quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

... E A QUEDA

Os homens poderiam continuar para sempre na bem aventurada e única verdadeira vida dos santos no paraíso. Como a vontade do homem poderia, porém, voltar-se para vários caminhos, Deus assegurou-lhes esta graça que lhes havia concedido condicionando-a desde o início a duas coisas. Se eles guardassem a graça e retivessem o amor de sua inocência original, então a vida do paraíso seria sua, sem tristeza, dor ou cuidados, e após ela haveria a certeza da imortalidade no céu. Mas se eles se desviassem do caminho e se tornassem vis, desprezando seu direito natal à beleza, então viriam a cair sob a lei natural da morte e viveriam não mais no paraíso, mas, morrendo fora dele, continuariam na morte e na corrupção. 

Isto é o que a Sagrada Escritura nos ensina, ao proclamar a ordem de Deus: 'podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente' (Gn 2, 16-17). Certamente havereis de morrer, isto é, não apenas morrereis, mas permanecereis no estado de morte e corrupção.

Estarás talvez a divagar por que motivo estamos discutindo a origem do homem se nos propusemos a falar sobre o Verbo que se fez homem. O primeiro assunto é de importância para o último por este motivo: foi justamente o nosso lamentável estado que fez com que o Verbo se rebaixasse, foi nossa transgressão que tocou o seu amor por nós. Pois Deus havia feito o homem daquela maneira e havia querido que ele permanecesse na incorrupção.

Os homens, porém, tendo voltado da contemplação de Deus para o mal que eles próprios inventaram, caíram inevitavelmente sob a lei da morte. Em vez de permanecerem no estado em que Deus os havia criado, entraram em um processo de uma completa degeneração e a morte os tomou inteiramente sob o seu domínio. Pois a transgressão do mandamento os estava fazendo retornarem ao que eles eram segundo a sua natureza e, assim como no início eles haviam sido trazidos ao ser a partir da não existência, passaram a trilhar, pela degeneração, o caminho de volta para a não existência. 

A presença e o amor do Verbo os havia chamado ao ser; inevitavelmente, então, quando eles perderam o conhecimento de Deus, juntamente com este eles perderam também a sua existência. Pois é somente Deus que existe, o mal é o não-ser, a negação e a antítese do bem. Pela natureza, de fato, o homem é mortal, já que ele foi feito do nada; mas ele traz também consigo a semelhança dAquele Que É, e se ele preservar esta semelhança através da contemplação constante, então sua natureza seria despojada de seu poder e ele permaneceria indegenerescente. De fato, é isto o que vemos escrito no Livro da Sabedoria: 'A observância de suas leis é a garantia da imortalidade' (Sb 6, 18). E, incorrompido, o homem seria como Deus, conforme o diz a própria Escritura, onde afirma: Eu disse: 'Sois deuses, e todos filhos do Altíssimo. Mas vós como homens morrereis, caireis como um príncipe qualquer' (Sl 81, 6).

Esta, portanto, era a condição do homem. Deus não apenas o havia feito do nada, mas também lhe tinha graciosamente concedido a sua própria vida pela graça do Verbo. Os homens, porém, voltando-se das coisas eternas para as coisas corruptíveis, pelo conselho do demônio, tornaram-se a causa de sua própria degeneração para a morte, porque, conforme dissemos antes, embora eles fossem por natureza sujeitos à corrupção, a graça de sua união com o Verbo os tornava capazes de escapar na lei natural, desde que eles retivessem a beleza da inocência com a qual haviam sido criados. Isto é o mesmo que dizer que a presença do Verbo junto a eles lhes fazia de escudo, protegendo-os até mesmo da degeneração natural, conforme também o diz o Livro da Sabedoria: 'Deus criou o homem para a imortalidade e como uma imagem de sua própria eternidade mas, pela inveja do demônio, entrou no mundo a morte' (Sb 2, 23).

Quando isto aconteceu, os homens começaram a morrer e a corrupção correu solta entre eles, tomou poder sobre os mesmos até mais do que seria de se esperar pela natureza, sendo esta a penalidade sobre a qual Deus os havia avisado prevenindo-os acerca da transgressão do mandamento. Na verdade, em seus pecados os homens superaram todos os limites. No início inventaram a maldade; envolvendo-se desta maneira na morte e na corrupção, passaram a caminhar gradualmente de mal a pior, não se detendo em nenhum grau de malícia, mas, como se estivessem dominados por uma insaciável apetite, continuamente inventando novos tipos de pecados. 

Os adultérios e os roubos se espalharam por todos os lugares os assassinatos e as rapinas encheram a terra, a lei foi desrespeitada para dar lugar à corrupção e à injustiça, todos os tipos de iniquidades foram praticados por todos, tanto individualmente como em comum. Cidades fizeram guerra contra cidades, nações se levantaram contra nações, e toda a terra se viu repleta de divisões e lutas, enquanto cada um porfiava em superar o outro em malícia. Até os crimes contrários à natureza não foram desconhecidos, conforme no-lo diz o apóstolo mártir de Cristo: 'suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza; e os homens também, deixando o uso natural da mulher, arderam nos seus desejos um para com o outro, cometendo atos vergonhosos com o seu próprio sexo, e recebendo em suas próprias pessoas a recompensa devida pela sua perversidade' (Rm 1, 26-27).

(Excertos da obra 'A criação e a Queda' de Santo Atanásio)