sexta-feira, 30 de junho de 2023

SOBRE AS VERDADES ETERNAS

Jesus: 'Não te deixes cativar pela elegância e sutileza dos dizeres humanos, porque o reino de Deus não consiste em palavras, mas na virtude (1 Cor 2,4). Atende às minhas palavras, que inflamam o coração, iluminam o espírito, levam à compunção e produzem muitas consolações. Nunca leias minha palavra com o fim de pareceres mais douto ou sábio. Aplica-te a mortificar teus vícios, porque isso te traz mais proveito que o conhecimento das mais difíceis questões.

Por muito que estudes e aprendas, terás que referir-se a tudo sempre ao único princípio. Sou eu que ensino ao homem a ciência, e dou aos pequeninos mais clara compreensão do que os homens são capazes de ensinar. Aquele a quem eu ensinar, depressa será sábio e muito aproveitará espiritualmente. Ai daqueles que indagam dos homens muitas coisas curiosas e tratam pouco dos meios de me servir. Tempo virá em que aparecerá o Mestre dos mestres, Cristo, Senhor dos anjos, para tomar lições de todos, isto é, para examinar a consciência de cada um. E com a lâmpada na mão perscrutará então Jerusalém e revelará o segredo das trevas, fazendo calar as objeções das línguas humanas.

Eu sou o que levanta num instante o espírito humilde, de maneira que compreenda melhor as razões das verdades eternas, do que se houvera estudado dez anos nas escolas. Eu ensino sem ruído de palavras, sem confusão de opiniões, sem espalhafato, sem contenda de argumentos. Eu sou o que ensina a desprezar as coisas terrenas, a aborrecer as coisas presentes, a buscar e apreciar as eternas, a fugir às honras, sofrer as injúrias, por em mim toda esperança, a não desejar coisa alguma fora de mim e amar só a mim, com todo fervor, acima de tudo.

Alguns, amando-me inteiramente, aprenderam com isso coisas divinas e falavam coisas maravilhosas. Mais aproveitaram em deixar tudo do que em estudar questões sutis. A uns, porém, falo coisas comuns, a outros, mais particulares; a alguns revelo-me docemente em sinais e figuras, a outros descubro os meus mistérios com muita luz. A mesma voz fala em todos os livros, mas não ensina a todos da mesma maneira; pois eu sou o que interiormente ensina a verdade, perscruta o coração, penetra os pensamentos e inspira as ações, distribuindo a cada um segundo me apraz'.

(Da 'Imitação de Cristo', de Tomás de Kempis)

quinta-feira, 29 de junho de 2023

29 DE JUNHO - FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

 

'Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo' (Mt 16,16)

'Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé' (II Tm 4,7)

Excertos da Homilia do Papa João Paulo II, na Solenidade de São Pedro e São Paulo, em 29/06/2000

1.'E vós, quem dizeis que Eu sou?' (Mt 16, 15). Jesus dirige aos discípulos esta pergunta acerca da sua identidade, enquanto se encontra com eles na Alta Galileia. Muitas vezes acontecera que foram eles a interrogar Jesus; agora é Ele quem os interpela. A sua pergunta é específica e espera uma resposta. Simão Pedro toma a palavra em nome de todos: 'Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo' (Mt 16, 16). A resposta é extraordinariamente lúcida. Nela se reflete de modo perfeito a fé da Igreja. Nela nos refletimos também nós. De modo particular, reflete-se nas palavras de Pedro, o Bispo de Roma, por vontade divina o seu indigno sucessor.

2. 'Tu és o Cristo!'. À confissão de Pedro, Jesus replica: 'És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o Meu Pai que está nos céus' (Mt 16, 17).

És feliz, Pedro! Feliz, porque esta verdade, que é central na fé da Igreja, não podia emergir na tua consciência de homem, senão por obra de Deus. 'Ninguém', disse Jesus, 'conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar' (Mt 11, 27). Reflitamos sobre esta página evangélica particularmente densa: o Verbo encarnado revelara o Pai aos seus discípulos; agora é o momento em que o próprio Pai lhes revela o seu Filho unigênito. Pedro acolhe a iluminação interior e proclama com coragem: 'Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!'

Estas palavras nos lábios de Pedro provêm do profundo do mistério de Deus. Revelam a verdade íntima, a própria vida de Deus. E Pedro, sob a ação do Espírito divino, torna-se testemunha e confessor desta soberana verdadeA sua profissão de fé constitui assim a sólida base da fé da Igreja: 'Sobre ti edificarei a minha Igreja' (Mt 16, 18). Sobre a fé e a fidelidade de Pedro está edificada a Igreja de Cristo.

3. 'O Senhor assistiu-me e deu-me forças a fim de que a palavra fosse anunciada por mim e os gentios a ouvissem' (2 Tm 4, 17). São palavras de Paulo ao fiel discípulo Timóteo: escutamo-las na Segunda Leitura. Elas dão testemunho da obra nele realizada pelo Senhor, que o tinha escolhido como ministro do Evangelho, 'alcançando-o' na via de Damasco (Fl 3, 12). Envolvido numa luz fulgurante, o Senhor se lhe havia apresentado, dizendo:  'Saulo, Saulo, por que Me persegues?' (At 9,4), enquanto uma força misteriosa o lançava por terra.

'Quem és Tu, Senhor?', perguntara Saulo. 'Eu sou Jesus, a quem tu persegues!'. Foi esta a resposta de Cristo. Saulo perseguia os seguidores de Jesus e Jesus fez-lhe tomar consciência de que era Ele mesmo a ser perseguido neles. Ele, Jesus de Nazaré, o Crucificado, que os cristãos afirmavam ter ressuscitado. De Damasco, Paulo iniciará o seu itinerário apostólico, que o levará a defender o Evangelho em tantas partes do mundo então conhecido. O seu impulso missionário contribuirá assim para a realização do mandato de Cristo aos Apóstolos: 'Ide, pois, ensinai todas as nações...' (Mt 28, 19).

4. Caríssimos Irmãos no Episcopado vindos para receber o Pálio, a vossa presença põe em eloquente ressalto a dimensão universal da Igreja, que derivou do mandato do Senhor: 'Ide... ensinai a todas as nações' (Mt 28, 19). Todas as vezes que vestirdes estes pálios, recordai, irmãos caríssimos que, como pastores, somos chamados a salvaguardar a pureza do Evangelho e a unidade da Igreja de Cristo, fundada sobre a 'rocha' da fé de Pedro. A isto nos chama o Senhor; esta é a nossa irrenunciável missão de guias previdentes do rebanho que o Senhor nos confiou.

5. A plena unidade da Igreja! Sinto ressoar em mim a recomendação de Cristo. Deus nos conceda chegarmos quanto antes à plena unidade de todos os crentes em Cristo. Obtenhamos este dom dos Apóstolos Pedro e Paulo, que a Igreja de Roma recorda neste dia, no qual se faz memória do seu martírio e, por isso, do seu nascimento para a vida em Deus. Por causa do Evangelho, eles aceitaram sofrer e morrer e se tornaram partícipes da ressurreição do Senhor. A sua fé, confirmada pelo martírio, é a mesma fé de Maria, a Mãe dos crentes, dos Apóstolos,  dos Santos  e Santas de  todos  os séculos.

Hoje a Igreja proclama de novo a sua fé. É a nossa fé, a imutável fé da Igreja em Jesus, único Salvador do mundo; em Cristo, o Filho de Deus vivo, morto e ressuscitado por nós e para a humanidade inteira.

São Pedro e São Paulo, rogai por nós! 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

DOUTORES DA IGREJA (XV)

15. São Pedro Damião, Bispo (†1072)

Doutor Austero


Concessão do título: 1823 - Papa Leão XII

Celebração: 21 de fevereiro (Memória Facultativa)

 Obras e Escritos 

  • De Divina Omnipotentia
  • Dominus Vobiscum - 'O Senhor é convosco'
  • Vida de Romualdo
  • Obra Eremítica
  • Officium Beatae Virginis
  • Liber Gomorrhianus - Livro de Gomorra

PALAVRAS DA SALVAÇÃO

'Meu Senhor está na Cruz e perguntas por que choro? Quisera eu ser neste momento o maior oceano da terra para ter tudo isso de lágrimas. Quisera que se abrissem ao mesmo tempo todas as comportas do mundo e se soltassem as cataratas e os dilúvios para me emprestarem mais lágrimas. Mas ainda que juntemos todos os rios e mares, não haveria lágrimas suficientes para chorar a dor e o amor do meu Senhor Crucificado. Quisera ter as asas invencíveis de uma águia para atravessar as cordilheiras e gritar sobre as cidades: O Amor não é amado! O Amor não é amado! Como é que os homens podem amar uns aos outros se não amam o Amor?'

(São Francisco de Assis)

terça-feira, 27 de junho de 2023

ORAÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS NO SOFRIMENTO

 

Ó doce, ó amável, ó amoroso Coração de Jesus, fostes desde a infância cheio de amargura e agonias, sem alívio algum, e sem que ninguém visse a vossa pena ou ao menos vos consolasse, compadecendo-se convosco. Tudo isto sofrestes, ó meu Jesus, para satisfazerdes os meus pecados e me livrardes da agonia eterna que eu devia sofrer no inferno. Duro abandono padecestes, privação de todo socorro, para me salvardes, a mim que tive a audácia de abandonar a Deus, para contentar os meus desordenados apetites. Graças vos dou, ó Coração afligido e amorosíssimo do meu Senhor; graças vos dou, e me compadeço das vossas dores, sobretudo vendo que sofreis tanto pelo amor dos homens e estes permanecem insensíveis. Ó amor divino! Ó ingratidão humana! Homens, ó homens, olhai, eu vos peço, para este inocente Cordeiro, agonizando por vós, a fim de satisfazer a justiça de Deus pelas injúrias que lhe fizestes; vede-o orando e intercedendo em vosso favor ao seu eterno Pai; contemplai-o e amai-o! Dulcíssimo Redentor, quão pequeno é o número dos que pensam nas vossas dores e no vosso amor! 

Ó Céu! Quão poucos os que vos amam! Eu mesmo tive a desgraça de viver largo tempo sem pensar em vós! Tanto haveis sofrido para ganhar o meu amor e eu não vos tenho amado nada! Perdoai-me, ó meu Jesus, perdoai-me; quero me corrigir e vos amar. Não permitais responder com mais ingratidão ao vosso amor. Atendei-me, suplico-vos, pelos merecimentos da vossa Paixão; nela ponho toda a minha confiança. Ó Maria, minha terna Mãe, socorrei-me; vós é que me tendes conseguido todas as graças que de Deus possam vir; do íntimo vos agradeço; mas, se não continuais a proteger-me, serei sempre infiel como no passado.

(Excertos da obra 'As Mais Belas Orações de Santo Afonso', do Pe. Saint-Omer)

segunda-feira, 26 de junho de 2023

26 DE JUNHO - SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ

  


São Josemaria Escrivá de Balaguer nasceu em 09 de janeiro de 1902 em Barbastro, Espanha. Em 02 de outubro de 1928, durante um retiro espiritual em Madrid, concebeu e fundou o OPUS DEI, atualmente prelazia pessoal da Igreja Católica. A missão específica do Opus Dei é promover, entre homens e mulheres de todo o âmbito da sociedade, um compromisso pessoal de seguir a Cristo, de amor a Deus e ao próximo e de procura da santidade na vida cotidiana. Faleceu em Roma em 26 de junho de 1975. Foi beatificado em 17 de maio de 1992 e canonizado, pelo Papa João Paulo II na Praça de São Pedro, em 06 de outubro de 2002. Sua obra mais conhecida é Caminho, escrita como orientações espirituais em diferentes parágrafos. Outras obras do autor são ForjaSulco e É Cristo que Passa.

A CRUZ NÃO É UM CONSOLO FÁCIL

'A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de fáceis consolações. Começa logo por ser uma doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana. Não vos posso esconder - e com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a Cruz, está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Noutras ocasiões, senti crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal. E soube o que era a mágoa de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.

Quando vos falo de dor, não vos falo apenas de teorias. Nem me limito a recolher uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que tendes é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, convertem-se em reparação, em desagravo e em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda agora, Cristo continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e da qual Ele é Cabeça, Primogênito e Redentor'.
(É Cristo que Passa)

domingo, 25 de junho de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

   

'Atendei-me, ó Senhor, pelo vosso imenso amor!(Sl 68)

Primeira Leitura (Jr 20, 10-13) - Segunda Leitura (Rm 5,12-15)  -  Evangelho (Mt 10,26-33)

 25/06/2023 - Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum

31. 'NÃO TENHAIS MEDO!' 


O Evangelho deste domingo nos infunde o sopro da Verdade de Deus. Todas as nossas ações, gestos, pensamentos, palavras, silêncios, desejos, intenções, atos e omissões, praticados a cada segundo, durante toda a vida de cada um de nós, são conhecidos por Deus como escritos em manchetes nas estrelas: 'Até os cabelos de vossa cabeça estão contados' (Mt 10, 30). Nada, absolutamente nada, ficará envolto em penumbra ou esquecimento; todas as coisas serão refletidas no espelho da verdade divina, como oráculo universal: 'nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido' (Mt 10, 27).

A certeza final é que deveremos prestar contas de cada palavra, de cada gesto, de cada intenção. Tudo será pesado na balança do juízo particular. A resposta à graça concedida e o mal devido ao pecado; a caridade anônima ou o juízo temerário, a palavra de conforto ou o gesto de revolta. O valor de uma alma é infinito, pois se trata de um ato puro da criação do Pai, na escolha personalíssima de Deus como criatura destinada a partilhar a eternidade com Ele no Céu. Mas o legado desta graça é cumprir fielmente os desígnios de Deus para as almas de sua predileção.

O pensamento da eternidade transforma em palha e espuma os tesouros, grandezas e glórias do mundo. Deus nos escolheu não para sermos peregrinos nesta terra, mas como herdeiros do Céu. E,assim, em cada pensamento ou palavra, o fim último deve ser sempre a busca da vida eterna em Deus, conforme nos fala o Apóstolo: 'Com temor e tremor trabalhai por vossa salvação’ (Fl 2,12). E esta busca passa pelo horror ao pecado e a tudo que nos aniquila como Filhos de Deus: 'Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!' (Mt 10, 28).

'Não tenhais medo!' (Mt 10, 31). O triunfo da alma é seguir o Cristo, Caminho, Verdade e Vida. Quem tem Deus no coração, ama a Verdade e a pratica em tudo e em todos. Quem ama a Verdade, faz a Vontade do Pai que está nos Céu; quem nega a Verdade, é réu de pecado eterno: 'todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele diante do meu Pai que está nos céus. Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus (Mt 10, 32 - 33). Iustus ex fide vivit — O justo vive pela fé.

ORAÇÃO: 25 DE JUNHO DA DIVINA INFÂNCIA

   

A JESUS, INFINITAMENTE PURO

Todas as outras crianças vêm ao mundo com a mancha do pecado, mas Jesus nasce em perfeita santidade. O meu amado - dizia a Esposa Sagrada - é todo vermelho de amor e branco todo de Inocência e pureza (Ct 5,10). Este celeste menino é, com a sua Mãe, o único em quem o Pai achou as suas delícias, porque é o único inteiramente puro aos seus olhos. 

O' meu inocente Senhor, espelho sem mancha, amor do Pai eterno, não é a vós que são devidos os castigos e maldições, mas a mim, miserável pecador. A fim de mostrar ao mundo até onde vai o vosso amor, destes a vossa vida, sobrecarregastes as penas que devíamos e a que preço merecestes o perdão das nossas faltas! Todas as criaturas louvem e bendigam para sempre a vossa misericórdia e bondade infinita ! Graças vos dou por todos os homens, mas principalmente por mim: como vos ofendi mais do que os outros, devestes sofrer mais por mim do que por eles. Maldigo mil vezes os meus indignos prazeres que vos custaram tantas dores. Que não seja perdido para mim esse divino sangue por vós derramado como preço da minha libertação. 

Amo-vos, Bondade infinita, mas desejo amar-vos ainda mais; quisera amar-vos quanto mereceis. Fazei-vos amar, ó meu Jesus, fazei-vos amar por mim e por todo o mundo como sois tão digno de ser amado! Por piedade, esclarecei os pecadores que não vos querem conhecer ou vos recusam amar; dai-lhes a compreender o que haveis feito pelo seu amor e quanto ansiais pela sua salvação. O' Maria, rogai a Jesus por mim e por todos os pecadores; obtende-nos as luzes e as graças de que temos necessidade para amarmos o vosso divino Filho


(A Divina Infância de Jesus, celebrada a cada dia 25 do mês, por Santo Afonso Maria de Ligório)

sábado, 24 de junho de 2023

TESOURO DE EXEMPLOS (229/232)

 

229. O ITALIANO BLASFEMADOR E O JUIZ*

Infelizmente na Itália muitos têm o detestável vício de blasfemar ou xingar a Deus. Numa cidade dos Estados Unidos, onde a blasfêmia é punida severamente, um italiano várias vezes admoestou um patrício que deixasse de blasfemar. Mas a resposta era sempre esta: 'Vai cuidar dos teus negócios!' 

Um dia, porém, um policial, que entendia italiano, ouviu-o blasfemar e sem demora prendeu-o e levou-o ao juiz. Este perguntou-lhe:
➖ Que respondeis à acusação deste policial?
➖ Que blasfemei, mas foi em italiano.
➖ Então pensais que Deus não entende o italiano?!
➖ Mas foi na Itália que me habituei a blasfemar.
➖ E eu, na América, me habituei a condenar os blasfemadores. Por esta vez, condeno-vos a pagar apenas a multa de dez dólares.
➖ Como! tanto dinheiro por uma só blasfêmia?!

E aqui o tal italiano perdeu o controle de si mesmo e soltou outra blasfêmia. E o juiz acrescentou logo:
➖ Por esta segunda blasfêmia pagareis vinte dólares.
➖ Mas isso é uma grave injustiça, senhor juiz. Não sabeis que na Itália... e solta a terceira blasfêmia.
➖ Por esta terceira blasfêmia pagareis trinta dólares; a não ser que prefirais ficar tantos dias na cadeia quanto são os dólares que deveis pagar.
O blasfemador calou-se e aprendeu a lição. Desde aquele dia não mais o ouviram blasfemar.

* no original: 'Dois italianos e o vício de blasfemar'

230. DEVE PREFERIR-SE A TUDO

São João de Gota, um dos mártires do Japão, foi condenado por um tirano. Contava apenas dezenove anos e pouco tempo fazia que entrara na Companhia de Jesus. Indo seu pai despedir-se dele, o jovem, no momento de ser crucificado, disse-lhe:
➖ Meu pai, a salvação deve preferir-se a tudo. O senhor, para assegurá-la, não se descuide de nada.
➖ Muito obrigado, meu filho! Quanto a você, também aguente firme. Sua mãe e eu estamos preparados para morrer pela mesma causa.
E o generoso pai, tendo beijado seu filho mártir, retirou-se molhado pelo sangue da generosa vítima.

231. SUPERSTICIOSO CRUEL

Luís XI, rei de França, condenara à morte um astrólogo por haver pressagiado coisas desagradáveis. Este, em tom profético, disse aos familiares do rei:
➖ Li nos astros que viverei até uma idade avançada e que morrerei três dias antes de sua majestade.
Bastou isso para que o rei revogasse a sentença e prodigalizasse ao astrólogo toda sorte de cuidados para prolongar-lhe a vida.

232. UMA REPRESENTAÇÃO SACRÍLEGA

O imperador Miguel II, de Constantinopla, que contribuíra para o Cisma da Igreja Grega, ordenara que no dia da Ascensão se representasse uma comédia para escarnecer os sacramentos. Na noite seguinte, um espantoso terremoto, acompanhado de furiosa tempestade no mar, devastou aquela cidade. Pouco depois, o imperador, enquanto dormia após uma de suas bebedeiras, foi assassinado pelo seu próprio filho.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

quinta-feira, 22 de junho de 2023

BREVIÁRIO DIGITAL - LEGENDA ÁUREA (IX)

 

Santo Ambrósio rezava na igreja dos santos Nabor e Félix, em estado que não era totalmente desperto nem inteiramente adormecido, quando lhe apareceram dois jovens da maior beleza, vestindo trajes brancos compostos por uma túnica e um manto, calçando pequenas botinas e orando com as mãos estendidas. Na sua prece, Ambrósio pediu que se aquilo se tratasse de uma ilusão não aparecesse mais e, caso fosse algo verdadeiro, que ele tivesse outra revelação. Na hora do canto do galo, os jovens apareceram a ele da mesma maneira que antes e, três noites depois, estando inteiramente desperto, ficou surpreso ao ver aparecer uma terceira pessoa que parecia ser muito semelhante ao apóstolo Paulo, tal como vira em algumas pinturas. Os jovens ficaram calados enquanto o apóstolo dizia: 'Aqui estão aqueles [Santos Gervásio e Protásio] que, seguindo os meus conselhos, nada desejaram das coisas terrestres. No mesmo lugar em que você se encontra neste momento, a doze pés de profundidade, estão seus corpos em uma arca coberta de terra e, perto da cabeça deles, um livrinho que conta o seu nascimento e sua morte'.


Em seguida, ele convocou os bispos vizinhos, cavou a terra e encontrou tudo como Paulo dissera. Embora mais de trezentos anos tivessem se passado, os corpos foram descobertos no estado em que estariam caso tivessem sido sepultados naquela mesma hora. Dali emanava uma fragrância verdadeiramente suave e especial. Tocando o túmulo, um cego recobrou a vista e muitas pessoas foram curadas pelos méritos daqueles corpos. Na mesma hora em que se celebrava aquela solenidade, foi restabelecida a paz entre os lombardos e o Império Romano e, por isso o papa Gregório determinou que o introito da missa desses santos começasse por 'O Senhor dirigirá a seu povo palavras de paz...'. Pela mesma razão, diferentes partes do ofício relativo àqueles santos referem-se a acontecimentos ocorridos nesta época.

(Excertos da obra 'Legenda Áurea - Vidas de Santos, de Jacopo de Varazze)

Legenda Áurea constitui meramente um livro de devoção católica, acessível às pessoas comuns de todas as épocas, sem nenhum propósito de abordagem biográfica da vida dos santos sob o escopo da veracidade ou da confiabilidade histórica. Trata-se, portanto, de uma coletânea de fatos ficcionais e inverídicos (lendários) que, uma vez associados às virtudes heroicas específicas dos diferentes santos da Igreja, tinha por objetivo incrementar a devoção católica do leitor pelos santos para a sua própria santificação pessoal. Alguns deles serão publicados no blog. A excelência dos objetivos e resultados alcançados pela obra pode ser aferida pelo enorme sucesso das muitas e diversas versões e traduções realizadas desde a sua publicação original no século XIII. 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

OS QUATRO PILARES DA SANTA PACIÊNCIA

Primeiro: Devemos ter fé

Digo que a primeira coisa é possuir a iluminação da fé. Com a luz desta virtude, conseguiremos todas as outras; sem ela andaremos no escuro como um cego, para quem o dia torna-se noite. Para pessoa sem fé, tudo o que Deus faz por amor na claridade da luz, torna-se escuridão, trevas de ódio, pois a pessoa pensa que é por ódio que Deus permite os sofrimentos e as dificuldades. Vede como precisamos da luz da fé!

Segundo: Devemos pensar que tudo vem de Deus por amor

A segunda coisa é crer firmemente que Deus existe e que tudo dele procede; menos o pecado. Não vem de Deus a má vontade do pecador. O restante – quer provenha do fogo, da água, da morte ou de qualquer outra coisa – vem de Deus. Diz Jesus no evangelho que, sem a Providência Divina, não cai uma folha das árvores e diz ainda que os cabelos da nossa cabeça estão todos contados, e que nenhum deles cai sem que Deus o saiba (Mt 10,29). Ora, se Jesus fala assim a respeito das coisas materiais, com maior razão cuida de nós criaturas racionais. Em tudo o que nos manda e nos permite, Deus usa da sua providência. Tudo é feito por Deus com mistério e amor e jamais por ódio!

Terceiro: Devemos crer que até na dor Deus nos quer felizes

Ocorre entender na fé que Deus é bondade suprema e eterna, que Ele somente quer o nosso bem. O desejo de Deus é que nos santifiquemos. Tudo o que Ele nos manda ou permite tem esta finalidade. Se duvidarmos disto, erramos. Basta pensar no sangue do humilde e imaculado Cordeiro, transpassado pela lança, sofrido, atormentado. Entenderemos que o Pai eterno nos ama. Por causa do pecado, nos tínhamos tornado inimigos de Deus. Amorosamente, o Pai nos deu o Verbo, seu filho Unigênito. Este último entregou por nós a sua vida, correndo para uma vergonhosa morte na cruz. Por qual razão? Por amor a nossa salvação. Como vedes, o sangue de Jesus dissipa toda a dúvida em nós de que o Pai queira outra coisa além da nossa santificação. Aliás, como poderia Deus querer algo fora do bem? Impossível! Como poderia o supremo Bem descuidar-se de nós? Ele que nos amou antes de existirmos, Ele que por amor nos criou à sua imagem e semelhança, não poderia deixar de nos amar de prover todas as necessidades de nossa alma e do nosso corpo.

O criador sempre nos ama como criaturas suas. Somente o pecado é que Deus detesta em nós. Durante esta vida, na medida das nossas necessidades, Ele permite dificuldades quanto aos bens materiais. Como sábio médico, nos ministra o remédio de que precisa nossa enfermidade. Deus age assim para eliminar nossos defeitos aqui na terra de maneira que tenhamos que sofrer menos na vida futura ou para por à prova nossa paciência. Querendo experimentar Jó, o Senhor retirou-lhe os filhos e filhas; quanto ao corpo, mandou-lhe uma verminose e usou sua mulher para prová-lo no sofrimento, pois ela o atormentava com maldosas ofensas. Após provar a paciência de Jó, Deus restitui-lhe o dobro em tudo e Jó não reclamou. Pelo contrário, dizia: 'O Senhor me deu, o Senhor me tirou. Bendito seja o seu nome' (Jó 1,21).

Deus permite algumas vezes tais coisas, para que nos conheçamos melhor em nossa instabilidade. E para que conheçamos também a instabilidade deste mundo. Tudo o que temos – vida, saúde, esposos, filhos, riquezas, posições sociais, prazeres – tudo nos é dado por Deus como empréstimo para nosso uso. Não como propriedade. É assim que devemos tratar tais coisas. Tanto é verdade, que não podemos impedir que tais coisas nos sejam retiradas. Quanto à graça divina é diferente. Nem os demônios, nem outras criaturas e nem as perseguições conseguem retirar de nós, se não dermos nosso consentimento.

Quando uma pessoa entende qual é a perfeição da graça e qual é a imperfeição do mundo e do nosso corpo, ela deixa de valorizar os prazeres mundanos e a própria fragilidade, pois tais realidades muitas vezes ocasionam a perda da graça por causa do amor sensível. E, em sentido oposto, começa a valorizar as virtudes que são os meios para conservarmos a graça. Pois bem, tudo isso nos vem de Deus por amor, a fim de que viril e santamente preocupados nos afastemos do mundo e busquemos os bens eternos; deixemos de lado a terra com suas mazelas e procuremos ganhar o céu.

Sim; não fomos criados para nos alimentar de terra. Somos peregrinos que por aqui passamos praticando a virtude em busca do Fim. Durante a caminhada, não nos devemos deter por causa de algum prazer oferecido pelo mundo. Virilmente temos de nos apressar, olhando as coisas da vida não com desordenada alegria ou com impaciência, mas na paciência e no santo temor. O sofrimento que padeceis é de grande utilidade para vós. Deus vos oferece o modo de romper muitas amarras e de aperfeiçoar vossa consciência. Deus vos libertou e vos indicou a estrada, se é que a desejais segui-la. A vós Deus deu a vida eterna e vos convida a alcançá-la também por meio do sofrimento, a fim de que conheçais a bondade divina e os vossos defeitos, durante o restante da vossa vida.

Quarto: Devemos meditar sobre os próprios pecados

A quarta coisa necessária para se tornar paciente é esta: refletir sobre os próprios pecados e defeitos, sobre quanto já ofendemos a Deus. Ele é o Bem Infinito. Destes pecados e defeitos, grandes ou pequenos que sejam, resultaria para nós um castigo infinito. Infelizes que somos! Ofendemos nosso Criador e merecemos mil infernos. E quem é este Criador ofendido? É a bondade sem limites. E nós o que somos? Nada! O ser que temos e qualquer outro beneficio a ele acrescentado, tudo veio de Deus. Por nós mesmos, nada somos. Em tal situação, e merecendo um castigo eterno, Deus nos purifica aqui na terra. Mais ainda: se aceitamos o sofrimento purificador, alcançamos méritos. Isso não sucede na purificação da vida futura; no purgatório, a alma se purifica mas nada merece. Como nos convém, pois, tolerar com paciência estas pequenas dores agora.

Pequenas dores repito, por causa da brevidade desta existência. Aqui na terra a dimensão da dor tem a dimensão do tempo. E qual é a extensão do tempo? Assemelha-se à ponta de uma agulha. Assim sendo, a dor é pequena. O sofrimento que passou ficou para trás, não o sinto mais; o sofrimento futuro ainda não padeço e nem tenho certeza de continuar vivo. Posso morrer e não sei quando. Somente o presente existe e nada mais. Soframos, então, com alegria. Toda boa ação é remunerada. Toda culpa é punida. São Paulo afirma: 'Os sofrimentos desta vida não se comparam com a glória que receberá a alma paciente' (cf Rm 8,18).

Conclusão

Eis a maneira como podereis adquirir a virtude da perfeita paciência. Tal virtude adquirida com amor na fé vos fará tirar proveito de todo sofrimento. Em caso contrário, perdereis os bens terrenos e os celestes. Não existe outra solução. Por tal motivo, vos disse que desejava vos ver alicerçado na perfeita paciência. Rogo-vos agir assim. Lembrai-vos do sangue de Jesus Cristo Crucificado. Toda tristeza se mudará em alegria, todo peso se tornará leve. Não fiqueis a escolher tempos e lugares; contentai-vos com aquilo que Deus vos dá. Senti compaixão pelo que aconteceu. Se parecer que foi muito doloroso, tudo aconteceu pela Providência Divina e para vossa salvação. Peço-vos sejais forte e não relaxeis na suave disciplina da religião. Nada mais acrescento, a não ser que aproveiteis o tempo enquanto o temos. Permaneceis sempre no santo e doce amor de Deus. 

(Cartas de Santa Catarina de Sena)

terça-feira, 20 de junho de 2023

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XX)

 Carta Encíclica IMMORTALE DEI 

 [1⁰ de novembro de 1885]

Papa Leão XIII (1878 - 1903)

sobre a constituição cristã dos Estados


INTRODUÇÃO

A Igreja, benfeitora dos povos, acusada de estar em desacordo com os Estados

1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e impregnado os costumes públicos não somente de virtudes até então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova. Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela equidade e pela glória dos empreendimentos.

2. E, todavia, acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da sociedade civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória que, com inteira razão e por uma aspiração natural, toda sociedade bem constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como sabemos, os cristãos foram inquietados em consequência de injustos preconceitos dessa espécie, e expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do Império. Naquela época, a opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão os males que assaltavam a sociedade, ao passo que era Deus, o vingador dos crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa calúnia indignou com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi principalmente no seu livro 'Cidade de Deus' que ele pôs em luz a virtude da sabedoria cristã em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele parece haver menos advogado a causa dos cristãos de seu tempo do que alcançado um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.

3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não cessou, e muitos se comprouveram em buscar a regra da vida social fora das doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de então por diante, o “direito novo”, como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade adulta e o produto de uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte. Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o Estado, nunca se achou sistema preferível àquele que é a florescência espontânea da doutrina evangélica.

Matéria da Encíclica

Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao nosso múnus Apostólico confrontar as novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte, temos a confiança de que a verdade dissipará, por um só brilho, toda causa de erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver essas supremas regras de conduta que deve seguir e observar.

I. DOUTRINA CRISTÃ, SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS. A SOCIEDADE CIVIL

O poder público vem de Deus

4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a sociedade se a filosofia cristã governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para rege-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por consequência, tem a Deus por autor.

5. Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. 'Todo poder vem de Deus' (Rm 13,1).

6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma política; pode muito bem adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato apta à utilidade e ao bem comum.

Obrigação dos governantes

7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado devem absolutamente ter o olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e, no cumprimento do seu mandato, a Ele tomar por modelo e regra. Com efeito, assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas segundas, nas quais se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na sociedade civil, houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma imagem do poder que Ele tem sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é menos o governo de um Senhor do que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os homens e se acha unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir à vantagem de um só ou de alguns, visto haver sido constituída para o bem comum.

8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. 'Os poderosos serão poderosamente punidos' (Sb 6, 7).

Deveres dos súditos

9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária do respeito dos súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos de que a autoridade dos soberanos vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a lhes prestar obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos tem para com seus pais. 'Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados' (Rm 13,1).

10. Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda. 'Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação' (Rm 5,2). Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.

Obrigação da Sociedade para com Deus

11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente é que ela deve, sem falhar, cumprir por um culto público os numerosos e importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza e a razão impõem a cada um a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque nós dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma lei adstringem a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo, deve a sociedade dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado.

12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos, somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o homem a Deus.

II. A SOCIEDADE RELIGIOSA

A Religião de Cristo é a verdadeira

13. Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.

A Igreja recebeu a própria missão de Cristo

14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que Ele mesmo recebera de seu Pai: 'Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio' (Jo 20, 21); 'E eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos' (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus Cristo veio à terra a fim de que os homens 'tivessem a vida e a tivessem mais abundantemente' (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por limite algum nem de temo, nem de lugar: 'Pregai o Evangelho a toda criatura' (Mt 16, 15).

15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o poder de governa-los. À testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o maior seguro mestre da verdade, e a quem confiou as chaves do reino dos céus: 'Dar-te-ei as chaves do reino dos céus' (Mt 16, 19); 'Apascenta meus cordeiros… apascenta minhas ovelhas' (Jo 21, 16-17); 'Roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça' (Lc 22, 32).

Não pode estar sujeita à sociedade civil

16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade da Igreja, quer pelo fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem para atingi-lo, é sobrenatural e espiritual. Distingue-se, pois, e difere da sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância, constitui ela uma sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos necessários à sua existência e ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito o mais nobre de todos, assim também o seu poder prevalece sobre todos os outros poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder civil. Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das coisas sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como o duplo poder que dela decorre, de julgar e de punir: 'Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as nações…ensinando-as a observar tudo o que eu vos prescrevi' (Mt 28, 18-20). E ainda: 'Tende cuidado de punir toda desobediência' (2 Cor 10, 6). Ainda mais: 'Serei mais severo em virtude do poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína' (2 Cor 13, 10). À Igreja, pois, e não ao Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é que Deus deu o mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à religião; de ensinar todas as nações, de estender a tão longe quanto possível as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar livremente e a seu inteiro talante os interesses cristãos.

Sempre reivindicou sua autoridade absoluta

17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há muito tempo atacada por uma filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca cessou de reivindica-la, nem de exerce-la publicamente. Os primeiros de todos os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos príncipes da Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: 'Devemos obedecer a Deus antes que aos homens' (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja se aplicaram a defender por sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os Pontífices Romanos nunca deixaram de reivindicar com uma constância invencível contra os seus agressores.

Os governantes a reconheceram

18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o assentimento dos príncipes e dos chefes de Estados, que, nas suas negociações e transações, enviando e recebendo embaixadas e permutando outros bons ofícios, têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência soberana e legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus que essa autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor salvaguarda da sua independência.

III. RELAÇÕES ENTRE OS PODERES ECLESIÁSTICO E CIVIL

19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação iure proprio. Todavia, exercendo-se a autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma só e mesma coisa, posto que a título diferente, mas no entanto uma só e mesma coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de outro poder. Era, pois, digno da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a sua trilha e a sua relação entre si. 'Os poderes que existem foram dispostos por Deus' (Rm 13, 1). Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de funestas contenções e conflitos e muitas vezes o homem deveria hesitar, perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em consequência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele não pode sacudir. 

Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria e a bondade de Deus, que, no governo do mundo físico, todavia de ordem bem inferior, temperou tão bem umas pelas outras as forças e as causas naturais, e as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas molesta as outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende o universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo. Não se pode fazer uma justa ideia da natureza e da força dessas relações senão considerando, como dissemos, a natureza de cada um dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins, visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro proporcionar os bens celestes e eternos.

Competência respectiva de cada um. Concordatas

20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão qualquer, tudo o que é pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação ao seu fim, tudo isso é da alçada da autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às vezes, em que prevalece outros modos de assegurar a concórdia e de garantir a paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos Pontífices se põem de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias, dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto possível a indulgência e a condescendência.

IV. DOS DIREITOS E DEVERES

21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização cristã da sociedade civil, e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária, mas se deduz dos princípios mais elevados e mais certos, confirmados pela própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada que possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes. Longe de tirar o que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário, torna-os mais estáveis e mais augustos. Muito mais: se olharmos isso mais de perto, reconheceremos nessa constituição uma grande perfeição que falta nos outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os seus desvelos em cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.

Para os cidadãos

22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor, o divino e o humano são delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos cidadãos são assegurados e colocados sob a proteção das mesmas leis divinas, naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente traçados quão prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu serviço guias seguros para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la. Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes foram dados para obter e conservar a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.

Para as famílias

23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do vínculo conjugal, uno e indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são regulados com toda a justiça e equidade; a honra devida à mulher é salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus, o pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim, está perfeitamente provido para a proteção, para o bem estar e para a educação desses últimos.

Para a sociedade política

24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.

25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade mútua, a bondade, a liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e cristão, não mais rasgado em dois por obrigações contraditórias. Enfim, os bens consideráveis com que a religião cristã enriquece espontaneamente a própria vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a sociedade civil: donde ressalta a evidência destas palavras: 'A sorte do Estado depende do culto que se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco e de estrita amizade' (Sacr. Imp. Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. – Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).

Testemunho de Santo Agostinho

26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume, salientou o valor desses bens, mormente quando interpela a Igreja Católica nestes termos: 'Tu conduzes e instruis as crianças com ternura, os jovens com força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente do corpo, mas ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a sociedade da família. Dás autoridade aos maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas para seguirem as leis de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna autoridade. Unes não só em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens entre si pela lembrança dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem sobre os povos, e prescreves aos povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é que é devida a honra, a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a consolação, a quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça' (De moribus Eccl., cap. XXX, n. 63).

27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa sabedoria dos políticos filósofos: 'Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida' (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).

Confirmação da História

28. Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.

29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a supremacia da civilização, e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda parte se mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas diversas formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o alívio das misérias; é fora de toda dúvida que, assim, ela é grandemente devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas.

30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e havia razão para esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja tivesses encontrado uma docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: 'Quando o mundo é bem governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles, não somente as pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem miseravelmente' (Epist. 238).

V. PRINCÍPIOS DO DIREITO NOVO

31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses princípios modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um 'direito novo', até então desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não somente com o direito cristão, mas com o direito natural. – Eis aqui o primeiro de todos esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, ipso facto, iguais entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exerce-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteira no próprio Deus.

Dele se deriva a moderna concepção do Estado

32. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.

Situação deplorável da Igreja

33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja.

34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; decretam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja o direito de possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo de ação, fazem-no eles depender da concessão e do favor dos governantes.

35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. – Mas, como a Igreja não pode sofrê-lo pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais sagrados dos deveres, e como reclama absolutamente o cumprimento religioso da fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre o poder espiritual e o poder civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é menos provido de meios humanos ao que é mais provido. – Assim, nessa situação política que muitos favorecem hoje em dia, há uma tendência das idéias e das vontades para expulsar inteiramente a Igreja da sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. Asa leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.

VI. REFUTAÇÃO DE TAIS ERROS

A soberania do povo

36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta maneira de entender o governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para estabelecer que tudo o que há de autoridade entre os homens procede de Deus, como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à soberania do povo, que, sem levar em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no povo, se ela é eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir a segurança pública e a manutenção tranquila da ordem. De feito, sob o império dessas doutrinas, os princípios cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei imprescritível em direito político poder legitimamente levantar sedições. Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados encarregados de executar a vontade do povo: donde esta consequência necessária: que tudo pode igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer distúrbios.

A indiferença religiosa

37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome. Efetivamente, quem quer que creia em Deus, se for consequentemente e não quer cair no absurdo, deve necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os pontos mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente agradáveis a Deus.

38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males. A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar ao sabor do homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza das coisas, é imutável. Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.

A exclusão da Igreja e sua opressão pelo Estado

39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é m grande e pernicioso erro. – Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas consequências essa pretensa moral civil.

40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja de Cristo. É ela quem conserva na sua integridade os princípios de onde emanam os deveres, e quem sugerindo os mais nobres motivos de vem viver, ordena não somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da alma contrários à razão, ainda quando não se traduzem em ato.

41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu ministério é a um tempo uma grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o passo às coisas naturais sobre as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito o afluxo dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais, abre-se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as sociedades tem sido demonstrado por experiências mais do que frequentes.

Anátemas dos Pontífices

42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão considerável sobre a marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos predecessores, na plena consciência daquilo que deles reclamava o múnus apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas. Assim foi que, na sua Carta Encíclica Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é, que em matéria de religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas da própria consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e tramar revoluções no Estado. A respeito da separação da Igreja do Estado, exprime-se nestes termos esse Pontífice: 'Não podemos esperar para a Igreja e para o Estado resultados melhores das tendências dos que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos interesses religiosos e civis'. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões mais em voga, e que, em tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.

VII. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA CATÓLICA

Sobre o poder e os Estados

43. Dessas decisões dos Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito à rebelião repugna a razão; que não fazer nenhum caso dos deveres da religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é permitido nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d emitir em público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.

Sobre a autoridade da Igreja

44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja, por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja qual for dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito misto, é plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não separar um poder do outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer entre eles essa concórdia que está em harmonia com os atributos especiais por cada sociedade recebidos da sua natureza.

Sobre as formas de governo

45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos Estados. – Esses princípios e esses decretos, se se quiser julgar sãmente deles, não reprovam em si nenhuma das diferentes formas de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina católica, e, se forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade pública. Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou menor no governo; isto até, em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se não somente uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. – Demais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de uma justa tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.

Sobre a tolerância

46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, nem por isso condena os chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no Estado.

47. É, aliás, costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, 'o homem não pode crer senão querendo' (tract. XXVI in Ioan., n. 2).

Sobre a obediência às leis

48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o desgosto das mais santas leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade legítima. Isso é mais uma licença do que uma liberdade, e Santo Agostinho lhe chama mui justamente 'uma liberdade de perdição' (Epist. CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro 'um véu de maldade' (1 Pd 2, 16). Muito mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira escravidão. 'Aquele que comete o pecado é escravo do pecado' (Jo 8, 34).

Sobre a liberdade

49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem individual, não deixa o homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são os seus piores tiranos; e na ordem pública traça regras sábias aos cidadãos, facilita largamente o incremento do bem estar e preserva do arbítrio de outrem a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca cessou de lutar e de combater.

Sobre o gozo material

50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral no Estado; tudo o que é útil para proteger o povo contra a licença dos príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede as usurpações injustas do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo isso a Igreja Católica sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer a proteção, como atestam os monumentos das idades precedentes. Sempre coerente consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma liberdade imoderada que, para os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em escravidão, de outra parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um encaminhamento para a vida futura e para sempre duradoura. 

Assim, pois, dizer que a Igreja vê com maus olhos as formas mais modernas dos sistemas políticos e repele em bloco todas as descobertas do gênio contemporâneo, é uma calúnia vã e sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs, reprova a inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas predisposições dos espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus; mas, como tudo o que é verdadeiro não pode proceder senão de Deus, em tudo o que as investigações do espírito humano descobrem de verdade, a Igreja reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há muitas que a confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a conhecer e a louvar ao próprio Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e com alegria tudo o que contribuir para alargar a esfera das ciências; e, assim como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e incentivará aquelas que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações que tem por fim o prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda espécie de artes e indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do homem não o desviem de Deus e dos bens celestes.

O Papa deve ensinar a doutrina verdadeira

51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é desacreditada nestes tempos em que os Estados não somente recusam conformar-se aos princípios da filosofia cristã, mas parecem querer afastar-se dela cada dia mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao longe e penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela consciência das altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que estamos investidos para com todos os povos, livremente proclamamos, consoante o nosso dever, a verdade, não porque não levemos em nenhuma conta os tempos, ou julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da nossa idade; mas porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos perigosos e repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade legítima dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e a melhor salvaguarda: 'A verdade vos libertará' (Jo 7, 32).

Os católicos devem aceitá-la e praticá-la

52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem, como é seu dever, saberão exatamente quais são os deveres de cada um na teoria como na prática. Na teoria, primeiro, é necessário ater-se com decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso profissão pública. Particularmente no que diz respeito às 'liberdades modernas', como lhes chamam, deve cada um ater-se ao julgamento da Sé Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de se deixar enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que fontes elas emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência já tem feito suficientemente conhecer os resultados que elas têm tido para a sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado inspiram com toda razão pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo pensamento se imaginar um Estado que persiga desfaçada e tiranicamente o nome cristão, e se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.

VIII. CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DESTAS DOUTRINAS

53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e domésticos, já nos negócios públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de cada um é de conformar exatamente a própria vida e os próprios costumes aos preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã impõe de um pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como sua Mãe comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os direitos, e tomar cuidado de que aqueles sobre os quais exercem alguma autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade filial.

Na vida pública

54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem sensatamente o seu concurso à administração dos negócios municipais e se apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade pública atenda à educação religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende sobretudo a salvação da sociedade. – Será geralmente útil e louvável que os católicos estendam a sua ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se cheguem aos grandes cargos do Estado. Geralmente, dizemos, porque aqui os nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode suceder algures que, por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja conveniente participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina que professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda integridade e consciência. Abstendo-se eles, as rédeas do governo passarão sem contestação às mãos daqueles cujas opiniões certamente não oferecem grande esperança de salvação para o Estado.

Exemplo dos primeiros cristãos

55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os inimigos da Igreja teriam todo o poder e os defensores dela, nenhum. Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos para participar da vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas, mas para tirar dessas próprias instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e verdadeiro, propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue reparador, a virtude e a influência da religião católica.

56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais distanciado das máximas e costumes do Evangelho do que as máximas e costumes dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos, incorruptíveis em plena superstição e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em toda parte onde se abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam de toda parte um maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a seus irmãos e por atrair os outros a seguirem Nosso Senhor, dispostos entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não pudessem, sem vulnerara sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos militares. Destarte, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs não somente nos lares domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no palácio imperial. 'Somos apenas de ontem, e já enchemos tudo o que é vosso, vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios, vossos conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum' (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi permitido professar publicamente o Evangelho, a fé cristã apareceu em grande número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de vigor.

Hoje devemos imitá-los

57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos de nossos pais. Antes de tudo, é necessário que todos os católicos dignos deste nome se determinem a ser e mostrar-se filhos dedicados da Igreja; que repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa profissão; que se sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência, em proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não exceda o limite traçado pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir toda constituição pública a essa forma cristã que havemos proposto para modelo.

Concórdia e obediência ao Papa e aos Bispos

58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar esses dados, visto dever ele convir a lugares e a tempos mui dispares entre si. Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a concórdia das vontades e tender à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo resultado se cada um tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência aos bispos, que 'o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus' (At 20, 28). A defesa do nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às doutrinas ensinadas pela Igreja seja da parte de todos unânime e constante, e, por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer que seja, de conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que comporta a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente, será lícito discutir com moderação e no intuito de procurar a verdade, mas pondo de lado as suspeitas injustas e as acusações recíprocas.

Limites da liberdade de opinião

59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída por acusações temerárias, eis aqui o que todos devem admitir: a profissão íntegra da fé católica absolutamente incompatível com as opiniões que se aproximam do 'racionalismo' e do 'naturalismo', e cujo capital é destruir completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade do homem em lugar da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja na vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de negócios afastar-se da virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas, do melhor gênero de governo, de tal ou tal sistema de administração civil, divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois, que se criminem homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente sobre os pontos em questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a fé ou acusá-los de traí-la, como mais de uma vez o havemos lamentado. – Seja esta lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para os jornalistas.

Esquecimentos de discórdias e contendas

60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve deixar lugar algum às dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num acordo unânime dos espíritos e dos corações, todos devem perseguir o escopo comum, que é salvar os grandes interesses da religião e da sociedade. Se, pois, no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num sincero esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual for o culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por um comum assalto de deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os católicos duas vantagens importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem o serviço mais assinalado à sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más doutrinas e pelas más paixões.

CONCLUSÃO

61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as nações do orbe católico sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres privados dos súditos. Resta-nos implorar por ardentes preces o socorro celeste, e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingir ao termo desejado todos os nossos desejos e todos os nossos esforços para a sua glória e para a salvação do gênero humano, Ele que é somente quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações dos homens. Como penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal benevolência, damo-vos na caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a vós e bem como ao clero e ao povo inteiro confiado à vossa guarda e à vossa vigilância, a Benção Apostólica.