sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XVII)


Isto aconteceu em N., um povoado ermo localizado no interior da Hungria, durante o segundo semestre de 1956. A doutrina comunista impunha um modelo ideológico de ensino e de doutrinação baseada na perseguição à fé cristã e na difamação e ridicularização da Igreja Católica. O regime ateu buscava disseminar por todo o país o seu programa de ensino ideológico como regra geral, baseado na negação de Deus e das verdades do Evangelho e no aniquilamento de todas e quaisquer práticas cristãs.  

Na paróquia de N., entretanto, o trabalho por fazer tenderia a ser especialmente duro. Aquela comunidade mantivera intactos os fundamentos da fé cristã por gerações e fazer desaparecer as raízes de sua fé e religiosidade não seria uma tarefa simples e imediata. Era preciso adotar estratégias especiais e inocular o veneno do ateísmo em doses crescentes e sistemáticas. E era preciso cortar o mal pela raiz, solapando a religiosidade na sua escala inicial: nas crianças, mediante um propósito firme e persuasivo: arrancar a fé da alma das crianças para formar mais tarde legiões de homens desprovidos de qualquer convívio com a ideia de Deus.

Não havia pessoa melhor do que G. para cumprir esta missão diabólica: ela era a professora-modelo do regime ateu vigente. E, cheia de honrarias e galanteios, G. foi deslocada para aquele lugar do interior da Hungria para servir de referência do poder e da força do regime ateu militante para a transformação da sociedade magiar em direção ao comunismo pleno. E, ainda mais cheia de galanteios e honrarias, tomou a frente da direção da escola local e tornou-se a professora da turma dos alunos do último ano.

E não perdeu tempo para disseminar os seus venenos e desvarios em doses crescentes, a cada aula, todos os dias. Da zombaria às blasfêmias, do deboche explícito aos argumentos inventados, das mentiras à negação absoluta de quaisquer valores cristãos, a professora se impôs como um flagelo e uma bruxa demente na frente das crianças. Mas encontrou resistência. Não firmou trincheiras na consciência dos pequenos. Não intimidou as crianças pelo medo e pelas ameaças veladas. Não obscureceu a luz do dia com as trevas de sua alma vulgar.

O velho pároco da comunidade as sustentava na fé, fora dos horários da escola; ensinava-lhes os exemplos e as obras dos grandes santos e mártires da Igreja, os valores extraordinários do Evangelho, os tesouros incomensuráveis da verdadeira fé cristã. Ensinava-lhes uma, dez, cem vezes: Deus não se interessa por almas almas tíbias e acovardadas; era preciso não esmorecerem nunca para não se tornarem vassalos do exército ateu, mas perseverarem na fé cristã para serem sempre os soldados de Cristo. As crianças aprendiam muito melhor as lições do velho pároco. E, ninguém mais do que A. se alistou nesta grande resistência: a menina tornou-se rapidamente a cabeça do pequeno exército de Cristo na região erma de N. 

Os ataques aumentaram de intensidade e vigor; as ameaças se tornaram frequentes, o medo se impôs como alternativa natural. O velho pároco foi preso e mantido incomunicável, as aulas foram aumentadas, reuniões e ajuntamentos foram proibidos. O sistema fazia valer a sua teia de infâmias e perseguições. Mas G. não avançava em nada, o silêncio das crianças a atormentava, a indiferença delas diante de suas constantes ameaças a desnorteavam; seu relatório semestral ao partido não registrou nenhum ganho palpável e apenas alardeava um projeto de ineficiência crônica. E o seu ódio por A. tornou-se compulsivo e mórbido.

Em meados de dezembro, ela chegou ao paroxismo de suas intenções: algumas crianças, lideradas por A., a tinham desafiado a limites extremos: G. as ouvira entoar baixinho, durante um intervalo das aulas, uma canção que falava de Natal e do Menino Jesus! Na sala dos professores tomando o seu chá, G. ficou lívida como um cadáver e espumando de raiva feito um zumbi. O refrão da cantiga vibrava e ressoava dentro de sua cabeça: 'Vem, Menino Jesus, vem!' Gemeu entorpecida por uns 15 minutos, antes de definir a tática malévola que se esgueirou por sua mente doentia, diferente de tudo que até então tentara. Tremendo de ódio, voltou à sala de aula. 

'Crianças, vocês sabem que festa está próxima de ocorrer?' Silêncio total. 'Vamos lá, que festa é essa que vocês comemoravam nesta época todo ano?' Silêncio total. 'Muito bem, se vocês não a reconhecem, é porque ela não tinha importância nenhuma, não é?' 'É o Natal' - a vozinha de A. quebrou o silêncio seguinte. G. estremeceu, mas se conteve. 'Ah, o Natal, aquela festinha do nascimento de um menino... como é o nome dele, A.?' 'Jesus - a vozinha era suave mas firme - o Menino Jesus'. G. estremeceu com uma risada sarcástica: 'Vocês gostam de acreditar em historinhas bem contadas... quanta superstição boba... e vocês conhecem alguma cantiga que fale nesse Menino Jesus?'. Nenhuma resposta. 'Tem aquela: 'Vem, Menino Jesus, vem!'... e começou a cantar o refrão da cantiga, em tons desafinados e ares de deboche. 'Você conhece essa cantiga, A.?' 'Sim, eu a conheço'. G. estremeceu de ira interior e muito disso aflorou aos seus lábios trementes: 'Então a cante para mim, agora!'

A. sabia que tinha ido muito longe, mas o seu pensamento intimidado foi cortado de repente pela sua voz: ela começara a cantar a velha cantiga de Natal. Sua vozinha tinha a força de um sino vibrando em todas as direções da sala de aula. Ela se levantou e começou a cantar com mais força; ao chegar no refrão, a menina da segunda carteira da fila à sua direita começou a cantar junto com ela; depois, outra à sua esquerda, o menino lourinho da frente... e, um pouco depois, a sala inteira cantava, numa única voz, a velha cantiga. E um pequeno milagre já aconteceu aí: G. ficou muda e petrificada na sua cadeira até que o último som se esvaiu no ar.

A professora ficou os cinco minutos seguintes tentando entender o que tinha acontecido. Era claro que toda a escola tinha ouvido a música de Natal entoada inteira na sua classe, isto ela podia perceber pelo silêncio absoluto que reinava na sala e também fora da sala de aula. Ela buscou recompor o estado das coisas, fingindo um sarcasmo que agora parecia débil: 'Vem, Menino Jesus, vem? Vocês cantam para um fantasma, um duende, uma ficção... querem ver? Querem que eu lhes mostre como essa cantiga é tola, absurda, supersticiosa, inútil?' E, de imediato, virou-se para o menino loirinho da frente e gritou: 'Vem, Menino H. vem!' H. se levantou aterrorizado e se aproximou da professora como um autômato. 

Em seguida, abriu a porta e gritou: 'Vem, senhor D., vem!'. E quase no mesmo instante apareceu o velho bibliotecário da escola, o senhor D., muitíssimo mais vermelho do que o seu normal. E chamou em seguida a senhora L., a chefe da cantina, que apareceu às pressas, ainda atarefada em se desfazer do seu avental. A professora os despachou em seguida, fechou a porta da sala e, sarcástica como nunca, desafiou as crianças: 'Vem, Barba Azul, vem!' E, colocando a mão em concha sobre uma das orelhas, fingia esperar uma resposta. 'Vem, Pé-Grande, vem!' e, rindo sem parar, desfilou uma galeria de elfos, duendes, fadas e outros tantos seres mitológicos com o refrão da cantiga. 'E então, crianças, estão vendo? Coisas que existem vêm e vão porque existem; coisas que não existem não podem nos ouvir chamá-los e nem vir até nós porque simplesmente não existem!' O 'simplesmente não existem' foi proclamado sílaba por sílaba, numa entonação exasperada.

O sarcasmo fazia a professora salivar e desferir perdigotos como uma metralhadora líquida. E ela havia encontrado a saída para explicar depois, lá fora, a concessão à cantoria religiosa. E, quase em vertigem, desafiou as crianças: 'Chamem o Menino Jesus, chamem... quem sabe ele não aparece aqui para nos mostrar que não é uma fábula da religião de vocês? Vamos, chamem o menino de novo, chamem...'

A vozinha de A. deu início ao coro que se seguiu de imediato. As crianças se colocaram de pé e entoaram juntas, mais uma vez, a velha canção de Natal. 'Vem, Menino Jesus, vem!' 'Vem, Menino Jesus, vem!' 'Vem, Menino Jesus, vem!' Foi A. quem viu primeiro a luz nascendo de repente, no meio da parede atrás da professora, quando entoavam o refrão da música pela terceira vez. A Luz tinha a forma de uma esfera de uma brancura indescritível e, no meio da Luz, o Menino Jesus cantava o refrão da música com as crianças. As crianças ficaram totalmente imersas na luz que emanava da Luz e que se dissipava muito mais além, tornando transparentes as paredes e o teto da sala. Ninguém nunca soube precisar o tempo da aparição, pois todos tiveram a certeza de que o tempo naquele momento parou nos relógios dos homens.

A luz simplesmente dissipou e tudo voltou ao normal na sala de aula de N. As crianças lembraram-se então de olhar para a professora e não a viram mais na sala. Muitas testemunhas disseram depois que a viram passar pela parede como se esta não existisse, ao se afastar da luz que a cegava, e sair em louca disparada em direção desconhecida, gritando feito uma demente: 'Ele veio! Ele veio! Ele veio!' É fato notório que o ateísmo nunca vingou ali e o regime comunista se desfez sob a Hungria libertada. Também é fato concreto que todo Natal em N. é precedido e acompanhado por muitos e muitos coros daquela velha canção natalina. E muitos dizem que, de tempos em tempos, o Menino Jesus reaparece por lá no Natal, quando se está cantando o refrão da velha música pela terceira vez...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)