XXXVII
DA AMIZADE — VÍCIOS OPOSTOS: DESPREZO E ADULAÇÃO
Existe algum outro dever moral necessário para a pacífica convivência, ainda que não seja tão necessário como a vindicta, a gratidão e a bondade?
Sim, Senhor; os deveres da amizade (CXIV, 2)*.
Que entendeis por amizade?
A virtude que nos impele a por em nossas palavras e ações exteriores quanto possa contribuir para fazer amável e prazenteiro o trato com os nossos semelhantes (CXIV, 1).
É virtude de grande estima no trato social?
É a virtude social por excelência, ao ponto de podermos chamar-lhe a flor e aroma das virtudes da justiça e da caridade.
De quantas maneiras se pode faltar a ela?
De duas: por defeito, quando não se repara nem se toma em conta o que pode agradar ou molestar ao próximo; por excesso, adulando-o ou não o contradizendo, oportunamente, quando o mereçam as suas palavras e atos (CXV, CXVI).
XXXVIII
DA LIBERALIDADE — VÍCIOS OPOSTOS: AVAREZA E PRODIGALIDADE
Qual é a última virtude conexa à virtude da justiça particular e destinada, como as anteriores, a satisfazer as obrigações morais dos homens uns para com outros?
A virtude da liberalidade (CXVII, 5).
Que entendeis por liberalidade?
Uma disposição de ânimo, em virtude da qual o homem não tem apego excessivo às coisas exteriores de utilidade comum, e está disposto sempre, com regra e medida, a desprender-se delas e especialmente do dinheiro que as representa, em bem da sociedade (CXVII, 1-4).
É virtude de grande importância?
Classificando-a pelo seu objeto, que são as riquezas, é a ínfima das virtudes, mas dignifica-se com a nobreza das outras quando contribui para que consigam os seus respectivos fins (CXVII, 6).
Que vícios se lhe opõem?
Os de avareza e prodigalidade (CXVIII, CXIX).
Que entendeis por avareza?
O amor desordenado às riquezas (CXVIII, 1-2).
É pecado grave?
Atendendo ao fim humano a que se propõe, é pecado ínfimo, porque se limita a introduzir a desordem no amor aos bens exteriores ou riquezas; porém, considerando a desproporção existente entre o espírito e os bens materiais de que se faz escravo, é o vício mais degradante e vergonhoso (CXVIII, 4,5).
É, além disso, vício muito pernicioso?
Sim, Senhor; porque é insaciável e, com o afã de amontoar riquezas, o avarento não se detém às vezes em cometer crimes e atropelos contra Deus, contra o próximo e contra si mesmo (CXVIII, 5).
É a avareza pecado capital?
Sim, Senhor; porque a abundância das riquezas, às quais todos obedecem, promete o que todos os homens desejam - a felicidade, e serve de estímulo a todas as suas ações boas e más (CXVIII, 7).
Quais são as filhas que a avareza tem?
As seguintes: avareza ou falta de misericórdia e compaixão, inquietação, violência, astúcia ou dolo, perjúrio, fraude e traição, porque o amor das riquezas leva consigo o afã de retê-las, a cobiça de aumentá-las e o emprego de meios ilícitos, como a violência, o engano, o perjúrio, a fraude e a traição, para adquiri-las (CXVIII, 8).
A prodigalidade, vício contrário à liberalidade, opõe-se também à avareza?
Sim, Senhor; porque se o avarento, por amor desmedido das riquezas, não está disposto a desprender-se delas para que frutifiquem em bem e proveito de todos, o pródigo, pelo contrário, não sabe olhar convenientemente por elas e tem propensão excessiva para dissipá-las (CXIX, 3).
Qual é destes dois vícios o mais pernicioso?
O da avareza, porque se opõe mais diretamente à liberalidade, cuja norma é: melhor é dar do que guardar.
Poderíeis fazer um resumo do número, ordem e nobreza das virtudes agregadas à justiça particular, tendendo aos seus objetos e fins?
Sim, Senhor. Ocupa o primeiro lugar a religião, que tem por objeto o culto e serviço de Deus, considerado como Criador e Soberano Dominador de todas as coisas; vem depois a piedade para com os pais e para com a pátria, em agradecimento pelo benefício de nos terem dado o ser; a seguir, a observância para com os superiores em autoridade, dignidade e excelência; em continuação, a gratidão para com os benfeitores particulares, e a vindicta contra os que nos agravaram em matéria que exija reparação; por último, a verdade, a amizade e a liberalidade para com todos os nossos semelhantes por motivo de respeito a nós mesmos.
XXXIX
DA EQUIDADE NATURAL OU EPIQUEIA
Não dissestes que existia também uma virtude anexa à Justiça geral ou legal?
Sim, Senhor; a que poderemos chamar com o nome genérico de equidade natural, conhecida também com o de epiqueia (CXX).
Qual é o seu objeto?
O de conferir à vontade o privilégio e o desejo de distribuir a Justiça em contraposição ou à margem das leis, quando a razão natural ou a luz dos primeiros princípios de caridade declaram inaplicável a lei escrita ou consuetudinária (CXX, 1).
Tem grande importância esta virtude?
Ela está à frente e, de certo modo, governa e mantém em sua própria esfera todas as que são destinadas a dirigir e consolidar as relações sociais (CXX, 2).
XL
DO DOM DE PIEDADE CORRESPONDENTE À JUSTIÇA
Qual dos dons do Espírito Santo corresponde à justiça ?
O dom de piedade (CXXI).
Em que consiste o dom de piedade?
Em certa preparação habitual da vontade que dispõe o homem para receber uma moção direta e pessoal do Espírito Santo, que o impele a tratar com Deus na ordem sobrenatural, como com um pai a quem com ternura se ama, reverencia e obedece, e com todas as criaturas racionais, como filhas de Deus e membros da grande família divina (CXXI, 1).
Logo, o dom da piedade põe o último e mais delicado toque nas relações do homem com Deus e com os seus semelhantes?
Sim, Senhor; é o complemento da virtude da Justiça e de todas as suas agregadas, e se os homens, correspondendo à moção do Espírito de Deus, o reduzissem à prática, o gênero humano se converteria em uma grande família divina, imagem fiel da que reina no céu.
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)