. No apostolado cristão de São Paulo, está o apostolado cristão de todos os tempos; a síntese da cristandade nasceu, cresceu e se moldou nos acordes pautados em suas epístolas singulares proferidas aos Tessalonicenses, em Éfeso ou em Corinto. Síntese de fé, que será expressa pelas próprias palavras de São Paulo: 'Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé' (2Tm 4,7).

(São Paulo Apóstolo - Basílica de Alba, Itália)

São Pedro foi o patriarca dos bispos de Roma, São Paulo foi o patriarca do apostolado cristão. Homens de fé e coragem extremadas, foram as colunas da Igreja. São Pedro morreu na cruz, São Paulo morreu por decapitação pela espada. Mártires, percorreram ambos os mesmos passos da Paixão do Senhor. E se ergueram juntos na Glória de Deus pela Ressurreição de Cristo.

sábado, 29 de junho de 2019

29 DE JUNHO - FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

FUNDAMENTOS DA IGREJA

São Pedro e São Paulo - Jusepe de Ribera (1591 - 1652)

"Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16).

“Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (II Tm 4,7).

Excertos da Homilia do Papa João Paulo II, na Solenidade de São Pedro e São Paulo, em 29/06/2000


Jesus dirige aos discípulos esta pergunta acerca da sua identidade, enquanto se encontra com eles na Alta Galileia. Muitas vezes acontecera que foram eles a interrogar Jesus; agora é Ele quem os interpela. A sua pergunta é específica e espera uma resposta. Simão Pedro toma a palavra em nome de todos:  "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16). A resposta é extraordinariamente lúcida. Nela se reflete de modo perfeito a fé da Igreja. Nela nos refletimos também nós. De modo particular, reflete-se nas palavras de Pedro o Bispo de Roma, por vontade divina, seu indigno sucessor.

2. "Tu és o Cristo!". À confissão de Pedro, Jesus replica:  "És feliz, Simão, filho  de  Jonas,  porque  não  foram  a carne nem o sangue quem to revelou, mas  o  Meu  Pai  que  está  nos  céus" (Mt 16, 17).

És feliz, Pedro! Feliz, porque esta verdade, que é central na fé da Igreja, não podia emergir na tua consciência de homem, senão por obra de Deus. "Ninguém, disse Jesus, conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11, 27). Reflitamos sobre esta página evangélica particularmente densa:  o Verbo encarnado revelara o Pai aos seus discípulos; agora é o momento em que o próprio Pai lhes revela o seu Filho unigênito. Pedro acolhe a iluminação interior e proclama com coragem:  "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo"!

Estas palavras nos lábios de Pedro provêm do profundo do mistério de Deus. Revelam a verdade íntima, a própria vida de Deus. E Pedro, sob a ação do Espírito divino, torna-se testemunha e confessor desta soberana verdade. A sua profissão de fé constitui assim a sólida base da fé da Igreja:  "Sobre ti edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18). Sobre a fé e a fidelidade de Pedro está edificada a Igreja de Cristo.

3. "O Senhor assistiu-me e deu-me forças a fim de que a palavra fosse anunciada por mim e os gentios a ouvissem" (2 Tm 4, 17). São palavras de Paulo ao fiel discípulo Timóteo:  escutamo-las na Segunda Leitura. Elas dão testemunho da obra nele realizada pelo Senhor, que o tinha escolhido como ministro do Evangelho, "alcançando-o" na via de Damasco (cf. Fl 3, 12). Envolvido numa luz fulgurante, o Senhor se lhe havia apresentado, dizendo:  "Saulo, Saulo, por que Me persegues?" (Act 9, 4), enquanto uma força misteriosa o lançava por terra (cf. ibid., v. 5).

"Quem és Tu, Senhor?", perguntara Saulo. "Eu sou Jesus, a quem tu persegues!" (ibid.). Foi esta a resposta de Cristo. Saulo perseguia os seguidores de Jesus e Jesus fez-lhe tomar consciência de que era Ele mesmo a ser perseguido neles. Ele, Jesus de Nazaré, o Crucificado, que os cristãos afirmavam ter ressuscitado. De Damasco, Paulo iniciará o seu itinerário apostólico, que o levará a defender o Evangelho em tantas partes do mundo então conhecido. O seu impulso missionário contribuirá assim para a realização do mandato de Cristo aos Apóstolos:  "Ide, pois, ensinai todas as nações..." (Mt 28, 19).

4. Caríssimos Irmãos no Episcopado vindos para receber o Pálio, a vossa presença põe em eloquente ressalto a dimensão universal da Igreja, que derivou do mandato do Senhor:  "Ide... ensinai todas as nações" (Mt 28, 19). Todas as vezes que vestirdes estes Pálios, recordai, Irmãos caríssimos que, como Pastores, somos chamados a salvaguardar a pureza do Evangelho e a unidade da Igreja de Cristo, fundada sobre a "rocha" da fé de Pedro. A isto nos chama o Senhor; esta é a nossa irrenunciável missão de guias previdentes do rebanho que o Senhor nos confiou.

5. A plena unidade da Igreja! Sinto ressoar em mim a recomendação de Cristo. Deus nos conceda chegarmos quanto antes à plena unidade de todos os crentes em Cristo. Obtenhamos este dom dos Apóstolos Pedro e Paulo, que a Igreja de Roma recorda neste dia, no qual se faz memória do seu martírio e, por isso, do seu nascimento para a vida em Deus. Por causa do Evangelho, eles aceitaram sofrer e morrer e se tornaram partícipes da ressurreição do Senhor. A sua fé, confirmada pelo martírio, é a mesma fé de Maria, a Mãe dos crentes, dos Apóstolos,  dos Santos  e Santas  de  todos  os séculos.

Hoje a Igreja proclama de novo a sua fé. É a nossa fé, a imutável fé da Igreja em Jesus, único Salvador do mundo; em Cristo, o Filho de Deus vivo, morto e ressuscitado por nós e para a humanidade inteira.


São Pedro e São Paulo, rogai por nós!

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (X)


Na décima e última parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira conclui o seu sermão, com a seguinte recomendação final: a pregação que dá fruto à Santa Palavra de Deus é aquela que descontenta e traz inquietação aos ouvintes e não aquela que os tornam confortáveis e passivos às palavras do pregador e do sermão.

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem e o que já tenho experimentado que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes e não gostam de ouvir. Ó boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar e, por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais é mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: venit diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! [vem o demônio e lhes tira a palavra do coração! (Lc 8,12)]. 

Pois por que não comeu o diabo o trigo que caiu entre os espinhos ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho, conculcatum est ab hominibus - pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a que o diabo mais teme. De outros conceitos, de outros pensamentos, de outras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que parece comum: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trivial: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trilhada: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que nos põe no caminho e na via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do mundo e, por isso mesmo, essa é a que deviam pregar os pregadores e a que deviam buscar os ouvintes. 

Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam [por meio da boa e da má fama (II Cor 6,8)], dizia São Paulo: o pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois gostem ou não gostem os ouvintes! Ó que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum [são aqueles que com alegria recebem a palavra]. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)] conclui Cristo. 

De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme; quando cada palavra do pregador é um torcicolo para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem conhecer parte de si, então esta é a preparação que convém e então se pode esperar que dê fruto: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)].

Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se, entre alguns doutores da universidade, qual dos dois fosse maior pregador e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: 'entre dois sujeitos tão grandes, não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim'.

Com isto concluo. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saísseis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, que se descontentem embora de nós. 

Si hominibus placerem, Christus servus non essem [se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo (Gl 1,10)], dizia o maior de todos os pregadores, São Paulo: se eu contentasse os homens, não seria servo de Deus. Ó contentemos a Deus e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus [fomos entregues em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens (cf I Cor 4,9)]. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: não me disseram isso. E o pregador? Vae mihi, quia tacui [ai de mim, estou perdido (Is 6,5)]: ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que se tem ainda na terra quem se põe da sua parte e saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: et fecit fructum centuplum [e deu fruto cem por um].

(Sermão da Sexagésima - Parte X, Pe. Antônio Vieira)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

O ateu moderno não descrê por causa do seu intelecto, mas por causa da sua vontade. Não é o conhecimento que o torna um ateu, mas a perversidade. A negação de Deus brota de um desejo do homem de não ter um Deus – da sua vontade de que não haja justiça por trás do universo, de modo que as suas injustiças não receiem retribuição; do seu desejo de que não haja lei, de modo que não possa ser julgado por ela; do seu querer que não haja bondade absoluta, para que ele possa continuar a pecar com impunidade. É por isso que o ateu moderno se mostra sempre encolerizado quando ouve dizer alguma coisa a respeito de Deus e da religião. Seria incapaz de tal ressentimento se Deus fosse apenas um mito. O seu sentimento para com Deus é o mesmo que um homem mau tem para com alguém a que ele fez um mal. Desejaria que estivesse morto de modo que nada pudesse fazer para vingar o mal. O que atraiçoa a amizade sabe que o seu amigo existe mas deseja que ele não existisse. O ateu pós-cristão sabe que Deus existe mas deseja que Ele não existisse.

(Mons. Fulton Sheen)

quinta-feira, 27 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (IX)


Na nona parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira define finalmente a causa primária do pouco fruto de tantas pregações ineficazes: o pregador se fia em pregar as suas próprias palavras em desfavor de pregar a Santa Palavra de Deus.

IX

As palavras que tomei por tema o dizem: semen est Verbum Dei [a semente é a Palavra de Deus]. Sabeis, cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são as palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus - como dizia - é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas, se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, porque muito se espantem que não tenham a eficácia e os efeitos da Palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: 'quem semeia ventos, colhe tempestades' (Os 8,7). Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade e se não se prega a Palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de padecer tormenta em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: 'padre, os pregadores de hoje não pregam o Evangelho, não pregam as Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?' Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a Palavra de Deus: qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere [quem detém a minha palavra, professe minha palavra na verdade (Jr 23, 26)], disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do demônio. 

Tentou o demônio a Cristo que das pedras fizesse pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei [não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Mt 4,4)]. Esta sentença foi tirada do capítulo VIII do Deuteronômio (Dt 8,3). Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo e, alegando o exposto no Salmo 90, diz-lhe desta maneira: mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: 'deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal'. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. 

Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, mas tomadas em sentido alheio, são armas do diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa; tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o diabo derrubar a Cristo e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito porque é o lugar mais alto dele. O diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja e que, em muitas partes, tem derrubado nela senão a Cristo, pelo menos a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis, que tantas vezes levantais ou esses empreendimentos ao vosso parecer agudos que proferis, achaste-os alguma vez nos Profetas do Velho Testamento ou nos Apóstolos e Evangelistas do Novo Testamento ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que entoam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que entoam. 

Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, porque nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que as palavras de Deus sejam ditas pelo que nós queremos dizer para que não possamos dizer o que elas dizem! E ainda constatar a aprovação do auditório a estas coisas quando se devia dar com a cabeça pelas paredes só de as ouvir! Verdadeiramente não sei do que mais me espanta: se dos nossos conceitos ou se dos vossos aplausos... 'Ó como bem argumentou o pregador!' Assim é; mas o que argumentou? Um falso testemunho do texto, outro falso testemunho do santo, outro do entendimento e do sentido de ambos. Então espera-se que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista São Mateus que, por fim, vieram duas testemunhas falsas: novissime venerunt duo falsi testes [por fim, apresentaram-se duas falsas testemunhas (Mt 26, 60)]. Estas testemunhas disseram que ouviram Cristo dizer que, se os judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista São João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias e foi isto mesmo que disseram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista de testemunhas falsas: duo falsi testes [duas testemunhas falsas]? O mesmo São João deu a explicação: loquebatur de templo corporis sui [referia-se ao templo do seu corpo (Jo 2,21)].

Quando Cristo disse, que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas se referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras fossem verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em um sentido e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas aquilo que são apenas minhas imaginações, as quais não quero excluir deste número [apenas imaginações]! Porque desde logo há que se esperar que as nossas imaginações, as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós e miseráveis os nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt [pois haverá tempo em que (os homens) não suportarão a sã doutrina (2Tm 4,3)]: 'virá tempo', diz São Paulo, 'em que os homens não suportarão a sã doutrina'. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus [levados pelos pruridos dos sentidos, buscarão mestres para ouvir apenas o que desejam (2Tm 4,3)]. Mas, para seu apetite, terão grande número de pregadores feitos de montão e sem escolha, os quais não farão mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: 'fecharão os ouvidos à verdade e abri-los-ão às fábulas'. 

Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre aquelas do tempo presente era ter-se acabado as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio do que nas pregações de um orador cristão e, muitas vezes, mais que cristão, religioso!

Pouco disse São Paulo em lhes chamar comédia porque muitos sermões não são comédia, mas farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este [o sermão] se rompe, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajes e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. 

E nós, o que é que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajes, uma voz muito afetada e muito polida e logo começar com muito desgarro, para quê? Para motivar desvelos, para creditar empenhos, para requintar finezas, para lisonjear precipícios, para brilhar auroras, para derreter cristais, para desmaiar jasmins, para toucar primaveras e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa, a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia, o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão não é comédia sequer, como faremos bem a figura? Não servirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava São Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de ser seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja; e eu, que tenho este mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina já que não me falta o seu espírito?

(Sermão da Sexagésima - Parte IX, Pe. Antônio Vieira)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

26 DE JUNHO - SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ


São Josemaria Escrivá de Balaguer nasceu em 09 de janeiro de 1902 em Barbastro, Espanha. Em 02 de outubro de 1928, durante um retiro espiritual em Madrid, concebeu e fundou o OPUS DEI, atualmente prelazia pessoal da Igreja Católica. A missão específica do Opus Dei é promover, entre homens e mulheres de todo o âmbito da sociedade, um compromisso pessoal de seguir a Cristo, de amor a Deus e ao próximo e de procura da santidade na vida cotidiana. Faleceu em Roma em 26 de junho de 1975. Foi beatificado em 17 de maio de 1992 e canonizado, pelo Papa João Paulo II na Praça de São Pedro, em 06 de outubro de 2002. Sua obra mais conhecida é Caminho, escrita como orientações espirituais em diferentes parágrafos. Outras obras do autor são ForjaSulco e É Cristo que Passa.

A CRUZ NÃO É UM CONSOLO FÁCIL

'A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de fáceis consolações. Começa logo por ser uma doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana. Não vos posso esconder - e com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a Cruz, está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Noutras ocasiões, senti crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal. E soube o que era a mágoa de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.

Quando vos falo de dor, não vos falo apenas de teorias. Nem me limito a recolher uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que tendes é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda agora, Cristo continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e da qual Ele é Cabeça, Primogênito e Redentor'.
                                                                                                                      (É Cristo que Passa)

terça-feira, 25 de junho de 2019

ORAÇÃO DAS DOZE ESPERANÇAS EM MARIA


1. Ó Doce Virgem Maria, colocarei toda a minha esperança em vós e não serei confundido. 

2. Ó Doce Virgem Maria, creio tão firmemente que, do alto do Céu, velais dia e noite por mim e por todos os que esperam em vós, que não serei mais refém e prisioneiro de inquietação alguma;

3. Ó Doce Virgem Maria, habitarei na paz do vosso coração e não pensarei senão em vos amar e obedecer.

4. Ó Doce Virgem Maria, esperarei somente em Vós, depois de Deus, e todo fundamento de minha esperança será sempre minha confiança em vossa bondade maternal.

5. Ó Doce Virgem Maria, conservarei minha confiança em vós até o meu último suspiro e quero morrer repetindo mil vezes vosso nome, fazendo repousar em vosso coração toda a minha esperança.

6. Ó Doce Virgem Maria, vos invocarei sempre porque sempre me consolareis.
 
7. Ó Doce Virgem Maria, vos agradecerei sempre porque sempre me confortareis.
 
8. Ó Doce Virgem Maria, vos servirei sempre porque sempre me ajudareis.
 
9. Ó Doce Virgem Maria, vos amarei sempre porque sempre me amareis.

10. Ó Doce Virgem Maria, sempre hei de ter tudo de vós porque sempre o vosso amor será maior que a minha esperança.

11. Ó Doce Virgem Maria, por vós espero e aguardo o único bem que desejo, que é a união a Jesus no tempo e na eternidade. 

12. Ó Doce Virgem Maria, em vós confio e, após me terdes ensinado a compartilhar as humilhações e sofrimentos de vosso Divino Filho, creio firmemente que me introduzireis em sua glória para o louvar e bendizer, junto a Vós, pelos séculos dos séculos.

(São Bernardo de Claraval, texto adaptado)