sábado, 25 de maio de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (VIII)

O Padre Jonas não se sentia nada satisfeito naquela paróquia minúscula no fim do mundo. Nada daquilo batia com as suas pretensões e anseios do seminário. Rezara a sua primeira missa há coisa de menos de um ano e viera para aquela vila para iniciar a sua caminhada pela salvação das almas. E Deus não teria pra ele maiores desígnios? Afastou o mau pensamento que não lhe era peculiar, mas a insatisfação o perseguia no trajeto até a fazenda de Zé Miguel, afastada da vila. Lembrou-se do homenzarrão, velho fazendeiro, chamado quase sempre por Miguelão. A sua fazenda podia ser avistada de longe, no final da trilha sinuosa da estrada cortando a planície de planura quase indivisível. Era a sua segunda vinda à fazenda, naquele março final das temporadas de chuvas. 

Ah, meu São José! O que tinha sido aquilo? A chuva não tinha sido nada demais, mas e a ventania? O ar enraivecido e em turbilhão frenético passara zumbindo pelas janelas da casa paroquial como um furacão de outros mundos, para arrebentar por completo o telhado da Igreja de Nossa Senhora das Graças, no alto da pequena colina, uns cem metros acima da casa paroquial. O que tinha sido aquilo? Nem uma telha fora do lugar na casa paroquial ou em qualquer outra casa da vila, mas um desastre completo na igreja. Aceitara sem maiores delongas a explicação, pelos 'ventos altos' que atingiram apenas as partes elevadas da vila, que se limitavam à pequena colina da igreja e a cumeada alongada da fazenda dos Bartos. Mas, e a preservação quase milagrosa só do altar e da imagem de Nossa Senhora?

O velho Barto, homem de posses mais avantajadas de toda a região, perdera tudo: a casa, o celeiro, o curral, o pomar, a plantação. O padre acabara de ver o cenário de guerra do que antes certamente deveria ter sido o paraíso; a fúria do vendaval parecia ter concentrado todas as suas forças em destruir aquele local e transformar todo o trabalho humano de uma geração em pó e escombros. E, além dali, só a igreja. Que coisa mais estranha... O Padre Jonas olhava agora o horizonte desenhado à sua frente, sob o céu ainda nublado, e como a paisagem era diferente: nenhuma destruição, nenhum sinal da fúria da natureza; coisa dos 'ventos altos' sem dúvida.

Miguelão estava de pé, à sua espera, ao abrigo da varanda espaçosa da casa. Não era um homem religioso, disso sabia o padre que viera da primeira vez para convidá-los à igreja, sem qualquer retorno. Mas era preciso tentar fazer a enorme tarefa que lhe havia caído em mãos: reconstruir a igreja da vila. Encostou o carro evitando o gramado bem cuidado, cumprimentou o fazendeiro e a mulher, agradeceu o café oferecido e foi direto ao assunto, explicando os acontecimentos da noite anterior, os 'ventos altos', a destruição da igreja, a necessidade de reconstrução, o pedido de ajuda. Contou que nada tinha acontecido na vila, mas que estava vindo da fazenda dos Bartos e que a mesma tinha sido totalmente destruída, até o ponto de não sobrar coisa alguma e como o desespero tomara conta da família mais abastada da região...

'E a imagem de Nossa Senhora das Graças?' a pergunta irrompeu do velho fazendeiro, enquanto a sua mulher levava a mão à boca assustada e tremendo. O padre ficou por instantes emudecido, diante da pergunta inesperada e algo descontextualizada da realidade dos fatos. 

'A imagem foi preservada integralmente, assim como o altar; foram as únicas coisas que restaram da igreja.' O padre notou a profunda emoção que envolveu o homem. ' Mas por que o senhor fez essa pergunta?'

O velho fazendeiro apoiou-se melhor na cadeira, olhou para a mulher em palpos de aflição, e respondeu, com voz pausada e tomada de emoção:

'Padre, há 40 anos, eu e o Bartolomeu, que todos chamam Barto, disputamos a ferro e a fogo a posse das terras da colina da Fazenda das Missões. Eram as melhores terras da região, terras de ninguém, e que tinham sido transferidas em data remota ao povo da vila com o objetivo de se construir lá, no terreno mais alto, uma igreja dedicada à Nossa Senhora das Graças. Mas eu as queria para mim e Barto ainda mais do que eu. E as disputamos por meses, com intrigas e todas as maquinações possíveis, ludibriando o bom e velho pároco local, o padre Amâncio, com promessas e concessões nunca realizadas até a morte dele. Na minha loucura pela riqueza fácil, ofereci a imagem de Nossa Senhora das Graças para a igreja que seria construída. Enganamos facilmente o padre que o sucedeu e que só queria ir embora o mais rápido daqui e trocamos a igreja de lugar. Mas, quando me dei por mim, as terras já estavam passadas para as mãos do Barto, muito mais esperto do que eu. Possesso de raiva e de desdém, vim morar aqui, afastado da vila, de todos, da igreja. Já com o Padre Anselmo, Bartolomeu fez a sua manipulação final e vendeu, como obra de grande caridade sua, a construção da igreja. 

Padre Jonas, há quarenta anos tenho sido consumido por sentimentos e desejos de ódio e de vingança, ansiando pela morte e maldição de Bartolomeu e de sua família. Há quarenta anos, anseio a oportunidade de retomar o que sempre achei que deveria ter sido meu e que agora teria todas as chances do mundo para fazê-lo. Nesta minha loucura, arrastei minha esposa e meus filhos e os isolei da igreja e de quaisquer valores espirituais. Mas com Deus não se brinca. E Deus nos cumula de tanta misericórdia que espera pacientemente a nossa conversão, mesmo que um dia, como hoje, tenha de usar a força do seu braço poderoso'. 

As lágrimas escorriam livres pelos olhos do velho homem e da sua mulher, agora apoiada em seus joelhos, que tentava em vão conter os soluços. Afastou-a delicadamente, beijando-lhe a fronte e, pondo-se de pé, fez um testemunho de fé definitivo:

'Vamos corrigir o passado e fazer um novo recomeço. Vamos reconstruir a igreja onde for possível e a Fazenda das Missões. Mas vamos reconstruir primeiro os templos ruídos de dois homens maus. Por favor, padre, vamos agora à casa do Bartolomeu para um reencontro definitivo entre dois filhos afastados de Deus. E, depois disso, receba a minha confissão e a de todos da minha família. Mas vamos logo, padre, que Nossa Senhora das Graças já esperou quarenta anos pela minha conversão...'