quarta-feira, 27 de agosto de 2014

POEMAS PARA REZAR (XV)



ROMANCE DAS IGREJAS DE MINAS

'Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando nas igrejas
Da cidade e do sertão
O gênio das Minas Gerais
Que marcou estas paragens,
Estas sombras benfazejas,
Estas frescas paisagens,
Estes ares salutares,
Lavados, finos, porosos,
Minerais essenciais,
Este silêncio e sossego,
Estas montanhas severas,
Esta antiga solidão,
Com o sinal do seu lirismo,
Com a cruz da sua paixão.

Templos de Minas Gerais.
Das cidades e arraiais,
Templos em pedra-sabão
De Sabará e Mariana,
De Ouro Preto, de Ouro Branco,
De Brumado a Catas Altas,
De Santa Rita Durão,
Santa Bárbara, Congonhas,
Cachoeira, São João del Rei,
Tiradentes, Caeté:
Quantas vezes meditei
Os novíssimos do homem,
Que o século não consome
Nem a ciência destrói,
Nesses templos soberanos,
De riscos audaciosos,
De curvas acentuadas,
De linhas voluptuosas,
Íntimos, doces, profanos,
Refinados, populares,
Que inspiram poesia e dó,
Nesses Carmos e Pilares,
Nesses Rosários e Dores,
Nesses Perdões e Mercês,
Em São Francisco de Assis,
Em Nossa Senhora do Ó!
Em capelinhas caiadas
Na colina levantadas,
Vestidas de branco e azul.

Minha alma desce ladeiras,
Minha alma sobe ladeiras,
Desce becos, sobe vielas
Com uma candeia na mão,
Procurando a forma altiva
Da cruz, viva tradição,
Pedra de ângulo, base
Da rude religião.
Diviso lívidos Cristos,
Diviso Cristos sangrentos,
Monumentos de terror,
O Cristo da Pedra Fria,
O Senhor da Cana Verde,
O Cristo atado à coluna,
O Senhor morto esticado
Envolto em roxo sudário
Debaixo do próprio altar.
Vejo agora mãos chagadas,
Nossa Senhora de espadas
Cravadas no coração,
Coroas de espinhos, vasos
Por onde escorreu o fel,
Tíbias, caveiras coroadas,
Pinturas já desmaiadas
Nas telas emolduradas
Em forma de medalhão,
Figurando o Paraíso,
A Trindade, a Anunciação,
O Lava-pés, o Batismo,
A Morte e a Ressurreição.

Relicários, oratórios,
Pelicanos de coral,
Sinistro baixo-relevo
Das almas do Purgatório
Libertas por São Miguel,
Longas lanças de Longuinho,
Atlantes do Aleijadinho,
Portas, púlpitos, profetas
Marcados por seu cinzel,
Redondos anjos barrocos
Que o toreuta retorceu,
Arabescos sensuais,
Apóstolos duros, secos,
Peregrinos medievais
Revestidos de amplos sacos,
Marchando com seu bastão;
Calvários extraordinários,
Tarja com estrelas e asas,
Tocheiros, lâmpadas, lustres,
Galerias, balaústres,
Grades em jacarandá,
Querubins, anjos-aurora
De estranhos panejamentos,
Com as asas espalmadas,
Lavabos de sacristias
Feitos de pedra-sabão,
Tetos altos do Ataíde
Exaltando a religião.

Paredes em faiscado,
Consistórios, corredores
Onde vagueiam fantasmas
De poetas inconfidentes,
De frades conspiradores;
Oleogravuras mostrando
A Via-Sacra da Paixão,
Carátulas, gárgulas negras,
Colunas tremidas, gregas,
Caixas pedindo dinheiro
Em antiquados letreiros
De oremus e ora pro nobis,
Ex-votos comemorando
Curas por intercessão:
E a nobre talha dourada,
Patinada, trabalhada,
As imagens ressaltando
De nossos oragos, tantos
Santos de esgarçados mantos,
De arbitrárias cabeleiras,
Roxas, pisadas olheiras,
Os membros caídos, feridos,
Desfeitos, desmilinguidos,
Contemplando comovidos
O descimento da cruz.

Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Ilumina embevecida
Seus santos de devoção,
Companheiros vigilantes
Da cruz da sua paixão,
Que deu corpo, força e vida
Aos templos de pedra-sabão:
São Pedro, Santo Isidoro,
São Gregório, São Leão,
Santa Bárbara, São Jerônimo,
São Paulo, Santa Juliana,
Sant'Ana, São Sebastião,
Santa Águeda, Santa Mônica,
São José, Santa Verônica,
São Francisco, Santa Clara,
São Policarpo, São João.
A igreja agora agasalha
Uma densa multidão
Que procura comovida
Nos mistérios redivivos
Da nossa religião
Novo alento, luz e vida,
Sustento, consolação.
Sinos de bronze ressoam,
Ressoam sonoros sinos:
Vejo figuras de orantes,
Orantes e comungantes
Com os abraços estendidos
Orando íntima oração.

Assim se vê nas pinturas
Das antigas catacumbas,
Nos mosaicos bizantinos,
Mulheres, moços, meninos,
Catecúmenos, anciãos,
Assim oravam outrora
Os primitivos cristãos.
Vejo beatos sofredores
Trazendo bentinhos, fitas,
Rezando gastos rosários,
De olhos fixados no céu,
Velhas bíblicas, severas,
Nos ombros escapulários,
Perfil talhado a formão,
Muitas vestem à maneira
De senhoras de outras eras
Com filó preto, fichu,
Dona Engrácia, Dona Urbana,
Don'Ana, Dona Juju;
Irmãos da santa Irmandade
Encostados às paredes,
Pensando na procissão,
Vaidosos nas opas verdes,
Vermelhas, brancas, violetas;
Pretos de vela na mão,
Pretinhas de laçarotes,
Rapazes em seus capotes
Cor de cinza e vermelhão,
Garotinhos retorcidos
Descendentes dos garotos
Que inspiraram o Aleijadinho
Nos anjos do medalhão.
A grande ação começou:
A sublime teologia
Revela a sabedoria
Do sacrifício inefável,
Do mistério universal
De que todos participam
Na terra, no ar, no céu,
Unidos na comunhão.

Do Deus eterno, uno e trino,
De um só e mesmo batismo,
Uma só fé, um só pão.
Vozes ascendem aos ares
Que desprezam o cantochão,
Rompe um canto pela nave
A Santa Maria Eterna,
Um canto sentimental
Que ofende a liturgia,
Fonte viva, genuína,
Da santa religião,
Mas que toca a alma ingênua
Do povo rústico e chão.
Agora um baixo-profundo
Canta um hino de paixão,
Esconjura o diabo imundo,
Clama os pecados do mundo
Em longa lamentação,
Chorando com gravidade,
Chorando oculto nas grades
As saudades de Sião.

Mas chega a missa ao momento
De maior concentração,
Surdo silêncio se faz.
Abre-se agora o sacrário,
No seu recesso repousa
O Cristo em sua nova lei,
Já que o antigo documento
Cede ao novo testamento,
Cede ao novo mandamento,
Mistério de caridade.
Mistério de santidade
E total despojamento
O sacramento do altar,
Ação da Comunidade,
Saúde, força, sustento,
Ante o qual todo elemento
Se inclina para adorar.

O celebrante apresenta
À Santíssima Trindade,
Em nome da humanidade,
Ao Pai eterno clemente,
Ao Filho, Verbo humanado,
Ao Espírito Divino,
Unidos na caridade
Por um nó que não desata,
O corpo de Nosso Senhor
Na santa cruz imolado,
Vencendo assim o pecado
Pela presteza do amor.
O Cristo, homem compassivo,
Deus trasladado do Céu,
Transferido à dura terra,
Solidário na sua dor,
Se reparte nos fiéis
Que traçam cruzes nos ares
Relembrando a salvação,
Curvando-se ante os altares
Onde se aprende, esculpida,
Em silêncio oferecida,
Na talha e pedra-sabão,
Ao culto do Deus criador,
A história da Encarnação,
Paixão e Ressurreição
De Cristo Nosso Senhor.
Murmuram o Agnus Dei.

O celebrante despede
O povo, 'Ite missa est',
Para este cumprir na rua
O que no templo aprendeu,
Depois lê meio apressado
O evangelho de São João,
Cosmogonia do Verbo;
E afinal com o povo todo
Recita a Salve-Rainha,
Santa e solene oração.
Senhora benigna e pura,
Mãe de esperança e doçura
A quem todos nós bradamos,
Gememos e suspiramos
Neste desterro do céu,
Os olhos consoladores,
Clementes, a nós volvei,
Vossos filhos pecadores,
E mais tarde nos mostrai,
Espelho de todo o bem,
Depois de serena morte,
A face do Cristo, amém.
A multidão se dispersa
Nos seus trajos domingueiros,
Cada um retorna ao lar.

Minha alma sobe ladeiras
De Ouro Preto e Mariana,
De Sabará e São João,
Evoca no ar lavado
O drama da Redenção.
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando comovida,
A cruz da sua paixão,
Que deu corpo, alento e vida
Aos templos de pedra-sabão.
Por isso escrevi um canto
Com palavras essenciais,
Baseado na beleza
Da antiga Minas Gerais,
Inspirado na grandeza
Da rude religião,
Princípio e fim da existência,
Essência da perfeição,
Origem de todo o bem,
Penhor de ressurreição,
Doutrina de vida inteira,
Em louvor do Cristo, amém.'

(Murilo Mendes)