quarta-feira, 26 de setembro de 2018

UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO APOCALIPSE

É perfeitamente legítimo e salutar ao cristão supor que o Apocalipse não constitui um enigma insolúvel criado por Deus para os homens. Pelo contrário, embora seja verdade que o seu pleno entendimento somente será possível após a sua realização completa, o seu significado geral (e mesmo algumas passagens específicas) podem ser inferidas e vislumbradas pelo esforço pessoal e pela graça de Deus manifestada a quem se detiver na superação das grandes dificuldades de se interpretar adequadamente tais acontecimentos proféticos. A reflexão abaixo é de autoria do padre espanhol José Maria Mestre, e foi publicada originalmente em português no site Permanência.

1. Parece-me indiscutível que o Apocalipse é um escrito profético e não simplesmente histórico, como pretenderam muitos autores em todos os tempos (como uma descrição simbólica da queda da Sinagoga e do Paganismo, ou das perseguições romanas contra os cristãos, por exemplo). Com efeito, sempre se considerou que os livros do Novo Testamento se dividem, tais como os do Antigo Testamento, em históricos, sapienciais e proféticos; e somente ao Apocalipse se encaixaria bem o conceito de profético entre os livros do Novo Testamento. A chave para a interpretação está no próprio Apocalipse, capítulo 1, versículo 19: Scribe quæ vidisti, et quæ sunt, et quæ oportet fieri post hæc ― 'Escreve, pois, as coisas que viste. E que viste? Duas coisas: as que são e as que hão de suceder depois destas'.

Isso quer dizer que São João viu uma dupla realidade, ou duas coisas que são uma: algo que já é e algo que há de ser; e as viu a um só tempo, como superpostas, como por transparência: ou seja, viu algo que já é (poderia ser o império romano perseguidor do cristianismo) como figura de algo que tem de ainda ser (toda a história da Igreja, perseguida, mas especialmente nos últimos tempos, a que se refere principalmente). 

2. As cartas às sete igrejas não são apenas, como pretenderam esses autores de que lhe falava, uns avisos dirigidos por São João aos bispos das igrejas mencionadas, válidos apenas para aquele tempo e desligados do resto da obra ― que seria o único com alcance histórico (isso seria 'o que já é') ― mas que são, por sua vez, verdadeiras profecias das sete principais épocas da Igreja, com que o Apocalipse começa sua projeção histórica sobre o futuro (isso seria 'o que há de ser'). 

3. As sete igrejas, como os demais setenários do Apocalipse, estão divididos em 4 + 3 (e o ternário, por sua vez, em 2 + 1, o último designando invariavelmente o tempo da Parusia). Nas igrejas, esta divisão estará assim assinalada: as quatro primeiras igrejas indicam as etapas de crescimento e desenvolvimento da Igreja ― são quatro igrejas pujantes e vigorosas, cada vez mais ― enquanto que as outras três são etapas de declive da Igreja: combatida, começa a ceder ante seus inimigos, até que, na última Igreja, é dado ao Anticristo o poder de guerrear contra os Santos e vencê-los. 

Por isso mesmo, parece-me indiscutível que as quatro primeiras igrejas são respectivamente, como diz o Padre Holzhauser: Éfeso, a Igreja dos Apóstolos; Esmirna, a Igreja dos Mártires; Pérgamo, a Igreja dos Doutores; Tiatira, a Igreja do Sacro Império Romano, quando a Igreja produz a civilização e a sociedade cristãs. Sardes, a quinta igreja, já é o começo do declive da Igreja, e pode ser identificada com a Igreja do Renascimento ou, de modo mais geral, com a Igreja da Revolução. A identificação das épocas correspondentes às duas igrejas restantes - Filadélfia e Laodiceia - constitui um claro enigma e isso não é fácil de saber com certeza; apenas podemos vislumbrar que são etapas que representam declínios cada vez maiores da Santa Igreja.

4. Parece-me que, fora de dúvida, a Igreja de Laodiceia é a Igreja dos últimos tempos. Nela, Nosso Senhor se descreve como estando já à porta e chamando: alusão clara à sua Parusia, como também a ceia a que convida a quem lhe abra é uma clara alusão ao banquete celestial, à glória celeste. E, por isso mesmo, a Igreja que a precede, que é a de Filadélfia, há de ser a Igreja que vai da Revolução aos acontecimentos que dão lugar aos últimos tempos.

5. Esta Igreja de Filadélfia tem várias características. A primeira é surpreendente: é a única Igreja, junto com a de Esmirna, que não recebe reprovações de Nosso Senhor. Ora, a Igreja de Esmirna foi a Igreja dos Mártires. Por isso, parece bastante evidente que esta Igreja da Filadélfia se caracteriza, como a de Esmirna, por padecer perseguições por parte dos poderes anticristãos e por sua fidelidade a Cristo em meio a esta perseguição. Ademais, é uma Igreja que modicam habes virtutem, que tem pouco poder, mas, perante a qual, abre-se uma porta que ninguém pode fechar. 

Pela porta aberta designa-se sempre, em São Paulo, uma ocasião propícia para a difusão do Evangelho: esta Igreja, portanto, terá uma oportunidade maravilhosa para difundir a doutrina católica com essa pequena fortaleza que lhe queda. E parece que, a esta ocasião de difundir o Evangelho, está vinculada a conversão dos judeus: Ecce faciam illos [qui dicunt se Judæos esse] ut veniant, et adorent ante pedes tuos; et scient quia Ego dilexi te ― 'farei com que aqueles que se chamam judeus venham e adorem prostrados diante de ti, e saibam que Eu te amei'. Finalmente, a esta Igreja se recomenda perseverar na Tradição, isto é, manter o que recebeu: Tene quod habes ― É o único propósito que lhe consigna o Senhor.

6. Com estes dados, pode-se tentar duas interpretações possíveis. Dou as duas, ainda que me esforce por justificar a segunda, não porque tenha autoridade, mas porque me parece a mais provável. A primeira, que se não me equivoco é a de Bartolomeu Holzhauser, consiste em dizer que a quinta Igreja, Sardes, é a da Revolução, que incluiria então: a reforma protestante (1517), primeira etapa da revolução; o estabelecimento da maçonaria (1717), segunda etapa da revolução; o nascimento do comunismo (1917), terceira etapa da revolução, que há de acabar com um grande castigo, graças ao qual uma grande parte da humanidade perecerá e, a parte que sobreviver converter-se-á majoritariamente. 

A sexta igreja, Filadélfia, designaria, portanto, um grande triunfo da Igreja, sem precedentes, que corresponderia ao triunfo do Coração Imaculado de Maria, que ainda não se realizou. Isto é, estaríamos ainda na igreja de Sardes. E a sétima Igreja, Laodiceia, seria a igreja do Anticristo, da feroz perseguição contra a Igreja (da qual a crise atual da Igreja não seria que uma prefiguração) e da Parusia.

7. A segunda interpretação, que é minha, é a seguinte: a quinta igreja, que é a de Sardes, corresponderia com o período que vai do Renascimento à Revolução Francesa. Tem fama de viva (Re-Nascimento), mas está morta (pois é a ressurreição do culto do homem que substitui o culto de Deus). A sexta Igreja, Filadélfia, corresponderia à igreja que vai da Revolução Francesa ao Concílio Vaticano II: uma igreja combatida, perseguida, como a de Esmirna, mas fiel em dar testemunho a Nosso Senhor Jesus Cristo. E é fiel porque essa Igreja, apesar de não possuir muito poder, por ver-se perseguida de tantos modos (protestantismo, maçonaria e poderes públicos), encontra uma porta aberta para difundir o Evangelho: é a Igreja das missões, que se difunde na Ásia e na África como talvez nunca antes havia se difundido. 

Ao mesmo tempo, esta Igreja conta com papas extraordinários, de grande firmeza doutrinal, de Pio VII a Pio XII, que deram à Igreja grande prestígio, apesar de tão combatida. Na França, Alemanha, são frequentes as conversões de judeus, para nada dizer das conversões dos protestantes. Poderíamos dizer que foi uma Igreja que não merece reprovações? Parece que sim: a perseguição a fez forte e generosa. Em meu modo de entender, esta Igreja termina com a morte de Pio XII, o último dos grandes papas, em cujo pontificado a Igreja conservou um prestígio mundialmente reconhecido em todas as ordens. 

Com o Vaticano II, a revolução francesa introduzida no seio da Igreja, começa a Igreja de Laodiceia, a Igreja da tibieza, a Igreja do ecumenismo e do indiferentismo religioso. O próprio papa prega os idéias do Anticristo, os direitos do homem (como diz mais tarde o Apocalipse, é o falso profeta do dragão, a besta da terra, que tem pés de cordeiro, mas fala as palavras do dragão, e seduz a todas as gentes ― quem, senão o papa ou a hierarquia da Igreja, tem esta influência a nível mundial? ― para que adorem a imagem da Besta). A Igreja, pois, divide-se em dois grupos, por assim dizer: a Igreja fiel, perseguida pelo dragão e figurada pela mulher revestida de sol, com a lua sob seus pés e uma coroa de estrelas em sua cabeça; e a 'Igreja' infiel, isto é, uma estrutura prevaricadora, que guarda todas as aparências da verdadeira Igreja e que se serve de seus representantes, de seus santos, de sua jurisdição etc., e está figurada pela prostituta sentada sobre a besta, e que se prostitui com todos os reis da terra, com todas as ideologias anticristãs (ideais humanistas, islamismo, budismo, protestantismo, ONU, etc). Portanto, esta etapa de Laodiceia é a que conhecerá, segundo minha interpretação, a apostasia das nações, a aparição do Anticristo, a perseguição feroz contra a Igreja, a conversão final dos judeus e a Parusia de Cristo com o Juízo Final (esse é o significado de Laodiceia: julgamento dos povos).

8. Trato de aduzir aqui os argumentos em que fundamento esta minha interpretação. Primeiro: sabemos que a Igreja, por ser o Corpo Místico de Cristo, há de viver os mesmos mistérios e sofrimentos que Cristo, sua Cabeça. Também deverá ter a sua Paixão. Mas, antes de viver sua Paixão, Cristo conheceu um triunfo, passageiro, porém sonoro: o domingo de Ramos. O mesmo deve acontecer com a Igreja Católica. Depois de conhecer este triunfo, a Igreja sofrerá sua Paixão, morrerá inclusive (aparentemente, não em realidade, assim como Cristo) e depois ressuscitará e se elevará aos céus. 

A ascensão da Igreja se identifica com a Parusia, com o Juízo Final, não cabe a menor dúvida. É preciso saber, pois, em que consistirá seu Domingo de Ramos, sua Paixão e sua Ressurreição. Segundo: A Virgem Maria profetizou em Fátima o triunfo final de seu Coração Imaculado. Este triunfo será um grande renascimento da Igreja, que não durará muito: 'Ao mundo será dado um certo tempo de paz'. Ora, como parece insinuar São Paulo em sua Epístola aos Romanos, este renascimento da Igreja se realizará pela conversão dos judeus, que será como 'uma ressurreição dos mortos'. Por isso, para mim é evidente que o triunfo do Coração Imaculado corresponde à ressurreição da Igreja após a sua Paixão, e esta ressurreição, por sua vez, consiste na conversão do povo judeu à Igreja Católica. Terceiro: segundo os Santos Padres, São Gregório, em particular, o Anticristo, que perseguirá a Igreja, chegará ao poder graças aos judeus, que colocarão a seu serviço imprensa e finanças, com as que manipulam o mundo. Mas, nesse momento, aparecerá o profeta Elias, que, com sua pregação incendiada converterá grande parte do povo judeu; de modo que o Anticristo, segue dizendo São Gregório Magno, por ódio, em sua perseguição contra a Igreja, perseguirá sobretudo os judeus convertidos. E na morte do Anticristo, quando o Senhor Jesus os tiver destruído com um sopro de sua boca, toda a gente, aliviada de sua cruel tirania, se converterá e ocorrerá um renascimento da Igreja como jamais se viu, que terá como estímulo a conversão maciça dos judeus que ainda não tiverem convertido. Depois, com esta paz temporal, voltará a tibieza dos cristãos e, a esta, seguirá a Parusia de Cristo. 

Com efeito, como não ver no profeta Elias o nexo Maria-judeus-triunfo da Igreja? Pois Elias é o grande profeta da Virgem no Antigo Testamento e é ele mesmo quem há de aparecer para a conversão dos judeus; por isso, a conversão dos judeus parece intimamente ligada à Mediação da Santíssima Virgem. E, uma vez que essa conversão será o maior triunfo conhecido pela Igreja durante toda sua história, como não identificá-la com o prometido triunfo do Coração Imaculado de Maria, que conduz ao triunfo de seu Divino Filho?

9. Desse modo, eu ordenaria os acontecimentos como se segue: Primeiro, a Sexta Igreja, que é a de Filadélfia, corresponderia com esta etapa precursora da Paixão da Igreja: a Igreja já se vê condenada à morte pela Revolução, tal como Cristo já havia sido condenado à morte pela Sinagoga (a pequena fortaleza), mas conhece um tempo de triunfo temporal, como Cristo quando é triunfalmente recebido em Jerusalém. Este triunfo temporal da Igreja, quando já se encontra tão perseguida, manifesta-se pela grande porta que se abre pelo labor das missões, pelo prestígio internacional de que gozam seus papas, pela difusão da devoção ao Sagrado Coração e à Santíssima Virgem, pelo extraordinário desenvolvimento da mariologia e dos dogmas marianos, pelas numerosas aparições de Nossa Senhora, pelos Congressos Eucarísticos Internacionais, pelos chefes de estado católicos etc. 

Triunfo da Igreja em um mundo já corrompido, em um mundo que bebeu profundamente dos princípios da Revolução. Assim como Cristo chora sobre Jerusalém no próprio momento em que é triunfalmente recebido, assim a Igreja há de chorar sobre estas sociedades corrompidas em seus princípios, nas quais, apesar de tudo, consegue este sonoro triunfo. Esta é a sexta igreja, irrepreensível, porque sofreu muito; irrepreensível, porque teve papas de grande porte, firmíssimos doutrinariamente. 

Esta sexta Igreja acaba com a morte de Pio XII e, com o Vaticano II, começa a sétima Igreja (tudo isto coincide, que coincidência! com o momento em que Roma deveria ter difundido o terceiro segredo, que falava destas coisas). Este Concílio dá início à Paixão da Igreja: traição e abandono dos Apóstolos, isto é, dos bispos que se querem moldar ao mundo moderno, ao mundo anticristão, e que, por isso, tornam-se traidores (é o caso dos mais audazes) ou, pelo menos, abandonam Nosso Senhor e se calam (é o caso da maioria). A Igreja entra em sua Paixão e sofre uma espantosa solidão. Vê a seus filhos totalmente desamparados, dispersos como ovelhas, por terem sido feridos por seus pastores. Esta Igreja, como Cristo, se vê acusada de falsos crimes, e cala-se como Cristo em sua Paixão: Deus não lhe permite defender-se das calúnias que são dirigidas contra ela, pois não está em suas mãos nem a imprensa, nem as artes, nem a televisão, nem o rádio. 

Esta Igreja vê difundir-se em seu nome a mais espantosa tibieza, característica de Laodiceia, sob os nomes de ecumenismo, agiornamento, liberdade religiosa... Esta Igreja vê como, em seu nome, se consuma a apostasia: a própria Santa Sé pede às nações católicas que abram mão de sua confissão em respeito às demais crenças. Seus pastores têm pés de cordeiro, sim, mas pronunciam as palavras do Dragão. O mistério de iniquidade avança, e não me parece que tenha de interromper-se, como postularia a primeira interpretação (com o castigo geral e a conversão em massa antes do Anticristo), mas antes que prosseguirá sem solução de continuidade até encontrar seu apogeu na aparição do Anticristo, que, segundo São Paulo, será favorecido e permitido pela apostasia das nações. 

Aparece, pois, o Anticristo, a quem os judeus reconhecem como Messias e, graças aos quais, sobe ao poder e começa a perseguir a Igreja. Chegou o momento da Crucifixão e Morte da Igreja (morte aparente, é claro, mas talvez visível: voltará às catacumbas?). No entanto, ao mesmo tempo, aparece Elias e tem inicio a conversão do povo judeu. O Anticristo, furibundo, começa a perseguir os judeus conversos; no cúmulo de sua soberba, faz-se adorar como deus, mas é destruído por uma ação milagrosa de Deus. Com a morte do Anticristo, completa-se a conversão do povo judeu: chegamos ao momento da ressurreição da Igreja, tal como São Paulo a parece entender. Mas, não dura muito este tempo de paz e florescimento: levados pela comodidade, os cristãos voltam a cair na tibieza, volta a ganhar força o mistério de iniquidade, e a única solução é a vinda e aparição pessoal de Cristo: a Parusia e o Juízo final: é a culminação da Igreja, da obra de Cristo e a Assunção da Igreja ao Céu, em companhia de Cristo. 

10. Resumindo: Laodiceia é a Igreja dos últimos tempos; não é a Igreja do Milênio, pois o Magistério reprova esta opinião; e, a meu parecer, estamos na sétima época da Igreja, mas não sou profeta (sobre isso podemos todos levarmos uma surpresa; segundo Holzhauser, estaríamos ainda na quinta Igreja, na de Sardes; somente afirmaria estarmos na sexta quem julgasse que a sétima haveria de ser a do milênio).

(Texto corrigido e adaptado de original publicado na Revista Permanência)