quinta-feira, 18 de maio de 2023

SOBRE COMO LEVAR AS NOSSAS CRUZES

Alegro-me do que padeço por vós, diz São Paulo, e estou cumprindo em minha carne o que resta de padecimentos a Cristo em seus membros, sofrendo trabalhos em prol de seu Corpo Místico, que é a Igreja: Gaudeo in passionibus, et adimpleo e aquae desunt passionum Christi, in carne mea, pro corpore ejus, quod est Ecclesia (Col 1, 24). A paixão de Jesus Cristo é completa e perfeita em si mesma. Sendo de um mérito infinito, ela é mais que suficiente para resgatar-nos. Contudo, falta-lhe algo que deve proceder de vós; falamos da parte que devemos tomar nos sofrimentos e méritos de Jesus Cristo, em uma palavra, de nossa cooperação. Não somente Jesus Cristo devia sofrer em si mesmo; deve também sofrer em seus membros; e, por esta comunidade de sofrimentos, seu Corpo, que é a Igreja, engrandece-se e aperfeiçoa- se.

Aceitando as penas e as dores da vida, os fieis participam dos méritos da Paixão, tornam-se semelhantes a Jesus Cristo Crucificado. Isto é o que quer dizer São Paulo com aquelas palavras: 'Estou cumprindo em minha carne o que resta de padecimentos a Cristo em seus membros, sofrendo trabalhos em prol de seu Corpo Místico, que é a Igreja'. Com a aceitação das cruzes, os fieis fazem-se participantes da natureza divina, como disse o Apóstolo São Pedro: Divinae consortes naturae (2 Pd 1, 4). Fazem-se também partícipes da glória de Jesus Cristo pela eternidade, diz São Paulo: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur (Rm 8, 17). Aqui devemos observar com Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e outros Doutores:

I – Que, como a Igreja é um corpo místico, animado de uma só e mesma alma, tendo uma mesma vida com Jesus Cristo, deve sofrer uma só e mesma paixão com Ele; da mesma maneira que, no corpo do homem, o sofrimento é comum à cabeça e aos membros. São Paulo é quem faz esta admirável comparação: Se um membro padece, todos os demais se compadecem; e, se um membro é honrado, todo os membros alegram-se com ele. Vós, pois, sois o Corpo Místico de Cristo e membros unidos a outros membros: Se quid patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra; sive gloriatur unum membrum, congaudent omnia membra. Vos estis corpus Christi, em membra de membro (1 Cor 12, 26-27). Isso explica por que que Jesus Cristo não dizia a Saulo que perseguia a sua Igreja: 'Por que persegues a minha Igreja?', senão: 'Por que me persegues?' Quid me persequeris? (At 26, 14). Assim, como Jesus Cristo comunica sua graça e sua paciência, comunica também seus sofrimentos, e compadece-se dos que sofrem.

II – Cumpro em minha carne o que resta de padecimentos a Jesus Cristo, isto é, convém que anuncie o Evangelho e dê a conhecer Jesus Cristo às nações, a fim de que a Igreja cresça, aperfeiçoe-se e participe plenamente da paixão e redenção do Salvador.

III – Cumpro em minha carne o que resta de padecimentos a Jesus Cristo. Isto significa também que o fiel, com suas boas obras, aplica-se a participar da expiação operada por Jesus Cristo, e satisfaz, sofrendo a pena temporal devida ao pecado.

O fiel deve saber que toda a vida do cristão é de sofrimento interior ou exterior, enviado ou buscado voluntariamente. Deve aguardá-lo todos os dias e até desejá-lo. Porque, todos os dias, lançam-lhe flechas ou Deus, ou o demônio, o mundo, a carne, os amigos, os inimigos, ou as más línguas. 'Retesou seu arco, e fez de mim alvo de suas flechas' - Tetendit arcum suum, et possuir me quasi signum (soopum) as sagittam (Lm 3, 12). As enfermidades, os contratempos e as provações são flechas enviadas por Deus. O cristão também deve saber que estas flechas, de qualquer parte donde venham, são flechas de amor, e nunca de ódio.

Deus nos fere com flechas para abater a nossa desobediência e o nosso orgulho; para castigar nossos pecados e fazer-nos expiar como castigou os judeus; para destruir e, sobretudo, debilitar em nós a concupiscência da carne. Ele lança contra nós flechas como enfermidades, contradições, decepções e remorsos, obrigando-nos deste modo a combater e vencer estas inclinações; para guiar o homem pelo caminho da paciência, da santidade e da perfeição; assim feriu Deus a Jó e a Tobias; para aproximar o homem a Jesus Cristo, e fazer-lhe semelhante a Ele.

Deus resolveu manifestar, com a admirável paciência dos santos, a virtude de sua Cruz. Ele mesmo, ao vir ao mundo, não escolheu outros bens senão os sofrimentos e o Calvário. Quereis encontrar a Deus? Buscai a Cruz, pois nela Ele está pregado; ali, tão somente ali, achá-lo-eis. Se vos encontrais sobrecarregado de pesares, alegrai-vos; encontrastes a Jesus Cristo, e agora estais com Ele. 'Bem aventurados aqueles que padecem perseguições por causa da justiça, pois deles é o Reino dos Céus' - Beati qui persecutionem patiuntur propter justitiam, quoniam ipsorum est regnum coelorum (Mt 5, 10). 'Ditosos sereis quando os homens, por minha causa, vos amaldiçoarem, e vos perseguirem, e disserem com mentira toda sorte de males contra vós. Alegrai-vos, então, e regozijai-vos, porque é muito grande a recompensa que vos aguarda nos Céus' (Mt 5, 11-12).

Quando sofreis, Deus está convosco. O próprio Deus o diz pela boca do Profeta: 'Estarei com ele em suas tribulações, salvar-lhe-ei e o cumularei de glória. Eu o saciarei com uma vida muito longa, e lhe farei ver o Salvador que enviarei' - Cum ipso sum in tribulatione, eripiam eum et glorificabo eum. Longitudine dierum replebo eum, et ostendam illi salutare meum (Sl 90, 15-16). Quando Santo Antônio, depois dos terríveis combates que tinha de sustentar contra os demônios, dizia a Jesus Cristo: 'Onde estavas, ó bom Jesus? - Ubi eras, bone Jesu?. 'Antônio, eu estava contigo' - respondia-lhe Jesus - 'pois queria te ver combater' (Vit. Patr.).

Deus fere ao homem a flechadas para matar nele os desejos e os pensamentos mundanos, e fazer entrar em sua alma os pensamentos e desejos do Céu. Assim é como o Senhor prepara o homem para entrar na cidade dos eleitos, segundo aquelas palavras da Escritura: 'É preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus' - Peer multas tribulationes oportet nos intrate in regnum Dei (At 14, 12); e aquelas outras palavras de Jesus Cristo: 'o Reino dos Céus alcança-se à viva força, e somente aqueles que fazem violência a si mesmos são os que se apoderam dele' - Regnum coelorum vim patibur, et violenti rapiunt illud (Mt 11, 12).

Saiba bem o cristão que deve sofrer todos os dias de sua vida, e estar constantemente estendido sobre a Cruz, para ser alvo das flechas de Deus. Ainda mais: não deve cessar de pedir a Deus alguma aflição, como fazia São Francisco Xavier que, em seus contínuos e penosos trabalhos, em suas provações e perseguições sem número, rogava a Deus que não lhe privasse das cruzes que detinha; e que estas fossem sempre em maior número (In ejus vita).

Para levar com resignação as cruzes e triunfar das provações, pensemos que nós nos encontramos colocados na terra como um alvo para as flechas de Deus, e achemo-nos dispostos a receber com paciência e valor todas as tribulações que, vindas do Céu, tendem à glória de Deus e à nossa salvação. Tenhamos nossa alma unida a Deus pela fé, a esperança e o amor. Aquele que vive com o pensamento e, sobretudo, com os desejos dos bem aventurados, olha os bens e os males deste mundo como pouca coisa. Elevemos, pois, nossa alma sobre as coisas da terra, façamo-la sair, de certo modo, de nosso corpo para colocá-la entre os anjos: Nostra conversatio in coelis est (Fl 3, 20).

Quando assim acontecer, a nossa alma tornar-se-á mais forte que as cruzes, com resignação e paciência, e já não as sentirá e nem as consentirá. Então, exclamava São Paulo: 'Estou inundado de consolo; transbordo de gozo em meio de todas as minhas tribulações' - repletus sum consolatione; superabundo gaudio in omni tribulatione nostra (2 Cor 8, 4). Sigamos Jesus Cristo ao Calvário. Verifiquemos quantos milhares de cristãos, crianças, mulheres, anciãos e de todas as condições, de geração em geração, desde tantos séculos, dirigem-se até aquela montanha de salvação eterna e sobem até o seu cume, levando a Cruz sobre os ombros. Sigamos todos eles no caminho do Céu.

(Dos Tesouros de Cornélio à Lápide)