segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A MEDIDA DO MUNDO PELA CRUZ DE CRISTO

'Olhai à vossa volta e vede o que o mundo vos apresenta tanto de alto como de baixo. Ide à corte dos príncipes. Vede a riqueza e a arte de todas as nações reunidas para honrar o filho de um homem. Observai como os muitos se prostram diante dos poucos. Considerai as formalidades e o cerimonial, a pompa, o luxo, o esplendor – e a vanglória. Quereis saber o valor de tudo isso? Olhai para a Cruz de Cristo.

Ide ao mundo da política: vede a inveja que opõe nação a nação, a competição entre uma economia e outra, exércitos e frotas enfrentados uns com os outros. Examinai os diversos estamentos da sociedade, os seus partidos e as suas contendas, as aspirações dos ambiciosos e as intrigas dos astutos. Qual é o fim de toda essa agitação? A sepultura. Qual é a sua medida? A Cruz.

Ide também ao mundo do intelecto e da ciência: considerai as maravilhosas descobertas feitas pela mente humana, a variedade de artes que essas descobertas fizeram surgir, os quase milagres pelas quais demonstra o seu poder, e considerai a seguir o orgulho e a autoconfiança da razão, e a absorção do pensamento em objetos transitórios, que é a sua consequência. Quereis julgar retamente tudo isso? Olhai para a Cruz.

Mais ainda: vede a miséria, vede a pobreza e a indigência, vede a opressão e o cativeiro; ide para onde o alimento é escasso e a moradia insalubre. Considerai a dor e o sofrimento, as doenças longas ou agudas, tudo o que é pavoroso e repugnante. Quereis saber que peso têm todas essas coisas? Olhai para a Cruz.

Por isso, todas as coisas convergem para a Cruz – e para Aquele que dela pende – todas as coisas lhe estão subordinadas, todas as coisas necessitam dela. É o seu centro e a sua interpretação. Pois Ele foi levantado sobre ela para que pudesse atrair a si todos os homens e todas as coisas.

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Assim como a doutrina da Cruz não se manifesta ostensivamente à superfície do mundo, mas é a verdadeira interpretação desse mundo, assim, quando é recebida por um coração fiel, permanece nele como um princípio vital, mas profundo e escondido. Os cristãos, nas palavras da Escritura, vivem da fé no Filho de Deus, que os amou e se entregou por eles (Gal 2, 20), mas não o alardeiam diante de todos, antes deixam os outros descobri-lo por si mesmos. O próprio Cristo ordenou aos seus discípulos que, quando jejuassem, ungissem a cabeça e lavassem o rosto (Mt 6, 17).

Por isso, os cristãos têm o dever de não se vangloriar, antes devem contentar-se com parecer exteriormente diferentes do que realmente são no seu íntimo. Devem mostrar um semblante alegre e controlar e regular os seus sentimentos, para que esses sentimentos não se desgastem na superfície, mas possam retirar-se para o fundo do coração, e ali viver. Por isso, Jesus Cristo, e este crucificado é – como nos diz o Apóstolo – uma sabedoria escondida (1 Cor 2, 2.7).

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Se é assim, a grande e tremenda doutrina da Cruz de Cristo, que agora celebramos, pode ser considerada apropriadamente, em linguagem figurada, o coração da religião. O coração costuma ser considerado a sede da vida; é o princípio do movimento, do calor e da atividade; dele parte o sangue até as extremidades do corpo e a ele retorna. Sustenta as forças e faculdades do homem; permite que o cérebro pense; e se for ferido, o homem morre. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor de Cristo é o princípio vital do qual vive o cristão, e sem ele não existe cristianismo.

Sem ela, não se pode sustentar de maneira proveitosa nenhuma outra doutrina; a Divindade de Cristo, ou a sua Humanidade, ou a Santíssima Trindade, ou o Juízo que há de vir, ou a Ressurreição dos mortos seriam crenças falsas, não a fé cristã, se não se aceitasse ao mesmo tempo a doutrina do sacrifício de Cristo. Por outro lado, aceitá-la pressupõe que se aceitem também as outras altas verdades do Evangelho: ela pressupõe a fé na verdadeira Divindade de Cristo, na sua verdadeira Encarnação e no estado pecaminoso do ser humano; e prepara o caminho para crer no sagrado Banquete Eucarístico, no qual Aquele que outrora foi crucificado é entregue sempre de novo às nossas almas e aos nossos corpos, real e verdadeiramente, no seu Corpo e no seu Sangue.

Mais ainda: o coração está escondido à vista e segura e cuidadosamente guardado; não é como o olho que, inserido na fronte, tudo controla e é visto por todos. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor não se destina a ser objeto de conversação, mas deve ser vivida; não se destina a ser enunciada irreverentemente, mas deve ser adorada em segredo; não se destina a ser usada como um instrumento necessário para a conversão dos maus ou para a satisfação dos raciocinadores deste mundo, mas deve ser apresentada aos dóceis e obedientes, às criancinhas que o mundo não corrompeu, aos aflitos que precisam de consolo, aos sinceros e honestos que buscam uma regra de vida, aos inocentes que precisam de advertência, e aos santos que merecem conhecê-la'.

(Excertos de sermão pregado pelo Cardeal John Henry Newman)