sábado, 4 de julho de 2015

CARTAS A MEU PAI (VI)

Pai:

A.F. me perguntou hoje, ainda muito cedo, como pode uma alma serena e devota caminhar nesse mundo sem se consumir na lama do pecado ou não se desesperar diante da avalanche de tanta maldade. E começou a desfilar uma série de males e misérias humanas, que entorpecem o amor e a caridade, nivelam os homens a bestas enlouquecidas de ódio, que achincalham a religião, a família, os sacramentos, a Igreja, os valores cristãos...

Que tudo isso constitui milhões de novas cruzes, que submetem Jesus Crucificado a uma sempre renovada e interminável agonia crudelíssima, é infelizmente óbvio e terrível. Que os Céus se inclinam até a terra, dilacerados pela dor e pelo sofrimento, também é verdade. Como é verdade que a natureza inteira geme os estertores de tanta loucura humana, no assédio cada vez mais brutal de se acorrentar às hostes diabólicas para perpetrar crimes e horrores ainda mais dantescos.

Mas - respondi a A.F. - mas, no meio de tanta lama e enxofre, o bem persiste. Pode ser por meio de uma palavra, um gesto, uma oração, um não. Mas o bem resiste, sem alarde, sem holofotes, sem manchetes, sem escândalo. O bem persiste em alguma oração em família, num banco de igreja, num gesto anônimo de caridade, num acolhimento sem a contrapartida prévia da gratidão. O bem sopra num confessionário, em tantas santas comunhões, nos joelhos entorpecidos pela resina dos tempos e pela perseverança do amor. O bem existe na paciência dos santos, nas finezas do coração, na fidelidade dos cônjuges, nas famílias que compartilham juntas os fardos da caminhada. O bem existe e se multiplica na aceitação do sofrimento, na entrega profunda aos ditames da santa vontade de Deus, na vida tangida a cada dia pela santificação desta vida...

E, como o lírio entre os abrolhos, a semente de trigo em meio ao joio, é fermento na massa insossa, é sal da terra e luz do mundo. É este bem que deve animar a nossa alma tão desafeta a este oceano de escuridão. Não é o bem meramente a ser buscado; não é a virtude a ser encimada sobre o altar dos louvores humanos; não é a retórica do exemplo, do bom exemplo. O bem que persiste, que existe e que resiste na podridão do mundo é o bem que nasce de um gesto seu de simplesmente querer fazer o bem. É esse bem - infinitamente belo - que ilumina a terra e sustenta os pilares dos Céus, que santifica a cristandade e retém a ira e a sentença do Criador. 

Não tenha os olhos voltados para as trevas que nos cercam; o que adianta poder ver através de uma densa escuridão? Inquietar-se pela mísera condição humana arrastada pela vertigem dos ímpios? O mal está ali, lá, acolá e mais além? Então, temos muito o que fazer, levar a Cristo a muitos lugares, redefinir os horizontes do mal a limites cada vez mais estreitos e limitados. E, para isso, temos de começar aqui e não lá. Sim, aqui, do seu, do meu lugar ... do metro quadrado que me pertence agora como meu lugar no mundo. Nesse metro quadrado, o bem existe, persiste, resiste. Pode ser por meio de um bom pensamento, uma oração silenciosa, um bom dia talvez... de você, de mim, de milhares de homens fieis ao Senhor e, assim, o bem com o bem se faz caminho para um povo santo em marcha para o Pai. Quem nos poderá afastar do amor de Deus? A.F.,meu caro amigo, lembra da semente de mostarda? O que parece ser nada só vai parar, então, quando tiver o tamanho do mundo... E aí o bem triunfará aqui, ali, lá, acolá, mais além e até os confins da terra!

R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).