quinta-feira, 17 de novembro de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXIII)

Hoje - um hoje nos tempos - será o meu último dia sobre a terra. O hoje que não vai ter amanhã para mim. O hoje que será o primeiro dia da eternidade, que vai ter começo neste hoje e não terá fim jamais. Um hoje que me faz órfão do mundo e cidadão da vida eterna. Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus.

Assim rezava e assim refletia um velho lenhador, de mente ainda muito lúcida apesar dos anos avançados. Sentado num banco rústico à porta da sua humilde morada, em lugar ermo e praticamente abandonado pela outrora ativa vizinhança, olhava a paisagem tão conhecida de árvores e campos, de céu e terra, de nuvens e pedras. Sabia de cor cada desvão de caminho, cada trilha daquelas matas, cada lugar de feliz descanso e calmaria, cada vertente de mirante singular. Havia sido passo e contrapasso por tantas labutas, na lida diária e contínua de buscar madeira de qualidade, tornear bancos e mesas, viver pelo pão sagrado de cada dia.

Havia sido uma criança feliz nos tempos do nada; um jovem vigoroso de alma lavada; um homem forjado na robustez de um carvalho. Celina tinha sido - e ainda era - o amor pelas coisas humanas, a alma gêmea que não havia vingado porque o mundo dela tinha assumido dimensões maiores do que os seus. E, como ela, tantos outros partiram ou morreram, fizeram escolhas de vida, fizeram crescer os sonhos além do domínio dos olhos. E ele ficara, como um eremita à beira de um caminho que, com o passar do tempo, tornou-se apenas eremita dos próprios e tão bem conhecidos caminhos de si mesmo.

Sol ou chuva, não importava. Mudava tão somente o trabalho cotidiano de ir até a mata em busca da madeira ou, no pequeno anexo da casa à guisa de oficina, moldar a madeira como peças de móveis. E, uma vez por semana, entregar a mercadoria ao comprador de sempre, pelo preço de sempre, que sempre vinha até ali para levar as peças previamente encomendadas e lhe trazer o sustento necessário. O preparo das refeições, a limpeza da pequena morada, as orações da noite... Tudo fluía como o riacho no talvegue do vale; tudo se passava como uma história de vida sem grandes atrativos ou mudanças. Um tesouro de graças aparentemente escondido: uma vida humana não vale muito mais do que todos os lírios do campo ou a vida de muitos pardais?

Mas agora o hoje que não tem amanhã, que sempre pode ser agora, parecia muito perto de ser a qualquer hora. Os arranjos práticos já estavam bastante preparados: o caixão simples de madeira, a campa final, a doação das ferramentas e acessórios, o abandono da morada... Queria apenas fazer mais do que não fazem quase sempre os homens de sempre: aproveitar o tempo das últimas miragens para pensar nos amanhãs sem fim: 'Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus'. 

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)