XVI
DAS FACULDADES AFETIVAS: O LIVRE ARBÍTRIO
Há no homem faculdades distintas das cognoscitivas?
Sim, Senhor; as afetivas.
Que entendeis por faculdades afetivas?
O poder que o homem tem de propender para o que as faculdades cognoscitivas lhe apresentam como bom e de fugir do que como mau lhe põem diante dos olhos.
Quantas classes de faculdades afetivas há no homem?
Duas, correspondentes às duas espécies de conhecimento que estudamos.
Que nome recebe a primeira?
O de apetite sensitivo (LXXXI)*.
E a segunda?
A segunda chama-se vontade (LXXXII).
Recebe também a vontade o nome de apetite?
Sim, Senhor; porém em sentido mais nobre e espiritual.
Qual das duas faculdades é mais perfeita?
A vontade.
Se o homem possui livre arbítrio, é devido à vontade?
Sim, Senhor; porque, sendo o bem em geral (bonum commune) o único que a vontade ama necessariamente, quando solicitada por bens particulares permanece senhora de seus atos, podendo por consequência, inclinar-se a querer ou a não querer (LXXXVIII).
A liberdade humana reside exclusivamente na vontade?
Não Senhor; na vontade unida à inteligência.
O homem dotado de livre arbítrio, em virtude da inteligência e da vontade, é o rei da criação neste mundo corpóreo?
Sim, Senhor; porque os outros seres materiais são inferiores a ele, por natureza, e todos foram criados para que o servissem na peregrinação que há de empreender, até que volte ao seio de Deus, de cujas mãos saiu.
Descendem dos mesmos pais todos os homens que existem e têm existido no mundo?
Sim, Senhor.
Como se chamavam os primeiros pais da linhagem humana?
Adão e Eva.
E eles, por sua vez, donde procediam?
Foram criados por Deus.
Como Deus os criou?
Dando-lhes corpo e alma.
Como produziu Deus as suas almas?
Por criação.
E os corpos?
O mesmo Deus nos revelou que modelou com barro o corpo de Adão e, de uma das suas costelas, formou o corpo de Eva (XCI, XCII).
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus?
Sim, Senhor (XCIII).
Que quer dizer que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus?
Que a natureza e operações mais elevadas do homem lhe permitem entrever a natureza divina e a vida íntima da Augusta Trindade e imitam de certo modo a perfeição das pessoas divinas (XCIII, 5).
Por que se reflete, na natureza e nas operações mais nobres do homem, a natureza divina?
Porque também a nossa alma é espiritual e as suas operações mais perfeitas, entender e amar, têm por objeto a primeira Verdade e o Bem supremo, que é o mesmo Deus (XCII, 5-7).
Por que nos atos de entender e amar podemos ver uma semelhança da vida íntima da Augusta Trindade?
Porque o nosso Espírito, ao pensar em Deus, concebe um verbo interior que lhe serve de objeto e, sob a influência do pensamento produtor do Verbo, brota o ato de amar o objeto concebido pelo espírito (XCIII, 6).
De que modo podemos imitar a perfeição própria das Pessoas divinas?
Podemos, à sua semelhança, ter como primeiro objeto e último fim de nossos pensamentos e afetos a Deus, concebido no entendimento e adorado no coração (XCIII, 6).
Não há no mundo corpóreo, além do homem, algum outro ser feito à imagem e semelhança de Deus?
Não, Senhor; porque somente o homem possui natureza espiritual (XCIII, 2).
Logo, nas criaturas inferiores, nada há por onde venhamos ao conhecimento de Deus?
Sim, Senhor; porque, em razão das perfeições materiais de que foram dotadas, são como impressões ou vestígios da mão de Deus, seu criador (XCIII, 6).
DO ESTADO FELIZ EM QUE FOI CRIADO O HOMEM
Criou Deus o homem perfeito?
Sim, Senhor.
Que bens compreendia o primitivo estado de felicidade em que o homem foi criado?
Ciência claríssima e universal, justiça original unida à prática de todas as virtudes, império absoluto da alma sobre o corpo e domínio sobre todas as criaturas (XCIV, XCV, XCVI).
Possuía o primeiro homem estes bens, na qualidade de privilégio exclusivo e intransferível?
Em relação à ciência, sim Senhor; porém, a justiça original e os dons de integridade se transmitiriam por geração a todos os seus descendentes, porque eram inseparáveis da natureza humana enquanto deles não fosse o homem despojado pelo pecado (XCIV, 1).
Estava o homem sujeito à morte?
Não, Senhor (XCVI, 2).
Estava isento de sofrimento e de dor?
Sim, Senhor; visto que a alma, por especial privilégio, protegia o corpo contra todo o mal e ela por sua vez de coisa alguma podia receber dano, enquanto a vontade permanecesse submissa a Deus (XCVII, 2).
Logo, o homem foi criado em estado de verdadeira felicidade?
Sim, Senhor.
E aquela felicidade era a última e suprema a que podia aspirar?
Não, Senhor; era temporal e a ela devia seguir-se outra mais alta e definitiva (XCIV, 1, ad 1).
Como poderíamos chamá-la?
A primeira felicidade inicial, durante a qual o homem contrairia méritos para alcançar, a titulo de recompensa, o estado de felicidade último e perfeito (XCIV, 1,2, 2; XCV, 4).
Onde receberia o homem o galardão que havia de coroar a sua felicidade?
No céu da glória, em companhia dos anjos, para onde seria levado por Deus, depois de algum tempo de prova e méritos no primitivo estado (XCIV. 1, ad 1).
Onde habitaria o homem, enquanto contraía méritos para ser levado á glória?
Num jardim de delicias, expressamente preparado por Deus (CII).
Como se chamou aquele lugar de delícias?
Paraíso terreal.
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular).